Jauja, de Lisandro Alonso (Argentina/Alemanha/Brasil/ Dinamarca/EUA/França/Holanda/México, 2014)

setembro 18, 2015 em Em Cartaz, Luiz Soares Júnior

jauja 1O Paraíso Reencontrado
por Luiz Soares Júnior

“Em geral, aliás, a identidade não passa de uma invenção dos geômetras, e no mundo real também não conhecemos de fato nada além de semelhanças mais ou menos imperfeitas. O cinema nos recorda que trabalhamos continuamente sobre analogias. (…) a analogia, injustamente desmoralizada pelo fantasma racionalista, vista como um ato primitivo do pensamento, um julgamento infantil e duvidoso, permanece sempre o ato primordial do pensamento, o julgamento por excelência e, antes de tudo, o único possível”.

Jean Epstein, Álcool e cinema, Escritos sobre Cinema Tomo 2

“You would have to be half mad to dream me up”.

Lewils Carrol, Alice no País das Maravilhas

“Todos os contos mágicos são apenas estes sonhos familiares que existem em todo lugar e em parte alguma”.

Novalis, Fragmentos Enciclopédicos

Em Jauja, Pittaluga (Adrián Fondari), um dos oficiais da comitiva de Gunnar Dinesen (Viggo Mortensen), cultiva um francês amaneirado de dândi e emite tiradas filosóficas; em uma delas, expõe-se a chave do universo fantasista do filme: “O deserto absorve tudo, e no deserto espraiam-se com facilidade rumores”. O deserto é o décor, metafórico e fantasmático, que permite esta combustão alquímica na qual o princípio de individuação é anulado (absorvem-se as coisas) e a palavra substitui-se com facilidade a estas mesmas coisas, agora porosas à invisível significação (espraiam-se rumores): Zuluaga. O deserto decreta um termo à coisa (entendida como ousia, substância), mas ele se elabora sobretudo como uma substituição das coisas pelo universo intersticial “entre as coisas”, uma dimensão onde a analogia determina as regras litigiosas do jogo no qual as coisas podem vir a ter uma correlação mágica (já que foram absorvidas pelo deserto, sendo agora essencialmente uma relação), a se projetaram e referirem, a rimarem e referendarem umas às outras; e assim, uma menina pode forjar o seu Bildungsroman onírico da altura da sábia bruxa na qual se tornou, e reencontrar o amante no cachorro (a ferida constelacional), o pai imemorial no jardineiro casual, o western num pampa argentino e, por todos os lugares, refratando o Verbo em correspondências vibrantes, o Abracadabra (palavra-senha usual nas narrativas de transfiguração infantil do mundo pelo significante) Zuluaga, oficial desaparecido no deserto e que, por obra e graça da desenraizamento propiciado por este, agora traveste-se de mulher e anda a matar a esmo e a seu bel-prazer: o deserto também perverte as funções e as funcionalidades da Morte, e introduz uma economia do absoluto valor de uso – ele não mata mais em nome do Exército, mas do próprio daimon.

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As palavras em Jauja são levadas a sério, e suscitam intrusões e ramificações entre a coisa visível e o invisível desejo: em algum ponto no início do filme, Ingeborg replica ao pai que aprecia o deserto, pois “gosta da maneira como ele a preenche”. Quem não substituir o verbo “preencher” por “penetrar”, não vai entender o escândalo de Gunnar diante da enunciação do desejo da filha. Entre o verbo latente e o manifesto, estabelece-se um tráfego que perturba o personagem do pai (como os cachorros, ao final, que ferem o próprio dorso ao coçá-lo, pois não conseguem entender o que lhes acontece); ele supõe haver aí uma implicação interdita, um desejo que não deveria estar aí, naquele corpo púbere de quinze anos. O corpo de Mortensen, propulsionado por uma pressão interior que empresta ao personagem uma extática tensão de mártir, sente mas não sabe ser um elemento entre outros no romanceiro erótico-iniciático de sua filha, sua épica familiar: não pode saber, pois é parte integrante da trama imaginária. É ao espectador que cabe completar o circuito da analogia, desaguando a entrevista correspondência em uma sintética significação, operação perceptiva e cognitiva que se desdobra em movimentos complementares mas alternados: a velha em busca da mãe e a menina órfã; os soldadinhos de chumbo; o espelho d’água contemplado pelo pai e pela filha; o cachorro desejado pela menina (no início); o cachorro de Zuluaga (no meio); os cães do final. Toda presença no filme deixa um rastro, e o itinerário destes rastros, deduzidos por nós através de certas chaves de contato (o soldadinho, o discurso oracular da velha Ingeborg), suscita uma intricada trama na qual a mitologia individual reencontra (re-descobre?) a civilizacional, o meu segredo desemboca no segredo de uma cultura: os canyons do western, a atualização do jacobean revenge drame no universo dos pioneiros, na busca empreendida pelo pai. A rigor, elas não mais se distinguem, pois é a lógica analógica do sonho de menina e moça de Ingeborg (o seu Bildungsroman onírico) que delineia as coordenadas do Tao iniciático. “A Natureza é um templo vivo, onde pilares vivos deixam às vezes sair palavras confusas; o homem passa através de florestas de símbolos, que o observam com olhares familiares (…) os perfumes, as cores e os sons se respondem””. (Baudelaire, Correspondências).

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Se a (dita) realidade é supra-ordenada por um conjunto de causalidades que se implicam em um continuum espaço-temporal, o sonho parece habitar aquele elemento diáfano descrito por Novalis a Schlegel, onde a separação entre os entes e seus respectivos mundos está abolida, e a reconciliação sinestésica deixa de ser uma veleidade romântica para agora assumir cor, ritmo, figura: “É preciso ver em meu romance a antipatia em relação à luz e (contra) à sombra, a nostalgia do Éter claro, caloroso e penetrante” (18 de junho de 1800). É o domínio da unidade essencial, onde as cisões inscritas pelas irredutíveis particularidades são revogadas, e uma vasta e ressoante mesma corda eólica faz vibrar as diferenças em um coro universal: tudo são contigüidades e semelhanças, tudo pode vir a desaguar em tudo, tudo sugere e implica tudo. Em seu romance iniciático Henri de Ofterdingen, Novalis descreve-nos uma das experiências sensoriais mais intensivas da história do pensamento romântico: a flor azul (die Blaue Blume): ”Mas o que atraiu com um charme irresistível foi, à beira da fonte, uma flor etérea azul (…) em torno dela, inumeráveis flores de todas as nuances preenchiam o ar com seus odores mais suaves. Ele, no entanto, só conseguia ver a Flor Azul, e a contempla longamente com uma indizível ternura. (…) Seu doce maravilhamento crescia à medida em que se realizava na flor uma estranha metamorfose – quando subitamente a voz de sua mãe o despertou: ele se reencontra, então, no quarto familiar, já dourado pelos raios matinais”. No final do filme, uma paisagem de sonho estratifica-se em uma vidência real, e já não sabemos a qual atribuir precedência ou poder maior de presença; o que a menina vê é um aventuresco pampa sonhado, mas o reflexo tremulante do soldadinho jogado na água adquire, em retrospecto, um peso incomensurável: de fato, consiste no filme que acabamos de ver. O Sonho é fotografado no plano final, e a realidade impressa na diáfana planície do sonho.

O Sonho da Flor azul é, no pensamento de Novalis, a mediação translúcida e fulgurante onde o símbolo e o Real agora participam de um mesmo maravilhoso continuum, verso e reverso de uma revelação extática, na qual e por intermédio da qual a imanência se encontra espiritualizada e o simbólico encarnado: o quebra-cabeça de Jauja não teria a força sugestiva que possui se não fosse o bazinismo dos planos longos e da locação; mas a trajetória de Gunnar por uma paisagem eivada de anfractuosidades, cadáveres e fontes não teria a mesma carga metafórica se este não fosse encontrando, ao longo  do caminho, as pistas sem as quais o Real não seria o que agora é – a saber, o pré-texto para o texto do Desejo e a trama do símbolo: o soldadinho de chumbo, o cachorro. É o elemento aquático do espelho do lago que nos dá “a ver”, com a essência cristalina do elementar, esta imbricação significativa entre os arcanos do simbólico e os arabescos da pulsão – entre o soldadinho de chumbo “significante” e o plano sequência “realista”, entre a retórica e o estudo de caso -, pois a água, em sua natureza coalescente, é o meio através do qual os istmos e os reinos até então irredutíveis acabam por revelar uma consangüinidade imaterial, forma de unidade superior na qual o divino e a vivência imanente constelam-se em um mesmo cosmo: “Depois de ter tocado e umedecido os lábios em uma fonte encontrada em seu sonho, Novalis é tomado ‘por um desejo insuperável de se banhar’. Nenhuma visão o convida a isto; é a própria substância que tocou com suas mãos e lábios que o chama. Ela o incita materialmente, em virtude de uma participação mágica. O sonhador se desnuda e entra na fonte. Apenas então as imagens advém; elas saem intactas da matéria, nascendo (…) de uma realidade sensual primitiva, de uma embriaguês que ainda não sabe se projetar. Página maravilhosa de uma imaginação profundamente materializada, onde a água – em seu volume, sua massa -,e não mais a simples féerie de seus reflexos, aparece como a jovem moça dissolvida, como uma essência líquida de jovem moça, “eine Auflösung reizender Mädchen’.” (Novalis, o tocante, Bachelard).

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Ingeborg desaparece aos primeiros quarenta minutos do filme, e nos reencontra ao final, em um espaço-tempo supostamente realista; mas como?, se ao longo de todo o filme estas distinções já haviam sido anuladas? ou antes: amalgamadas em um Mesmo e outro imbloglio fantasista. Só que esta fantasia (travestir-se de Pai aventureiro, de velha sábia) é a indispensável máscara para se chegar à idade adulta; até então, o imaturo fruto, demasiado frágil para poder sustentar o caule e os ramos, precisa da Persona (máscara de amplificação vocal do teatro grego antigo) para chegar “lá”. A ausência da menina ao longo da maior parte da duração do filme é uma espécie de Abre-te-sésamo para o seu próprio itinerário iniciático: ninguém consegue experienciar nada ao mesmo tempo em que experiencia; a significação é sempre a posteriori, diferida pelo tempo da rememoração/transfiguração narrativa. É ao transferir e projetar o percurso de sua iniciação para duas figuras “maiores de idade” – o pai, a velha Ingeborg da caverna – que podemos ver desvelar-se com clareza os perímetros da juvenil experiência, e a menina enfim tornar-se moça “por intercessão” destas figuras arquetípicas. “O que leva a vida a funcionar, o que a conduz para frente?”, pergunta-se a velha Ingeborg, em voz off sobre a distância da profundidade de campo de um plano à la Caspar David Friedrich, onde o pai se perde e nós enfim encontramos o testamento da infância, abandonada em direção à idade adulta; não é o ofício de sobreviver, mas a arte de fabular. O Eu precisa encenar-se, e assim distanciar-se em uma ficção de si-mesmo para poder enfim ser Eu: “Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci” (Fernando Pessoa, Páginas Íntimas). Ao acordar, Ingeborg pode retomar-se e seguir, agora sem o auxílio “intercessor” das refrações fabulísticas: o soldadinho de chumbo jogado na água. Ninguém cresce impunemente, ninguém abandona o casulo sem pagar o preço de violação da inocência pelo conhecimento; mas um círculo virtuoso se delineia aí: perder o Paraíso é enfim encontrá-lo, deixar de ser Eu é enfim começar a dizer Eu. Jamais abandonaremos estas arenas, jamais seremos o Mesmo sem um dia termos sido Outros, eternos, na distância deste plano final que intima a moça a partir.

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