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A espera, a predação e a escuta da História

Filmar a borda. Perfilar a margem. Curiosa, notável, a primeira sequência de Zama já sintetiza bastante da atmosfera que permeará toda a película de Lucrecia Martel. Vê-se o protagonista à beira de um larguíssimo rio. À espreita. À espera. Nada ocorre: ninguém chega, ninguém sai. Apenas Diego de Zama (Daniel Gímenez Cacho) lá permanece, imbuído da seriedade das suas vestimentas de um digno representante do rei de Espanha, meio abandonado, meio perdido nas regiões coloniais hoje próximas ao Paraguai. Realça-se um rio inóspito. Suas pedrinhas, seus pedregulhos e a erosão a circunda-lo. Sua areia destituída de cais, portos ou qualquer outro aspecto que coligasse a terra à água. Precisa, a câmera de Martel capta a silhueta de Zama. Mais: a câmera localiza-se na fronteira que junta (e separa) a borda da margem e, paradoxalmente, a margem da borda. Filma-se um entre. Duplicam-se os perfis da câmera aos perfis de Zama – e é a espera pela espera que se focaliza; é a esperança de que se possa ter (ainda) certo átimo de fé, e de expectativa, que esta primorosa cena tão bem transmite.

Corte – e contraste. Em Jauja (2014), filme do também argentino Lisandro Alonso, teremos outra miragem. Sintomaticamente, vê-se o protagonista dinamarquês, ainda no início, agora de costas para a câmera, a fitar o mar – o Atlântico e suas bordas, suas margens. Ele ainda não veio para as terras sul-americanas, onde, assim como ocorre com Zama, será desconstruído pela inapreensível amplidão dessas tão perigosas paragens. Jauja narra uma partida à terra prometida. A partida e a sua subsequente perda de sentido. Quando o protagonista por aqui chega é envolvido numa complexa rede de dissoluções as mais diversas, subjetivas, sensoriais, físicas, simbólicas, materiais. Quando o mítico sonho de Eldorado revela-se a terra das perdições, da qual ninguém volta vivo, ou íntegro.

Lado a lado, Zama e Jauja se inserem numa nova tessitura fílmica e histórica de abarcar o cinema e a representação do passado colonial sul-americano. Trata-se, certamente, de uma inversão, de uma fenda criada pelo perspectivismo de uma mútua predação de histórias por chãos avessos à história, tal como formulada pelas aberrações coloniais de um projeto civilizatório eurocêntrico. Não se quer mais criar um gesto alegórico de compreensão da condição colonial – ou de um viés terceiro mundista – do continente. Não se enfatiza, em ambos os filmes, uma visão holista, nacional, unitária e integradora – mas apenas fragmentos, bastante complexos e refratários a qualquer slogan redutor, da experiência colonial. Tampouco pretende-se denunciar problemas históricos e sociais. Seus personagens circulam modestamente dentro da “grande história” e o que se capta são centelhas, fiapinhos meio soltos, breves cintilações de estórias menores.

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Zama e Jauja, por outro prisma, não são experiências fílmico-históricas isoladas. Essa forma de estar próximo ao cotidiano histórico e enfatizar a banalidade de “grandes” figuras coliga autores tão diversos como Alexander Sokurov (em filmes como Moloch (1999), Taurus (2001), O Sol (2005) e ainda o Francofonia (2015)) com Albert Serra, que realça, nas suas filmagens mais recentes, aspectos bastantes singulares e fugidios de personagens como Luis XIV e Casanova. Ou ainda vislumbra-se tais gestos em filmes como Aferim (2015), de Radu Jude, e mesmo a vertente que nos conduz a Cavalo Dinheiro (2014), de Pedro Costa. Não são os macro acontecimentos que se busca iluminar, mas pequenas fagulhas, breves fendas de estranhamento sensível temporal, de costumes, de valores. Nesses filmes, a história é apenas uma moldura cósmica que acolhe indivíduos e trajetórias numa peculiar coexistência. A história não se sobrepõe às estórias e nem o contrário ocorre. Por esse viés, os personagens não se deslocam, são imanentes, e contemporâneos à história (ou à teia de estórias, se assim preferirmos) que os abriga.

No âmbito do cinema latino-americano, essa forma de modular a história pelo cotidiano junta-se a uma outra ótica de ver e filmar a experiência colonial. Sai-se do âmbito estético e conceitual que aponta para uma transcendência ou redenção nacionalizante – para abarcar um encantador multinaturalismo e um perspectivismo, no qual os colonizadores são agora enfeitiçados pelo requinte de um universo cultural que não conseguem absorver, compreender e mesmo dominar. É desta fenda, desse hiato que filmes como O Abraço da Serpente (2015), de Ciro Guerra, e Rey (2017), de Niles Atallah, tão bem se fundamentam, mas que, de alguma forma, se alinham à experiência proposta por um filme como A Última Ceia (1976), de Tomás Gutierrez Alea, no qual o veneno colonial reverte-se no antídoto dos colonizados, agora fortalecidos. Não por acaso, esses filmes mostram como a cosmogonia indígena (e negra, escrava), profundamente telúrica, lírica e metafísica, acaba por transformar-se na pá de cal da impossibilidade de um diálogo ou mesmo de uma submissão integral. Mais do que antropófagos, as diversas personagens indígenas de Jauja, O Abraço da Serpente e Zama são predadores cosmológicos, que, entre suas máscaras e seus feitiços xamânicos desintegram, lenta e persistentemente, as pretenciosas certezas dos projetos coloniais.

Mais intervalar, permeado por saltos cronológicos próprios, quase a-históricos, e cadenciado por outro tipo de sobrevivência, o perspectivismo indígena insere os personagens coloniais numa seara mística e intercepta seus corpos de outra forma. Estamos, portanto, numa maneira distinta de compreender a história, na qual não há mais apenas o “horror, o horror, o horror”, tal como Kurtz pronuncia nos momentos finais do romance de Joseph Conrad e na voz de Marlon Brando, na adaptação de Francis Coppola. Nessa guinada de(s)colonial, o horror é apenas um índice a mais da inexistência de diálogos entre uma concepção histórica clássica com outra, proto-mitológica, com a qual, xamanizada pelo perspectivismo, a história, em si, perde importância, dissolve-se na amplidão onírica e incompreensível da paisagem, quando o imperativo de um aqui e agora impede de gerar o grifo de um antes e de um depois, de uma (des)continuidade histórica. De um lado, a predação da história. Sua impossível deglutição. De outro, a predação em si, uma forma de ser o outro incorporando-o, deixando de primar pela integridade de certo ego, como um gesto cultural a-histórico, imediato, presente, sempre agora, sempre contemporâneo, que faz da imanência da paisagem – da sua imposição geográfica – uma moldura inescapável. Se há alguma semelhança com a antropofagia, ela contudo não aponta para respostas nacionais, mas tão somente locais, imediatas, que não ultrapassam as fronteiras das paisagens que retratam.

Por isso, inclusive, a espera tanto atormenta Zama. Como esperar num lugar destituído de história? Se a vontade de história é marcada por certo afã de ansiedade – de inventar um passado e vislumbrar um futuro, como, portanto, gerar história onde, tal como ocorre com a cultura ameríndia, se prescinde desses anseios? Costuma-se escutar estórias. Histórias, ao contrário, tendem a projetar leituras, interpretações, ideias. Lucrecia Martel embaralha essas estanques distinções. Seu Zama é um acontecimento sonoro e, portanto, ágrafo, a-histórico, que se esquiva de uma representação clássica (e eurocêntrica) da história. Embora brote, obviamente, do romance homônimo (e também histórico) de Antonio di Benedetto, ele ocorre no aguçar da sua audiovisão, como se saltasse para fora do quadro, para além dos conceitos e da concretude cronológica que se furta a representar. É um filme que nos convida a ver, tranquilamente, com as pálpebras pesadas, de olhos fechados, diante de um trauma colonial a encerrar qualquer episteme visual.

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Em Zama, portanto, não vemos fantasmas, mas os ouvimos, como num borrão gerado pela imagem, como um grifo gramofônico que inscreve uma realidade física, a qual deixa de ser história para tornar-se um ruído, um estranho barulho colonial que nem mesmo um filme consegue representar num escopo preciso. Ao contrário do que tentou-se argumentar, Zama não gera um discurso sobre a colônia e a colonização espanhola. A câmera e o som estão lá sim, embaladas numa impregnante proximidade cênica, mas numa encenação que não é mais fluxo, e sim uma forma centrífuga, circular, enlevada pelo melhor das ondas sonoras.

Tome, ao léu, escute – ou relembre – de uma das cenas. Nela, a escrava Malemba (Mariana Nunes) está ao lado, com um olhar firme, a fitar toda a conversa entre Luciana (Lola Dueñas) e Don Diego Zama. A cena alonga-se em conversas banais: as relações entre homens e mulheres nas colônias, o marido distante, a esposa também. Mas em determinado momento, Luciana fala da sua escrava, fala sobre Malemba. Diz que ela é muda, que não conversa, e que tentou fugir a nado de um dos seus antigos amos e, consequentemente, teve retirada a pele seus pés, numa tortura atroz, que deixo-a manca. Ainda assim, obteve uma crescente tenacidade, com a qual conseguiu comprar sua liberdade. Comprou-a para poder ser casar, comprou-a, zomba Luciana para novamente se aprisionar. Frustra-se, como espectador ao não ouvir a personagem. Frustra-se por apenas vê-la, saber da sua mudez e não mais saber do seu destino, se casou, se de novo tornou-se prisioneira, se retornou à sua condição de escrava. Mas é dessa frustração que Lucrecia opta por nos sussurrar, como se ela não reivindicasse um lugar de fala para os seus personagens, para a violência escravocrata. É da impossibilidade de um lugar de escuta que ela nos aponta. Uma impossibilidade que se transforma num vão anseio de escutar. E por mais que essa sequência aponte para uma possível síntese da colonização espanhola, ela não é nem menor nem maior que a cena. Não está no verbo, mas na sua ausência. Não possui nome, e convida a escutar a história, o que embala outras sensações com o tempo passado, a anos-luz de distância de uma concepção hegeliana e marxista, que visa ler sínteses de sentidos civilizacionais nos grifos cronológicos da história.

Malemba também aparece logo após a sequência inicial, a da borda. Junto com companheiras, escravas, índias, todas nuas, ela passa lama no seu corpo, como se não hesitasse em estar naquele local. Se Zama é todo ausência, se este personagem é sempre espera, Malemba, num contraste, é toda imediatismo, é uma presença renitente, e está imersa na terra que seus pés pisam. Em outra cena, o governador colonial exibe, orgulhoso, as orelhas penduradas no seu pescoço, como um troféu do seu poder diante de Vicuña Puerto, o enigmático bandido que ronda as pontas da narrativa. Ali, as orelhas cortadas tornam-se pérfidas insígnias, um brasão bizarro do torturador colonial. O corte, portanto, as mãos ceifadas, a impossibilidade de agir, de escutar e de lá estar, uma história de uma história incompleta – é nesse fiasco da história que a perspectiva colonial, ainda do lado oficial, se instaura em Zama.

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Nessa linha de argumentação, as orelhas cortadas tencionam-se com as máscaras indígenas da guerra e as pinturas da parte final de Zama. A predação, em tal diapasão, revela-se como bastante distinta do corte, da faca, do facão. Vicuña Puerto também pode ser tanto o bandido longínquo como o colega da expedição de Zama. Ele está, paradoxalmente, em todo lugar e em espaço algum e revela-se como pistas que se falseiam diante da incerteza (e da quase impossibilidade) de história. Eis, ademais, uma característica do predador: ele é polivalente, é próximo e distante, é um ex-humano que se mostra como bicho, como objeto, que traz anima para onde não havia, e a retira onde há doença. Mais do que metafórica, a predação é metonímica: ela muito revela de uma cósmica – e amoral – transmissão de existências.

Voltemos às margens de Zama. Remeto à Beatriz Sarlo e à maneira como ela preconiza as “orillas”, as beiras, as margens, para sugerir uma condição entre a marginalidade e a centralidade que caracteriza o gesto literário de Jorge Luis Borges, tão ocidental quanto gaucho, tão próximo da civilização ou dos ímpetos bárbaros de um facundo. Do lado de lá. Do lado de cá (como tão bem nos provoca o Rayuela de Julio Cortázar). Conta-se, pelas margens, a história de um convívio impossível. Zama localiza-se nessa encruzilhada: ele paulatinamente abstrai da sua condição colonial para afirmar aos seus colegas – não há esperança, não há redenção. É nessa margem, aliás, que a espera de Martel distingue-se do paradigma de Godot, vindo de Beckett. Se no campo do escritor irlandês temos a anulação de uma espera transcendental e redentora, com Martel e Di Benedetto, a espera se adensa diante da imanência do espaço. É opressora, pois mais geográfica que temporal, e evita formas de escape. Ela não anula a narrativa, mas qualquer possibilidade de engendrar acontecimentos históricos que se delineiam entre heranças, passados, sonhos e miragens futuras.

Por isso, novamente, a margem instala-se entre o partir e o não sair. Por isso, são todos, no filme, no livro, nesses territórios que abrigaram américas, hispânicas, ibéricas e zilhões de etnias hoje soterradas, – todos são constantes vítimas da mesma espera. Uma espera de uma imanência, uma espera pelo cal que não deixa o corpo apodrecer, ao menos não imediatamente. Em Zama, a espera não é um dado cronológico, mas uma forma de kairos, uma condição qualitativa de um tempo cultural, distinto do ethos cronológico que nos habituamos a grifar, que se furta, deliberadamente ou não, de ser histórico. E não por acaso chega um índio a perguntar “Quer viver?” e o que se vê são mãos ceifadas, a disfarçar o sangue que inocula a paisagem aguada, no pântano avassalador que ronda os sujeitos afoitos por história. A vida como um hálito exasperador, e o imobilismo como uma forma de viver nessa paragens – é desse cosmos opressor que Martel nos convida a ver e a escutar. E não há dúvida que ela realizou, ao menos por enquanto, o seu filme mais sufocante.


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