1.
Há três momentos em Certain Women, novo filme de Kelly Reichardt, que amplificam seu dilema central.
O primeiro acontece bem no princípio, na primeira das três histórias individuais que compõem o filme: Laura (Laura Dern), advogada que há meses tenta convencer seu cliente (Jared Harris) de que ele não tem direito à aparentemente justa compensação por um processo já previamente acordado, expressa seu desconforto ao vê-lo concordar de pronto com um advogado que diz exatamente o que ela vinha falando desde sempre. “Seria tão bom pensar que, se eu fosse um homem, eu poderia explicar a lei às pessoas e elas diriam ‘ok’”.
O segundo momento se dá no ponto crucial da segunda história: após Gina (Michelle Williams) facilmente convencer um velho morador da cidade a lhe dar algumas pedras para usar como tempero local na construção de sua nova casa, seu marido (James Le Gros) sugere ao homem que pense melhor antes de se comprometer – discordância seguida por um compasso de silêncio estupefato. A conversa termina no jardim, onde ela pergunta ao marido porque ele sempre faz com que ela pareça a bandida da história, verbalizando o que a pausa já havia feito claro.
O terceiro é um pouco mais discreto, mas o timing forçado de comédia o faz saltar aos ouvidos: quando Beth (Kristen Stewart) ensina Direito Escolar para uma turma de adultos, uma voz de homem salta de fora da tela, interrompendo outro aluno em duas ocasiões, com perguntas que sempre rondam a manutenção de privilégios, como vagas para professores no estacionamento da escola.
Os três momentos não são problemáticos por demonstrarem, com justeza, uma sociedade profundamente arraigada em privilégios masculinos – tema que preenche com notável beleza as lacunas entre ações silenciosas e diálogos fragmentados, assim como o espaço entre o espectador e o filme. O que faz com que essas passagens deixem marcas sob luz dura é a confiança na palavra como mero grifo, em amarelo neon, para aquilo que o drama e as situações já deixavam evidente. Essas erupções discursivas são usados como ilhoses para segurar os fios narrativos tramados por Reichardt, mas a grosseria de sua literalidade salta como adornos vulgares numa bota que dispensa cadarços, amarrados feito gaze a tapar buracos imaginários. São momentos isolados, de fato, mas sua colocação ostensiva dá a Certain Women um aspecto tópico, pauteiro, que é estranho ao trabalho de Kelly Reichardt – incluindo este filme. Como diz a Emily Dickinson de Terence Davies em A Quiet Passion (2016): “Clareza é uma coisa; obviedade, bem outra”.
Até porque os filmes de Reichardt – frequentemente adaptados de originais literários – sempre foram particularmente escorregadios em relação a seus assuntos. Em parte, é justamente o sentimento dúbio de que seus filmes faziam muito sentido mas jamais deixavam claro como o faziam ou qual sentido era esse que os torna tão fascinantes. Old Joy (2006) esparramava pautas geopolíticas e eventos dignos de lides para deixá-los escorrer lentamente pelo ralo, legando ao espectador pouco além da presença dos três personagens principais – dois homens e um cão (Lucy, cachorra da própria diretora, a quem este novo filme é dedicado). O filme seguinte, Wendy & Lucy (2008), deslocava seu tema central de não-pertencimento das personagens humanas para o cachorro – novamente, Lucy, aqui contracenando com Michelle Williams – reposicionando Sem Teto Nem Lei (1985), de Agnés Varda, diante de um vazio novo e não menos ensurdecedor, evitando qualquer moral que não se expresse fisicamente – um latido, mais que um discurso. Em Meek’s Cutoff (2010), um conto baseado no relato histórico de um grupo que atravessou o deserto do Oregon em 1845 sem saber se estava indo na direção certa era lentamente dissolvido em abstração na paisagem infinita, em um faroeste que requisitava mais Bill Viola do que John Ford. E embora Night Moves (2013) tenha de fato feito uma curva fechada rumo ao comentário político, ele segue como o filme mais fraco da diretora até o momento, mais interessante por suas poucas ambiguidades do que por suas maquinações soletradas.
Em época em que a arte parece cada vez mais satisfeita em saciar um espectador em busca de confirmação moral, mais do que desafios de percepção – um espectador que prefere a religião à política – esta silhueta de escolha se adensa sobre Certain Women com a apreensão de uma concessão. Se os filmes de Reichardt sempre evitaram a tirania de assuntos dignos de matérias de jornais, é porque em seus filmes a própria matéria se faz assunto. Ao redor dos já citados, afirmados e reafirmados pilares de obviedade que cortam o texto do filme, a diretora aglutina uma palheta emudecida e fascinante de texturas, ações e vibrações que carregam sentido mais profundo e revelam muito mais sobre os personagens e as relações entre eles do que qualquer explosão verbal: os rastros deixados na neve pelos pneus; um cavalo de olhos azuis coberto com fina camada de gelo; uma longa viagem de caminhão que termina no meio de um campo aberto (plano que lembra o final de Adeus ao Sul (1996), obra-prima de Hou Hsiao-hsien); a imanência de guardanapos, papéis-de-parede e cheeseburgers. Em um mundo onde a existência pura fala com tamanha eloquência, palavras não passam de futilidade.
Sob esta luz, a escolha por filmar Certain Women em Super 16mm granulado se torna um dos mais vitais elementos narrativos do filme – belamente escavado pelo trabalho de Christopher Blauvelt, ao mesmo tempo contudente e contido. A textura desbastada pela indexicalidade do filme analógico cobre com uma capa de história e expressão o prosaísmo de cada espaço, visão ou suspiro, ancorando os episódios no tempo à mesma medida em que, paradoxalmente, os torna eternos. A câmera de Blauvelt dramatiza o comum com mínima interferência, ressaltando a especificidade de tempo e lugar sem com isso estilizá-la ou lavá-la com um esforço moco de universalidade. É das menores e mais humildes migalhas que o mundo de Certain Women é feito, e são estas mesmas migalhas – de narrativa, de emoções, de vida – que aproximam ou separam os personagens.
Mais para o fim do filme, Laura faz uma visita a seu cliente na prisão e, enquanto socializam e dividem milk-shakes, ele pergunta porque ela nunca o mandou uma carta. Ela diz que não sabia o que escrever. Ele dá de ombros: “Fale sobre qualquer coisa. Fale sobre o seu dia. Apenas coloque em um envelope” porque o prazer e sensação de pertencimento que ele tanto precisa não virá pelas palavras, mas pela textura do papel, a cor da tinta, o peso da carta não aberta. A data postal há de esmaecer, o destinatário pode vir a mudar de endereço, e as palavras estão fadadas a perder sentido no momento em que são proferidas. Mas o papel ganhará cor e cheiro, o envelope será crispado pelo tempo, e o “qualquer coisa”, a simples descrição de um dia comum, revelará palavras escondidas, no subtexto prenhe de sentido que, escrito com suco de limão, só se deixa ler sob a luz certa.
2.
O trabalho do artista visual e cineasta escocês Douglas Gordon gravita ao redor de ideias como abundância, permanência e duração. Famoso por obras para museu que revisitavam clássicos do cinema com uma profunda manipulação do tempo – 24 Hour Psycho (1993), ralentando uma fita de VHS para fazer com que o filme de Alfred Hitchcock durasse o tempo de um dia; Five Year Drive (1995), que esticava Rastros de Ódio (1956) até que seu tempo de projeção fosse equivalente ao tempo passado nos eventos diegéticos do filme, fazendo com que cada segundo durasse mais de seis horas em tela – ou manipulação de espaço – em left is right and right is wrong and left is wrong and right is right (1999), A Ladra (Whirlpool, 1949), de Otto Preminger, passava simultaneamente em duas telas paralelas, mas uma delas invertida, espelhando o filme original – o artista estreou no longa-metragem com Zidane, um Retrato do Século XXI (2006), co-dirigido por Philippe Parreno, usando material captado por dezessete câmeras que davam todo ângulo possível da estrela de futebol Zinedine Zidane durante um único jogo. Em todos esses trabalhos, reina o gesto comum de supervalorizar o momento fugidio (um fotograma, um filme, um jogo de futebol) enfatizando sua luta por permanência por meio de durações artificiais e multiplicação de pontos de vista e representações.
Faz sentido, portanto, que Gordon tenha escolhido Jonas Mekas como foco de atenção em seu novo filme, I Had Nowhere to Go. Uma das figuras mais importantes do cinema independente norte-americano e um dos maiores cineastas vivos, Mekas é conhecido sobretudo por sua contribuição ao gênero dos filmes-diário, dando certa permanência às mais evasivas maravilhas. De sua obra-prima de princípio de carreira, Walden (1969), ao recente 365 Day Project (2007) – no qual lançou um curta inédito por dia em seu site, ao longo de um ano – e além, o trabalho de Jonas Mekas combina um ponto de vista extremamente pessoal com a longevidade de um verdadeiro testemunho histórico. A modéstia do formato diário propicia flashes discretos de seus encontros com outros artistas extraordinários – Stan Brakhage, Carl Dreyer, Hans Richter, Andy Warhol, Velvet Underground – e grandes acontecimentos da História – sua série de vídeos sobre o 11 de Setembro; as lembranças da Segunda Guerra, motivo pelo qual emigrou da Lituânia para os EUA; o surgimento de uma seminal cena contracultural em Nova York – criando um relato pessoal que atravessa grande parte do século XX, e o começo do XXI (ainda na ativa, Mekas tem hoje 93 anos). Por tudo isso, não é surpresa que tal abundância despertasse o interesse de Gordon em suas investigações sobre os limites da totalidade e o caráter inevitavelmente fugidio da existência. O que é surpreendente é que I Had Nowhere to Go tenha escolhido um caminho totalmente diferente, se não oposto, para olhar seu personagem em igualdade.
Como pode alguém contar a história de um artista que já contou sua própria história, com suas próprias palavras, planos e lembranças, com tamanha riqueza de detalhes? Como pode alguém filmar a vida de um homem que já filmou obsessivamente sua própria vida, em um raro relato em primeira pessoa de diversos momentos cruciais na História? Como pode alguém biografar um homem que biografou um século? A resposta de Douglas Gordon é simples: ninguém deveria.
I Had Nowhere to Go encontra uma solução, ou melhor um interesse, ao focar no exato período antes de Mekas começar a fazer filmes – seus últimos dias na Europa e os primeiros anos nos EUA. O filme não é, portanto, biografia ou memoir, mas sim uma adaptação do livro de mesmo título que Mekas lançou em 1991, que consiste basicamente de recortes de seu diário naqueles “primeiros anos” – os anos que antecedem seus diários filmados. O período pode de fato ser descrito como seus anos de formação, pois é marcado pela imposição da condição que torna seu trabalho tão singular: a experiência de exílio.
Tal condição se impõe como raiz fundamental ao trabalho de Mekas, todo ele uma maneira de tentar dar forma ou corpo a um estado que permanece dolorosamente presente na vida cotidiana – daí, o formato em diários. É questão de justeza, portanto, que esse retrato de um sujeito deslocado, mas também de um artista antes de encontrar seu meio, seja mostrado como uma imagem em falta: pela maior parte do filme, Mekas lê passagens de seu livro sobre tela preta, acompanhado de efeitos sonoros e ocasionais trechos musicais. Os anos anteriores a que o filmeur tenha começado a filmar são apresentados como memórias a espera de imagens – não necessariamente incompletas, mas intraduzíveis, vinculadas a outra forma de arte que o artista frequentemente diz ser sua ocupação (talvez até mais do que o cinema): a poesia.
Essa decisão encontra paralelo em outro grande filme: Branca de Neve (2000), épico da tela preta de João César Monteiro. Ambos compartilham uma mesma origem: enquanto o grande mestre português manteve a tela preta como reação ao problema técnico que inviabilizou o filme que ele já havia realizado, Douglas Gordon inclui um expressivo trecho em que Mekas fala da primeira imagem que jamais produziu – tanques russos cruzando ruas da Lituânia em 1940 – por sua câmera ter sido destruída por um soldado soviético. Em ambos, a tela negra é a imagem impossível – a tela em branco – é a representação das imagens (não) captadas pela câmera quebrada, equivalentes às figuras de argila de Rithy Pahn em A Imagem que Falta (2013): uma forma de reencenar a perda sem trazê-la de volta à vida, sem precisar fazer com que o trauma aconteça novamente à guisa de ilustração.
“Fique à vontade para ler isto como ficção”, autoriza Mekas no começo do livro/filme, e de fato a única ferramenta que Douglas Gordon usa para se aproximar da realidade de maneira aparentemente mais direta em I Had Nowhere to Go não é em nada menos ambígua: o desenho sonoro. Em uma sequência central, a narração faz uma pausa, enquanto a banda sonora é invadida por uma longa e elaborada paisagem sonora de explosões e destroços que se esparramam pelo ar, em um tour de force que é paradoxalmente imersivo e repulsivo, por sua agressiva artificialidade. Enquanto, por um lado, a construção recria, de maneira perversa, a experiência do espetáculo da guerra, a ausência de imagem ressalta a natureza fantasmagórica do som, que ressoa com a clareza de uma lembrança, mais do que com a imanência de uma experiência presente. Como nos Disintegration Loops (2003-2003) de William Basinski, as ressonâncias – as caudas das ondas sonoras viajando pelas madeiras do piano na banda de som – e as notas-fantasmas esburacadas carregam a história dos derrotados, enquanto a narração seca e afiada de Mekas fala a língua dos vivos.
Tamanho contraste não se dá exclusivamente na banda sonora: a amplidão da tela preta é ocasionalmente interrompida por imagens feito flashes que resistiram à autodestruição imposta à memória pelo trauma, mas também como breves picos do presente em uma timeline expandida (não só a longevidade fortuita de Jonas Mekas, mas também a repetição de padrões em uma linha do tempo mais ampla). Essas imagens podem ser divididas, grosso modo, em duas categorias: material em 8mm de pequenos fatos cotidianos, como vegetais sendo descascados, pegadas descalças na neve e fumaça saindo de uma chaminé; e imagens de alta definição em widescreen de animais em um zoológico – incluindo um fortíssimo plano longo de um gorila, uma das imagens mais penetrantes vistas neste festival.
Enquanto as imagens em vídeo ilustram tanto a sensação de deslocamento (animais retirados da natureza) quanto a presença sem voz do balé silencioso captado pelos filmes em 8mm de Mekas (sua narração póstuma na banda sonora segue como um dos traços mais distintivos de seu trabalho), o material em 8mm aponta para outro senso de exílio, começando com a aparente apropriação do estilo de Mekas, porém desprovida da singularidade que nutre suas imagens. Não obstante, a justaposição de planos banais com a história oral de Jonas Mekas permite sínteses de grande força: a fumaça aciona as lembranças das explosões; os vegetais em brasa materializam a pobreza gerada pela guerra; a lua ofuscada pela neve que cai evoca cinzas do passado – memórias preservadas no diário de Mekas e que o espectador é convidado a montar. A natureza trágica do trauma é reivindicada mesmo pelos eventos mais leves e prosaicos, da mesma maneira que a montagem dialética clama por justaposição em todo par de elementos díspares. Como o trauma, a possibilidade de sentido está em todo lugar.
Tais saltos de significação não seriam possíveis não fosse Jonas Mekas um extraordinário orador. Se I Had Nowhere to Go só pode falar de Jonas Mekas, o grande cineasta, pela sua negação, o filme não hesita em celebrar Jonas Mekas, o poeta, o narrador, o cantor. Eulogia à câmera quebrada, o filme é também um tributo à resistência inquebrantável imposta pelo desespero e às infinitas possibilidades que aguardam, dormentes, entre as palavras. Quando a realidade insiste inibir qualquer possibilidade de expressão, é justo o poeta quem pode retraçar, revelar e recalibrar todos os sentidos que cabem nas palavras “fuck you”.
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