Em movimento: sentimento e narrativa

setembro 1, 2016 em Em Pauta, Paulo Santos Lima

Warren Oates em Disparo para Matar

Warren Oates em Disparo para Matar (1966)

por Paulo Santos Lima

Ride in the sentimental mood

Termo usado para o gado não marcado, para bezerros sem mãe e para indivíduos independentes que não seguem um grupo ou partido, maverick é palavra recorrente quando se fala de Monte Hellman, talvez porque seja quase uma palavra-coringa que sirva a artistas mais difíceis de enquadramento na historiografia do cinema. Vez e outra, é definição justa, bem aplicada a figuras como Cimino, Ferrara e Stroheim. Mas a coisa escapa um pouco em Hellman: ele não está propriamente num lugar definido e, mesmo o termo possuindo largo espectro denotativo, é impossível lhe aplicar a tradução direta mais literal da palavra, que é “dissidente”. Dissidência requer uma prévia escolha ou uma exclusão sofrida a posteriori (Orson Welles, por exemplo, seria um dissidente por conta de ambas, com postura artística que enfezou o sistema), e Hellman sempre esteve em movimento (e não no movimento), ou seja, jamais à parte mas também nunca integrado, com um certo distanciamento da cena mas operando nela (por dentro dela… e sobre ela, melhor dizendo). Mesmo em relação a contemporâneos como Warhol, Kenneth Anger, Jonas Mekas e Mary Ellen Bute, ou outros realizadores de um cinema independente ou underground, ele não se encaixaria devidamente, pois sua práxis nunca foi de ruptura ou de estar à margem, mas de uma imersão tão em si que seria uma espécie de desvio.

Os antecedentes cinematográficos de Hellman estão nos anos 1950 (aquele cinema já com uma acentuada perda da inocência, com o sistema ainda operando forte mas já perturbado por uma crise), mas ele sairia da rota nos anos 1960, distanciando-se (sem romper de todo) da matriz de Roger Corman – cujo processo era inventivo, transgressivo até, mas não dissidente da típica lógica comercial. A obra de Hellman não seria bem a que entendemos como de vanguarda, de um artista à frente do seu tempo, mas a de um cavaleiro solitário interessado em algo mais particular, íntimo, pouco a ver com as tendências do momento ou ao que seria do protocolo de um auteur. Ele estaria numa espécie de entreato, imerso numa tradição e também fora dela, sem intenção de sabotá-la mas a esgarçando para além do limite, numa espécie de crença pagã no sistema, reconhecendo o aparato mecânico do cinema (como um típico artesão leal de estúdio) para levar o discurso cinematográfico a uma espécie de imagem-bruxa, um rasgo que revela um retrato de Dorian Gray desse mesmo cinema gramaticado pela tradição – Disparo para Matar (1966) é a melhor ilustração disso. Se toda a produção da contracultura e até as experiências mais radicais, como o cinema da Black Wave Iugoslava, tinham tema e alvo claros, como cartazes levantados, o que Monte Hellman traz em seus filmes é mais rarefeito, senão misterioso, sugerindo mais uma inspiração, um estado de coisas do qual nem ele próprio esclareceria um propósito (nem mesmo as ponderações que ele fez sobre Easy Rider são capazes de localizar Corrida sem Fim, filme que parece contraposto ao longa de Dennis Hopper mas que, na verdade, olha de outro lugar para a pradaria da contracultura). Dum processo que nasce de uma imersiva preparação, com escolhas nada a ver com o naif e sim com um compenetrado modus operandi de profissional do sistema, Hellman parte, portanto, da terra conhecida para chegar a um… parafraseando seu último longa, Road to Nowhere… lugar nenhum.

“Nenhum” não por nulidade: pelo contrário, é por estar destacado do piso ladrilhado pela cena do momento, trazer um sentido que estava flutuando em ondas longínquas do desconhecimento e da dormência. O cinema de Hellman constata algo indizível, e de foro existencial, a ver com uma sensação sobre as coisas, um vazio, uma fantasia, uma melancolia. É uma constatação menos objetiva, clara e direta sobre o mundo e efetivamente uma percepção mais epidérmica, emotiva e romântica sobre esse mesmo mundo que já não sustentaria sua própria história, sua narrativa, e daí, por exemplo, a melancolia no principal (único, aliás) personagem de Corrida sem Fim, G.T.O., ou a violência com a qual o arpoador Iguana Oberlus, em Iguana, empreende sua trajetória para se inserir à força numa história que poderia ser a da própria tradição dos grandes relatos da literatura naval de Robert L. Stevenson, Jack London etc. A difícil apreensão das coisas, agora deslocadas ou mostradas em seu avesso ou aos pedaços, deixa os personagens mais à deriva dos seus lugares-comuns, dos portos seguros que lavram uma falsa certeza sobre o cosmos. À lógica intransigente e maluca nos filmes de MH, só resta a expectativa e a sensação à flor da pele. Este é o assombro de seu cinema: a saída da curva que nos devolve uma constatação outra sobre a cena (da vida, do mundo, do cinema). Sobre Monte Hellman, o que importa é que seu cinema é sentimento.

A Volta do Pistoleiro (1978)

A Volta do Pistoleiro (1978)

Amore, piombo e furore

Esse sentimento vem do inesperado, do indizível, do implacável, da dor, da paixão, da boa descoberta, de um relato, uma história ou narrativa. Sentimento e narrativa: sentimento engendrando uma narrativa que traz um chão retirado ou uma dobra que viola a planície das certezas e revela uma situação inesperada. Não à toa, a descoberta desse sentimento, no cinema de Hellman, coincide com o melhor de sua filmografia, entre 1966 e 1978, entre Disparo para Matar e A Volta do Pistoleiro. São cinco filmes ao todo, pois Shatter não entra, é produção internacional da qual Hellman pulou fora da direção e que serve pra confirmar sua postura de artesão, de entender cinema come lavoro, típica da Hollywood da era clássica. Warren Oates, o mais sentimental dos atores do cinema (mais que Jean Gabin e Emil Jannings, arrisco), só não está em A Vingança de um Pistoleiro (1966). Os personagens de Oates acompanham ou sentem esse encontro com o sentimento que coincide com um processo que vai do familiar ao mistério, do sensível à sensação, da matéria ao espírito: um caminho que vai para um “nada” chamado energia… um “nada” para o que é fisicamente apreensível, mas fundamentalmente “tudo” para o que perpassa o sentimento. Jacques Tourneur, nos anos 1940, já trazia uma pulsão que emanava dos seres e natureza como quase toda a encenação no cinema clássico portava uma aura metafísica que se poderia chamar de energia (The Fountainhead, de King Vidor, é o primeiro a vir à cabeça), mas o diferencial do cinema de Hellman está em nos devolver uma verdade sobre o mundo talvez mais radical que aquela exposta pelas artes dos anos 1960, porque mais primitiva e, quiçá, menos politicamente engajada (porque anterior). O que importa é a materialidade, como o calor do sol, uma fonte de alta tensão, ou mesmo um vapor que sai duma pedra. O sentimento vem duma energia que emana daquilo que é filmado.

E aí voltamos para Warren Oates. Ator formado no barro controverso do cinema americano, passando pela toada ligeira de faroestes na TV para, no cinema, firmar-se mais como coadjuvante e estrelando por conta de ilustres como Peckinpah e Milius, num desses absurdos típicos de Hollywood em não reconhecer devidamente seus maiores, Oates (1928-1982) sempre deixou uma forte mancha por qualquer imagem pela qual tenha passado. Numa atuação mais física, mas provida de uma máscara atômica, com larga boca, duas poderosas fileiras de dentes e um olhar páreo ao de um Fonda ou Mastroianni, Oates deixa saliente todo um estado de ânimo, não só pela caligrafia de acting, mas por existir em cena e sugerir que todo grande acontecimento (sentimento) ocorre em seus subterrâneos. Seria a grande atuação existencialista da história do cinema, até mesmo num filme como Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (1974), de Peckinpah, onde o personagem sempre explode mas também represa todo um desgosto sobre o mundo, sabedor que sua missão é claramente desgraçada e que suas escolhas terão resultados substanciais. Um sorriso ou mexida de sobrancelha de Warren Oates comenta sobre todo um estado de espírito do mundo. Com Hellman, é como se Oates, aos poucos, tivesse o cabresto afrouxado, não mais prescindindo de direção e sendo ele mesmo: não ele em seu íntimo ou sem atuar, mas nesse momento raro no qual o ator chega ao ponto zero onde sua essência funde-se ao personagem.

Acompanhando Oates, é possível ver o arco entre a crueza da matéria e o Belo, entre a expressão técnica e a arte – e, mais interessante ainda, sem que A Vingança de um Pistoleiro e A Volta do Pistoleiro sejam distintos, sejam um antes e depois. Pode-se escrever que Monte Hellman lida, em todos os seus filmes pós-1966, com uma matéria sobrenatural (energia?) que emana de todas as coisas e também as penetra – isso aparece em sua forma mais consumada, radical e também sublinhada em Caminho para o Nada (Road to Nowhere, 2010), filme que parece voltar a Disparo para Matar, ambos trazendo não um estado de espírito mas uma trama que poderia ser de terror, mais que de mistério (como Stanley’s Girlfriend, aliás). O terror estaria, aliás, em A Vingança de um Pistoleiro, que apresenta uma situação assustadora ao estado de cultura, num triste acaso que faz de três honestos vaqueiros criminosos sentenciados à forca. É um azar mais radical do que o apresentado em Detour (1945), de Edgar G. Ulmer, porque ali existia uma moral que justificava (parcialmente) o desvio. No faroeste de Hellman, filmado com câmera bem atida ao chão, à terra, poeira, rochas, paisagem pedregosa e horizonte montanhoso impedindo qualquer aspiração divina do céu, o enguiço do mundo não vem do alto, de algo extraordinário como um cometa contra o qual os personagens terão de lutar para repor a justeza do mundo, mas sim algo que parece brotar da terra, do ordinário. Operando com um mínimo quase conceitual, descaracterizando os personagens mas mantendo as mortes (dos injustiçados!) numa chave mais direta e brutal, o filme mostra um tabuleiro infernal sobre o mundo, inclusive sugerindo que o último sobrevivente, Wes (Jack Nicholson), parcial “herói” da trama e nos planos finais cavalgando numa poeirenta e acidentada trilha, dará com os burros n’água em sua fuga (na terra, melhor descrevendo). Não há sentimento (o Belo) nesse vazio, pois nem há energia, apenas desolação.

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A Vingança de um Pistoleiro (1966)

Além da presença de Warren Oates, o que há em Disparo para Matar é consumação plena – e, portanto, energia combustível, mais precisamente, a sexual. O Belo estaria presente se aceito como código, truque na tradição da femme fatale do cinema noir, o que não gera sentimentos verdadeiros, mas sensações bastante intensas. O giallo, com seu acento sexual, tinge este faroeste com um mistério que acalca mais forte no quadro o desenho de um mundo regido por uma força obscura, que acessa os instintos mais primitivos dos seres para então conduzi-los a uma espécie de revelação. Dizem que é na morte que a revelação nos chega, mas, antes, o gênero do terror pode trazer uma verdade que, de tão primitiva e natural, ninguém quer ver. Ou quase ninguém: Willett Gashade (Oates) aceita o convite de uma misteriosa mulher (Millie Perkins) para encontrar um homem que lhe deve algo, mas que certamente seria Coigne, o irmão dele que fugiu após atropelar homem e criança. Acompanhado do ingênuo Coley (Will Hutchins), Willett acompanha a moça como se estivesse tomado por uma força superior, mas, numa formidável inteligência do filme, a atuação expressiva de Oates sugere que Willett não é movido apenas por indução, mas também por desejo próprio de descoberta. Hellman faz um filme com certa sugestão fantástica, mas sua natureza é a do cinema físico, de certo modo naturalista: a mulher tem pose de entidade da morte, mas na real ela é um estímulo carnal (motor e mortal) naquele ambiente desolador, onde falta água e vegetação na mesma medida em que o funcionamento das coisas parece escasso de razão, onde a morte parece vir da terra e os ânimos mantêm-se apreensivos. Não existe pior terror do que aquele que vem do natural, e já nos primeiros planos (um mostrando um cavalo olhando meio para baixo, “angustiado”, e o outro assemelhando o equino a Gashade, que olha também para baixo, antes de se voltar a uma possível ameaça na paisagem) está clara essa desoladora condição humana, sujeita a uma força ao nível do homem, jamais extraterrena, em que graça e desastre são decorrências naturais. O sentimento não, mas o sentido está na pauta de Disparo para Matar: Willett Gashade, apresentado pelo filme au niveau de um cavalo, resiste contra a adversidade de um mundo inóspito e exaurido, um mundo sem narrativa possível, e abraçará a causa suspeita ofertada pela mulher por motivo de revitalização e sentido próprio.

Há, também, uma busca por sentido cinematográfico, o da vitalidade física do cinema de aventura, pois o mal-estar ali é por conta de um abatimento que se poderia ser entendido como morbidez generalizada. O grande instante de vigor do filme é justamente na revelação, quando os pistões do discurso cinematográfico trabalham a todo vapor, quando a mulher encontra Coigne que, na verdade, seria irmão gêmeo na dramaturgia, mas que, no cinema, por semelhança, é o próprio Willett. Nada ingênuo, Hellman entende o custo material da empreitada cinematográfica (e humana), e em como a verdade demanda uma extração à moda petrolífera, de penetrar profundamente na crosta. Na cena, em slow motion que amplifica sua potência espetacular, senão fantástica, os dois Gashade tombam, um tentando impedir a moça de atirar contra o outro. Coigne tomba morto, e Willett, ao chão, lamenta pois sua última chance por vida cinematográfica está perdida, num instante em que Warren Oates desaba por dentro e dá ao filme uma dimensão trágica. Porque Coigne é o motor dramático do filme, e a mulher é uma espécie de energia fantasma que dá vida aos zumbis.

Hellman é um cineasta da tradição, e não desconstrói, apenas abre uma fenda e danifica a fluidez gramatical das imagens, faz um comentário através dum remendo, costurando uma dobra que aponta uma falha mecânica passível, revelando a estrutura complexa sob a qual está aquilo que poderíamos chamar de “imagem bela”, bem-acabada, ideal. O encontro dos irmãos Gashade poderia ser por graça da moviola, de colocar em sequência dois momentos filmados de Warren Oates. A arte, mas sobretudo o cinema, por sua facilidade de trucagem, torna possível o encontro entre corpo e espírito, entre um homem no mundo e o significado que ele coloca nesse seu estar no mundo. Hellman encontra a situação existencialista que nenhum outro filme da história do cinema conseguiu sintetizar. Não sem o custo do fotograma ser maltratado a trancos, mas há, nessa sequência, uma certa beleza que gera um sentimento. É um primeiro anúncio da possibilidade de graça no cinema de MH, logo interrompido pelo último plano do filme, com o sinistro pistoleiro Billy Spear (Jack Nicholson) vagando à morte desidratada do deserto, numa situação já conhecida em Greed (1924), de Stroheim, mas agora num juízo amoral, sem culpa, que sugere o inefável de se “morrer por morrer”, de ter sua imagem apagada do mapa, misturada à imagem genérica do mundo. Ainda sobre a obra e seu diretor: com ar de filme moderno europeu mas bem assentado no solo do cinema comercial, Disparo para Matar, barato e inventivo, seria um típico filme de exploração produzido por Roger Corman, não fosse justamente esse comentário hellmaniano que desconsidera o “devido lugar” e selagens definitivas; enquanto a imperfeição é presente mas integrada nos filmes de Corman, em Hellman ela será explicitada e cultuada como revelação estética. Não é ruptura, até porque Disparo para Matar seria um perfeito “filme de Corman”, mas é o tal rebite desestabilizador, impossível de ser aplainado.

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Laurie Bird em Corrida sem Fim (1971)

Sweet bird of youth

Em tese, Warren Oates já era todo sentimento e melancolia antes de sua passagem por estes cinco filmes. É Laurie Bird, então, quem lançará a centelha da graça no cinema de Monte Hellman. Jovem modelo descoberta por ele aos 18 anos, emprestou a Corrida sem Fim (1971) e Galo de Briga (1974) um sopro de vida que, em suma, era energia e movimento. No primeiro filme, o mais brilhante e conceitual do cineasta, ela é The Girl (a garota), única personagem viva, extraída in natura do contexto (ela cita Zodíaco, o serial killer do momento), numa espécie de inserção documental colocada em perspectiva (e interação) com os outros três personagens, The Driver, The Mecanic e G.T.O., todos estes apenas significantes, referências para digressões além-filme, e não à toa com nomes remissivos a máquinas. Será The Girl, jovem que transita em liberdade pelo mundo, que faz uso mas não culto à estrada (essa grande detentora da tradição narrativa do cinema), quem atiçará os ânimos românticos dos dois amigos do Chevrolet 1955 e dará força a um devaneio de G.T.O., o romântico motorista dum Pontiac GTO amarelo. Mais, é por ela que será possível perceber uma energia dentro do The Driver e The Mecanic

Em Galo de Briga, Laurie Bird é pulsão sexual e descontrole, em saudável contraposição à pulsão de morte que move as rinhas de galo, à determinação imersiva de Frank (Warren Oates) e aos projetos de vida certinhos e morféticos, como o do irmão de Frank. O próprio Frank acha que “as coisas deveriam esperar e não mudar de lugar”, mas ele mudará seu modus operandi para retomar seu projeto de vida: brilhar na briga de galo. O título original – Cockfighter – deixa claro que o galo de briga é ele, inclusive porque “os galos não precisam que se leiam poemas, eles podem brigar mesmo sem cultura”. Frank é um homem tão livre que precisa reencontrar o sentido do seu amor pela briga de galo. O sentimento, único meio de se constatar uma beleza – o que seria uma forma de liberdade na medida em que tudo é passível de interação – emana do rosto de Oates para os nossos olhos como uma intimidade, um encontro de espíritos. Fiel à gramática do cinema, Hellman utiliza o slow motion para revelar o Belo e o estado de graça numa situação brutal – a dos galos dilacerando-se na luta. O amor entre Frank e a namorada só não é correspondido porque eles sentem o mundo diferentemente. O sentimento é também um modo de vida, de reconhecimento e interação. Talvez seja por conta do sentimento que Monte Hellman seja um tanto diferenciado, apartado da cena e do que se estabeleceu como Belo.

Briga de Galo (1976)

Galo de Briga (1974)

Em 1978, quando realiza A Volta do Pistoleiro (China 9, Liberty 37  ou Amore, Piombo e Furore, no original italiano), produção complicada e devassada por contingências várias, Hellman parece ter encontrado definitivamente essa instância sentimental para apresentar na sua cena cinematográfica. O título em inglês serve melhor à ideia recorrente no cinema de MH de que os seres não têm controle absoluto sobre o mundo: a placa que indica a direção para duas cidades, China 9 e Liberty 37, não muda um curso que parece o de um bumerangue, dois destinos que carregam em sua geografia, ambos, prazer e dor, projeção idílica e realidade inefável. Clayton (Fabio Testi) é um fora-da-lei sentenciado à morte que ganha liberdade ao custo de matar Matthew Sebanek (Warren Oates), um mineiro que não quer vender sua terra a uma companhia férrea. Cabe aqui a fotografia de Nestor Almendros, cuja marca é a de um registro fiel a uma certa transparência, mas também banhada por um branco-névoa. Mas é Oates quem carrega dentro de si todo um terremoto sentimental, numa composição formidável pela sutileza com a qual modula os ânimos de Frank, homem rude mas justo, violento mas sensível a ponto de abrir o coração a Clayton. Ele abre o filme, tocando gaita num cavalo, em chave inegavelmente mais solar do que a do “macabro” Disparo para Matar: um bruto que também ama, que constrói uma amizade tão ideal quanto perecível, com uma traição que não será por bala, mas por algo mais forte e inevitável: por sentimento… pela esposa de Frank, Catherine, a grande reserva idílica deste filme que, em essência, é uma obra sobre amor, sentimento, beleza e vida.

Atido ao chão, aos animais, às pedras e a tudo que não remete ao que se concebe como paraíso, ainda assim A Volta do Pistoleiro tem sua aparente aridez borrifada com o sumo de uma graça quase renascentista, duma remota tradição de beleza ideal. Hellman consegue, portanto, vitalizar um sentido supremo (e um sentimento) ao que era dado como inóspito e agressivo. A cena de sexo entre Clayton e Catherine é um filme à parte, com o slow motion novamente dedicado a revelar algo escondido na imagem, uma energia que atinge as sensações como se fosse um novo Belo, mais singular e específico… e por isso passional, encantador.

Não é momento de exceção na obra de Hellman: só um artista de sensibilidade aflorada, amante, conseguiria extrair uma beleza tão fundamental, definitiva e etérea como a de Amelia Cooke em Stanley’s Girlfriend (2006), num registro distinto do que seria o de uma femme fatale. Mesmo sombrio, o sentimento é belo, porque é uma prova de vida, de resistência e interação com o mundo. A violência com a qual Iguana Oberlus empreenderá vingança contra seus agressores não o retira necessariamente das sombras e da tirania, mas o coloca também em contato com a luz e com a vida… literalmente, com um bebê nas mãos que poderá ser chance de uma melhor história. Em Iguana (1988), aliás, Hellman faz o impossível que é só mesmo factível na arte: condensar um drama de proporção cósmica ao espaço delimitado de uma obra cinematográfica de longa metragem.

Corrida sem Fim (1971)

Corrida sem Fim (1971)

Road to somewhere

Corrida sem Fim é a obra-prima de Hellman muito por essa condensação de um largo estado de coisas (do mundo e também do íntimo do cineasta).É, por isso, o filme que merece um espaço destacado, quase o de uma epígrafe maior e deslocada do topo para o fim do texto e que comenta sobre “a arte de Monte Hellman”. Como sempre, MH opera com o mínimo, o que calibra melhor a forma conceitual do filme, que vai comentar sobre cultura, comportamento, espírito e sentimento do homem moderno. A sequência mais conhecida é o epílogo, quando o fotograma emperra e queima, fundindo The Driver à maquina e à imagem cinematográfica, uma aspiração bastante moderna e pós-anos 1950 e cultura pop, pois engajada numa consciência mais íntima (e tecnológica) com a realização artística. Salvo G.T.O., não há propriamente personagens no longa, e sim motivos, presenças conceituais com suas psicologias inacessíveis (ou quase, graças ao implemento da The Girl de Laurie Bird). The Driver e The Mechanic estão em paridade com diversos itens consagrados na iconografia cultural dos EUA do século 20: estradas, rádios automotivos tocando música pop, marcas impressas em bombas de combustível, tipos saídos da América profunda, pastos, policiais, disputas automobilísticas que sugerem uma rebeldia juvenil, Coca-Cola, lanchonetes de beira de estrada etc. E, claro, os dois carros, o Chevy 55 e o Pontiac GTO, o primeiro depurado à mais eficiente funcionalidade, e o outro, uma exposição estilizada do mito da velocidade automobilística. É um cenário extraído do momento, os EUA da contracultura, mas observado de outra plaga, inclusive constatando um certo vazio e estado de espírito que não estariam muito condizentes com o que seriam os EUA de 1970, e sim com um clima mais a ver com a desorientação beatnik dos 1950. A escolha pelos músicos James Taylor e Dennis Wilson, respectivamente nos papeis do motorista e do mecânico, teve um conteúdo de acaso, mas o resultado é de forte deslocamento: ali estavam dois artistas do cenário musical do momento dando corpo a um possível destino dos incomodados que puseram o pé na estrada como negação ao alienado mundo burguês. Os dois personagens são, em definição, projeções quase fantasmáticas de uma história perdida, inclusive confirmando um lugar quase ideal, o de levar à essência utópica o “pé na estrada”, apostando corridas de arrancada para se sustentar e observar em distância segura o “outro mundo”. Do que é vago, apreende-se um espírito, uma sensação, um sentimento. Hellman não é leviano, inclusive adotando o registro documental em várias passagens do filme. E, aparentemente o da geração beat, o espírito de confusão e crise que ele captura, é o dos EUA de 1970.

A sensação de vazio, supostamente preenchido por uma nova inquietude nos anos 1960, agora politizada, parece presente em Corrida sem Fim. Sim, é o olhar de um existencialista, o de Hellman, mas seu ceticismo contribui para uma revisão. Entra em pauta, novamente, Warren Oates, aqui como G.T.O., personagem melancólico que destoa, em aparência e em sentimento, dos rapazes, da mocinha e de quaisquer outros que pegam carona com ele. A revisão de MH é mais atida ao presente, mais constatando um clima; a de G.T.O., grande deslocado do filme, aquele que seria um beatnik perdido, náufrago querendo voltar ao trem da existência, é mais radical, porque vai a um material de tradição e, por isso, antipático naqueles tempos. Por isso, G.T.O. vaga pelo mundo, pescando pessoas e recuperando ideais tradicionais de ter uma casa no campo ou trabalhar num ramo típico do imaginário literário de um Hemingway ou Albee. Ele possui o romantismo de outrora, mas é um homem moderno, do presente, ciente de um grande arcabouço de tradições narrativas que podem lhe dar um lugar no mundo, um nome real em vez de um empréstimo impessoal vindo de um carro. Em perspectiva, percebe-se que, a bordo do seu Pontiac GTO amarelo pegando caronistas e lhes contando uma intimidade que é pura ficcionalização puxada de material a priori, G.T.O. é pura resistência e utopia.

Sua presença marcante é por força de Warren Oates, que consegue transmitir todo um sentimento profundo que os grandes relatos da tradição oral, da escrita e do cinema nos provocam. Se por saudade ou desorientação, o que importa é que a melancolia é um sentimento em si, tão íntimo quanto coletivo. G.T.O., enfim, traz todo um movimento ao filme, uma ação, uma vida – ser é, antes de tudo, agir. Corrida sem Fim é o mais definitivo filme de MH por conseguir trazer, mesmo à revelia das ideias prontas, um estado de espírito de uma época e de um modo de expressar o mundo (a arte e a linguagem). A desorientação e o incômodo existencialistas que marcaram em alguma medida a formação de Monte Hellman de algum modo repete-se nas ações do artista (seus filmes, no caso).

Sem um carimbo que lhe seja justo, pode-se arriscar, pelo menos, um parentesco artístico: Frank Zappa. Sim, Zappa, artista mais radical que o cineasta, mas que também esteve um tanto apartado do cenário da contracultura, muito por questionar certas tendências do momento, como o uso de drogas para alcançar um outro estar no mundo etc. – e mesmo realizando uma obra sonora monumental, definitiva sobre a pós-modernidade da música nos anos 1960. Também reconhecedor da tradição, como Hellman, Zappa iria à música clássica para devolvê-la ao mundo tingida por sons elétricos do rock, da música pop e do jazz. Estudioso dos efeitos provocados pela banda sonora, o músico mantinha seu genial senso de improvisação freado para pensar mais intelectualmente a composição numa estrutura arquitetada, repetindo passagens, ao longo de uma música, para assim penetrar os ânimos do ouvinte com um “som aguardado”.

E, assim como James Taylor e Dennis Wilson foram tirados da música para dar corpo a Corrida sem Fim, forçar o crítico a recorrer a um músico para tirar um cineasta do “lugar nenhum” parece mais uma das intervenções que Monte Hellman volta e meia faz para acessar uma espécie de sentimento.

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