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Todo dia é um ato

Certa vez um comediante estadunidense disse: “Se você se lembra dos anos 1960 é porque não estava lá”. Para além da evidente provocação com a nostalgia (artística, revolucionária), há na blague uma traição saborosa, pois, para a maioria dos que lá não estiveram, o espírito da época é inapreensível em sua profusão de sentidos, contradições, possibilidades e angústias, especialmente o turbilhão em torno de 1968. Neste ano central para o mundo contemporâneo, os movimentos sinfonicamente dessincronizados em várias partes do Ocidente pontuavam uma promessa nunca plenamente realizada de transformação radical do mundo. Seja nos costumes, na política ou nas artes, os anos 1960 não couberam naquela década. E se vários filmes ajudam a vislumbrar um cadinho desse momento, poucos abraçam o impossível como Eu e Meu Irmão (Me and My Brother, 1969). Pois, como seu tempo histórico, o longa de Robert Frank é um filme que não cabe em si.

A começar pela relação já colocada pelo título: “meu irmão” faz referência a Julius Orlovsky, irmão do poeta Peter Orlovsky, protégé de Allen Ginsberg. Julius é a figura central do filme: percorrendo a cidade de Nova York junto a seu irmão, ele será milimetricamente escrutinado pela câmera de Frank, seduzida pela figura misteriosa e catatônica desse homem cujo rosto rebate qualquer tentativa de desvendamento ou explicação. Julius recebeu o diagnóstico de esquizofrenia, tendo ficado anos em tratamento – de choque – numa clínica psiquiátrica antes de morar com seu irmão e, ao contrário das outras figuras que povoam o longa, sua persona não se dá a ver por ações, gestos, olhares. É essa opacidade que a câmera busca desbravar, procurando Julius, seu rosto impassível, a postura estática, o olhar perdido, o vazio expressivo mediando o eu encapsulado num corpo normatizado pela ordem vigente e a câmera com sua inquietude poética em busca de contato. Por isso, deduz-se que o “eu” diz respeito a Peter, presente no longa de maneira lateral quando leva Julius para saraus de poesia, eventos musicais, encontros com amigos e companheiros da contracultura nova-iorquina da época – cujo retrato íntimo perpassa toda a obra de Robert Frank – ou em perambulações pela cidade e na convivência cotidiana do pequeno apartamento que dividem. Mas Peter não é o narrador do filme, muito menos o sujeito absoluto deste “eu” que povoa Eu e Meu Irmão. Pois este “eu” se articula, se desfaz e se desmembra, reconstitui-se e transmuta ao longo do filme.

O encastelamento de Julius em seu corpo, somando ao tema da esquizofrenia, transversal à obra, desencadeia um espírito plástico na carne do filme. Em dado momento, conta-se uma história da vida de Julius antes de sua internação, com a câmera observando o narrador do caso de modo documental, presente na cena. De relance, corta-se para Julius, em meio a uma construção de um prédio, revivendo a história, numa cena oscilante entre o sonho e a memória. Por breves minutos, a câmera salta de uma narração para a tentativa de adentrar nesse eu que, superfície opaca para a lente, pode ser apenas vislumbrado de modo poético pela rememoração visual que o cinema proporciona. Assim, a câmera salta em tempos, por espaços, narrativas, muda tonalidades e oscila entre quem conta e quem é contado. Isso fica evidente logo após o prólogo, em que se discute como filmar uma cena de sexo entre dois homens – enquanto vemos uma garagem de caminhões com um sinal luminoso, que em determinado momento domina a tela, com o escrito “STOP: DO NOT ENTER.” [Pare. Não entre.] Após alguns minutos em que vemos a filmagem da cena se desenrolando, com Julius quieto ao fundo observando a gravação, o que se apresentava como o filme salta para o segundo plano, enquadrado numa tela de uma pequena sala de cinema onde algumas pessoas acompanham a projeção e começam a se levantar decepcionados. Eu e Meu Irmão deixou de ser um filme apenas.

Assim, a narrativa joga com transmutações e variações ininterruptas, desde Julius assumindo, em seu silencioso peso trágico, diversas faces – ora com barba, ora sem; com óculos, cabelo mais longo ou curto; vestido casual ou mais formal – até a encarnação das personagens por outras pessoas. A certa altura, Julius desaparece numa noite, por descuido de seu irmão e amigos, todos bêbados, e ao colocar o chapéu de Tio Sam que Julius estava usando na ocasião, Allen Ginsberg diz: “Eu sou Julius agora!”. A mais duradoura transmutação se dá quando o diretor do filme – interpretado por Christopher Walken, outra mutação repentina – conta sua dificuldade em lidar com Julius e contrata um ator (Joseph Chaikin) para fazer a vez do protagonista. Contudo, a “encarnação” é narrativamente incorporada à trama de modulações – não se pode falar em trama no sentido corriqueiro aqui – do filme, e a dificuldade do ator em representar Julius, pela dificuldade de penetrar na personagem, desdobra novas camadas de superfície, ao mesmo tempo que espelha a angústia do gesto fílmico de Frank. Afinal, “cada dia é um ato”, e a inquietação formal de Eu e Meu Irmão se multiplica pelos elementos recorrentes, as novas personagens que surgem e desaparecem, os pulos espaço-temporais, as possibilidades de retratos e potências num mundo concreto diante da câmera que parece tomar a forma do mistério sintetizado no olhar forte, mas evasivo, de Julius.

É claro que muitas vezes falamos numa inquietação que desemboca em experimentos dispersos, cujo gesto mesmo de não se adequar faz a força da obra. O caso aqui é de outra natureza. Eu e Meu Irmão é um filme-corpo dúbio, mutante, instável, cujos desvios e fraturas frente à norma desbravam certos limites da arte, da poesia, da ficção, do real. Logo no início, uma cartela avisa: “Neste filme todos os acontecimentos e pessoas são reais. O que quer que seja mentira [unreal] é puramente minha imaginação.” Mais do que “desvendar”, “retratar” ou “representar” Julius, Robert Frank imagina e, com isso, repõe o mistério de um rosto e de um corpo que pode ser um, dois, nenhum, cem mil, contido inteiro sem caber em si. Um mistério que não é em nada evasão, mas liberdade de imagem, de imaginar. Real e imaginação, termos aparentemente conflitantes, são fundidos pelo cinema no diapasão da dança com o caos da existência.


No dia 26 de Agosto (nova data!), às 19h30, a Sessão Cinética exibe Eu e Meu Irmão, filme de Robert Frank, em cópia 35mm. A sessão acontece no Instituto Moreira Salles, RJ – IMS Rio de Janeiro e será seguida por um debate com os críticos da revista.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS-RJ e no site ingresso.com.


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