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Do Chile para outro lugar

“Marijuana ou morfina?”: esta era uma das piadas de Pablo Neruda, ao receber os amigos. Em vez de potes com as inscrições de “sal” e “pimenta”, colocava no saleiro e no pimenteiro as palavras “maconha” e “morfina”, como se oferecesse drogas pesadas, que ajudassem na digestão. Passam-se os anos, Neruda morre e o corpo foi exposto em uma de suas casas – aprumado, de terno, no caixão. A poucos passos dali nascia a noite chilena, que havia recebido Augusto Pinochet doze dias antes, em setembro de 1973.

Neruda acabou em lancheiras, cartões postais, souvenires. Os seus restos foram incomodados algumas vezes para exumação – bem menos que os de Evita –, e são presença constante no imaginário do Chile. O conterrâneo Antonio Skármeta escreveria O Carteiro e o Poeta, sobre o tempo de Neruda na Isla Negra, litoral do país. Virou filme, ganhou Oscar, venceu em Hollywood. Sarcástico, bonachão e ex-embaixador como Pablo, Skármeta possui o estilo seco, sem gordura, mas com aquele salitre colorido que vem da terra de Violeta Parra.

De repente, não mais que de repente, todo esse continente parou no colo de Selton Mello. O Filme da Minha Vida é adaptação de Um Pai de Cinema, outro romance de Skármeta. Que o cinema brasileiro está acostumado a adaptações, isto todo mundo sabe. O Padre e a Moça (1965); Quelé do Pajeú (1969); Doidas e Santas (2016), por aí vai. Mas cair no desfiladeiro de um mundo tão especial e transformá-lo em algo brasileiro – com referenciais nossos –, é o verdadeiro busílis. Porque o regional passa a ser universal. A literatura passa a ser cinema. E a beleza de O Filme da Minha Vida explode.

Para o terceiro longa-metragem dirigido por Selton Mello, foi necessário tirar a alma mapuche e o estilo estoico-poético que é tão característico do Chile, grudado no oceano Pacífico e com quilômetros de desertos. O Rio Grande do Sul aparece como lugar de fronteira – elemento também encontrado no recente Mulher do Pai (2016), de Cristiane Oliveira – e habitado por uma colônia que parece italiana. No entanto, a trama continua longe das grandes cidades. Esta foi a chave para retratar o livro de Skármeta. O povo provinciano é o motor de Um Pai de Cinema, assim como o carinho do filho pelo pai.

Tony Terranova (Johnny Massaro) é um rapaz de vila, em um lugar qualquer no sul do Brasil. Precisa saber o que aconteceu com o pai, o francês Nicolas (Vincent Cassel), que desapareceu. A mãe de Tony, Sofia (Ondina Clais), sofre de desgosto. O quarentão Paco (Selton Mello) ajuda o garoto, para que esqueça Nicolas.

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Paco é bruto, cuida de porcos, fala alto, bate na mesa. Tony é doce. Luna (Bruna Linzmeyer) é a adolescente que se interessa por fotografia, no estilo Nouvelle Vague de jovem doidinha no rincão perdido. O filme está em algum ponto dos anos 1960. “I Put a Spell on You”, com Nina Simone, é de 1965. “Ronda das Horas”, versão brasileira de “Rock Around The Clock”, 1955. “Hier Encore” foi gravada por Charles Aznavour em 1964 (e replicada obsessivamente em vários idiomas). Alguns detalhes da decoração remetem ao final dos 1960, outros aos 1950. A ambientação segue nesse estilo vintage e, ao mesmo tempo, faz com que nosotros, os monstros do século XXI, nos aproximemos do tempo em que o sexo era surpresa e encanto.

Exemplo: Tony dá aulas no colégio da vila. Um de seus alunos, Augusto (João Prates), quer ir à zona para transar com as prostitutas. E aí surgem alguns dos momentos mais saborosos do filme. Augusto fala de mulher com os olhos abertos e aquela jocosidade de Juquinha – o protagonista das piadas que contamos no recreio do colégio, quando não havia nenhum adulto por perto.

A moça do bordel é uma figura amistosa, quase psicóloga. Antonio Skármeta a fazia um pouco mais mecânica, o que é transformado no roteiro. Camélia (Martha Nowill) vira licença poética: a prostituta com os olhos cheios de água, no prostíbulo de luzes vermelhas, a versão sulista do Perdida (1976), de Carlos Alberto Prates. Atenção para a presença de Skármeta no salão, contando um chiste a Paco.

Tony adora o feminino sem medo, como as figuras da mãe, de Luna e de Petra (Bia Arantes). O diretor compreende esse detalhe fundamental no psiquismo do personagem. A certa altura, Selton coloca as mãos delicadas de Luna e de Petra na tela, como um quadro bonito, que se quer tocar e beijar. As mãos, em uma mulher, são tudo.

Curioso que O Filme da Minha Vida e Um Pai de Cinema endeusem o pai. Geralmente, a mãe é a representação do amor pelo filho. Acontece que Nicolas é a mãe: alguém que apresentou o mundo a Tony e deixou um legado no garoto. O protagonista tem a lembrança de um pai bom. Com essa inscrição paterna positiva, ele é capaz de ser até mesmo um referencial masculino para Augusto. E afinal, não é esta a razão de haver antepassados? Somos governados por nossos mortos.

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Terranova corre de um lado para o outro na trama, miando feito um gato e puro de coração. Acabará sendo atropelado pelos eventos e, após todo o épico de O Filme da Minha Vida, será purificado por um templo sagrado: o cinema. Aliás, as sequências na sala escura lembram Carlos Reichenbach, com quem Selton trabalhou em Garotas do ABC (2003). Vira e mexe, Reichenbach rodava cenas de plateias assistindo a filmes. Diga-se o mesmo de Rogério Sganzerla. É a metalinguagem dos babyboomers, a serviço de 2017.

Interessante notar que Selton Mello estreou na direção com Feliz Natal (2008), já na esteira de uma geração que começava a olhar para o cinema brasileiro com ânimo renovado. Esqueceu os cânones de sempre, aproximou-se do cinema popular. Esse cuidado aparece em O Palhaço (2011), que traz tanto da sensibilidade de Xavier de Oliveira e a proposta de um Brasil rural, oposto do meio urbano que marcou Selton, galã e ator de televisão.

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Em O Filme da Minha Vida, temos a presença de Rolando Boldrin como maquinista de trem. A mesma estratégia havia sido usada nas participações de Ferrugem, Jorge Loredo e Moacyr Franco em O Palhaço, ou de Darlene Glória, em Feliz Natal. Parece um vínculo afetivo com intérpretes que saíram dos holofotes. A cinefilia é, portanto, um traço marcante para Selton Mello – que repete com Marcelo Vindicato a parceria no roteiro, como nos outros longas-metragens. Quando era entrevistador no programa Tarja Preta, Selton acompanhou por anos a fio a fina flor do cinema brasileiro. Ninguém sai incólume desse contato, é uma experiência mística. E talvez um rito de passagem artístico, tanto quanto este O Filme da Minha Vida. Ao imaginar contar a história sobre um lugar do passado, o diretor apontou para o próprio futuro, cada vez mais certo de onde quer chegar.


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