O Abraço da Serpente (El Abrazo de La Serpiente), de Ciro Guerra (Colômbia/Venezuela/Argentina, 2015)

setembro 1, 2016 em Em Cartaz, Pablo Gonçalo

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Curas, perspectivismos e amarguras
por Pablo Gonçalo

Muitas culturas, muitas naturezas. Às vezes, ao lembrarmos de tantos relatos sobre os épicos e (tão perversos) encontros entre as culturas ameríndias e a europeia percebemos uma constante esquizofrenia. Seja aqui, seja lá. Nem eu, nem outro. Imprevisível, o jogo de alteridades, o enlace do espelho, sempre pende mais para um dos lados. Ora um discurso de vitimização e exploração, ora um ponto de vista heroico de resistência. Raros são os livros, as novelas, os filmes e os relatos antropológico-ficcionais que realçam as tensões inerentes ao diálogo e à diferença. Esse, certamente, é o primeiro aspecto que chama a atenção em O Abraço da Serpente, obra colombiana que foi indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2016. Um sintoma já anunciado pelo seu título: o abraço constritor que gera um afeto, sim, embora potencialmente destrutivo. Um abraço vindo da mitologia, que ao inventar um mundo novo nos lega, paradoxalmente, mundos à parte.

No terceiro longa-metragem do jovem diretor Ciro Guerra, contam-se duas histórias simultâneas que engendram quatro personagens em duas trajetórias similares. São tempos históricos distintos, com recortes temporais nebulosos, um tanto indefinidos, como se a cronologia da “mata”, do seu cosmos, não interagisse da mesma forma com a nossa perspectiva histórica, com grafias e marcas temporais absurdamente ocidentais. Sempre um xamã que encontra um antropólogo “estrangeiro”, seja alemão ou norte-americano. Na primeira aventura pela floresta amazônica, acompanha-se o périplo de Theodor Koch-Grunberg (Jan Bivjoet); no segundo corte temporal viajamos junto à expedição de Richard Evan Schultes (Brionne Davis). Do lado dos guardiões dos segredos da floresta, estão os dois xamãs de etnias nobres, quase aristocratas que flutuam frente ao seu domínio físico e simbólico da florestas, sendo que o segundo xamã é isolado, como se fosse o derradeiro sobrevivente da sua tribo. No encontro entre as duas histórias, os estrangeiros buscam por uma planta rara. Buscam catalogá-la, descrevê-la, desenhá-la, e, ao obterem um domínio técnico dos seus aspectos irão retirar a sua “cura” – ou magia?

No entanto, que tipo de cura o filme narra? Porque essa planta torna-se tão central para a o enlace da trama e dos personagens? Curiosamente, a planta, que se chama Yakurna, é rara, e apenas alguns índios sabem onde encontrá-la, já que ela está em vias de extinção. O anseio comum dos antropólogos, e por extensão, de toda cultural “ocidental”, seria justamente de dominar as propriedades da planta, de re-encantá-la pela técnica. Diz o mito que a planta gera uma poderosa vertigem onírica. Pela perspectiva indígena a cura – nas mais diversas das nossas acepções – só ocorreria por meio de uma completa fusão entre a planta e o homem; ou seja, a técnica xamânica seria de mescla, de total elisão entre o sujeito e o objeto, e por meio da práxis mágica se encontraria uma forma de novamente submeter-se à ordem da natureza, que seria uma continuação do nosso mundo material, na justa antípoda do nosso mito fundador; ou seja, a expulsão do Éden. Não há, dentro dessa cosmogonia, angústia alguma frente à finitude da planta. Pelo contrário. Seu desaparecimento no solo da floresta leva os índios, sobretudo na sua ética xamânica, à busca por rastros seus em outros cosmos. Como se todos os entes naturais fossem se purificando à medida que se distanciassem da cultura. As formas poéticas de conexão, ali, lidam de outra forma frente as (nossas) agruras da desaparição. São, ademais, concepções realmente distintas de curas. Ora opostas, contraditórias e, de fato, divergentes. Ora compartilham do mesmo chão de preocupações e inquietações: a indelével constatação do fim. O filme, no entanto, acaba por explorar os lados contrários dessas forças sem enfatizar ou optar por alguma dessas tendências. Isso, claro, se centrarmos na estrutura de abismo que conota o encontro entre os xamãs e os antropólogos.

De forma sutil e pulsante, o roteiro de O Abraço da Serpente articula-se a partir da confecção de duplos. Há, primeiramente, o duplo mitológico pelo qual a narrativa indígena evoca uma continuidade entre os deuses, os astros celestes e a existência de certo povo eleito, que paira como um ente duplo que, em certas configurações, altera-se e mantém entre corpos diferentes. Do lado dos antropólogos eles se duplicam pela escrita: Schultes quer rever, encontrar e ficar face a face com a planta descrita e desenhada por Koch-Grunberg, como se, pelo livro que leu, ele, as imagens e sensações se duplicassem entre mundos ficcionais e materiais. Como um duplo ao quadrado, evoca-se o duplo cinematográfico. Não apenas porque emerge um quarteto de personagens, mas pela narrativa salientar como ambos se espelham e contam exatamente a mesma trajetória em descrições temporais distintas. Pela ótica indígena o duplo esfacela-se, já que não há sequer herança – estamos diante de um índio isolado, desconectado dos antepassados, sem sucessores, sem história (ou contra ela, libertando-se do fardo do relato); um índio de uma etnia remota que tampouco reage com um tom trágico, melancólico ou nostálgico ao constatar tantos apagamentos. Fenecer transforma-se tão somente num instante de uma vultuosa metamorfose. Pela vertente dos antropólogos, os registros e as heranças plenas revelam-se como uma obsessão cultural. Mais do que um exercício de alteridade, o ofício do antropólogo resguarda um amplo anseio de traduzir culturas orais para culturas escritas. Os encontros entre os xamãs e os antropólogos, por outro lado, revelam como esse choque de culturas contamina-se numa doença deveras singular, para a qual não haveria cura. Essa doença seria fruto dos ruídos entre a “cultura da escrita” e a cultura xamânica, de experimentação cosmológica.

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Numa das sequências mais horripilantes do filme, o xamã e o antropólogo, em suas trilhas pela Yakurna, deparam-se com as loucuras messiânicas de uma missão jesuítica. Ali, as inversões são completas e geram mais descalabros sensíveis, mais aberrações ontológicas, do que meras “aculturações”. Vê-se índios rezando em latim e padres, como falsos profetas, jogando dezenas de indivíduos entre as vertigens das suas loucuras. Aqui, as insanidades individuais remetem à impossibilidade de verdadeiras sínteses culturais, como se duas galáxias distintas não gerassem fusões possíveis, mas apenas cacofonias e outros absurdos cósmicos. Mesmo que estejamos entre divergentes concepções de cura – a mitológica ou a científica – elas encontram-se ancoradas em tradições sólidas, completas, plenas. As aberrações do misticismo flagrado tanto pelo xamã como pelo antropólogo conotam um desespero cosmológico, cujos gritos ecoam entre todos, seja os de fora, seja os de dentro. Ali, a doença – o perverso ruído entre as práticas cristãs europeias e o desamparo Ameríndio, quando despossuído dos seus meios materiais e simbólicos – não possui cura. Não impulsiona sublime algum. Apenas convalesce, sem lastro ou códigos vigorosos o suficiente para suplantar as condições adversas. Algo próximo ao horror colonial, no seu revés, tão bem relatado por Conrad e sintetizado no rosto de Marlon Brando em Apocalipse Now (1979).

É no meio desse complexo mapeamento das cosmologias amazônicas, que O Abraço da Serpente urde um raro equilíbrio entre fabulações antropológicas e ficções cinematográficas. Não por acaso, o filme é falado em sete línguas: das europeias modernas, ao vernáculo latim, passando por variantes de línguas indígenas, como o Cubeo, o Wanano, o Tikuna e o Huitoto. Línguas que nós, meros espectadores citadinos, costumeiros sedentários, provavelmente nunca escutamos. O balanceamento entre os mundos indígenas e o ocidental transforma-se numa alternância simbólica, tal como Jorge Sanjinés e o grupo Ukamau, na autora de uma Bolívia revolta e entregue, tão bem exerceram, coligando de forma ímpar a antropologia política com um cinema “engajado”.

É aqui, nesse esmero entre a complexidade da antropologia contemporânea que o cinema surge como uma ponte possível, de migração sensível entre cosmologias tão distantes, uma antropologia, embalada por sua crítica pós-moderna, que não omite e nem condena ingenuamente o ponto de vista colonial, ocidental. Seria este análogo ao nosso ponto de vista do espectador? Será que esse olhar, digno de uma indicação ao Oscar, também aciona um novo mercado de exotismos ameríndios? Ela está lá – essa ótica da “dominação” do outro – presente e sensível, conduzindo e retorcendo o olhar do espectador. O mesmo ocorre com o ponto de vista indígena: ele sequer é idealizado de forma romântica, mas abraça, abarca e deglute todas as diferenças culturais de acordo com seu próprio olhar. O perspectivismo, ali, transforma-se num inquieto jogo de migrações cinematográficas onde as desventuras do empreendimento colonial são embaladas ao sabor das suas inerentes ambiguidades.

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