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O gozo interrompido

Seria possível invocar as glórias heroicas da história do cinema para lamentar a que ponto chegamos com Dunkirk. Para ficar no terreno das superproduções em 70mm e num dos ídolos de Christopher Nolan, bastaria rever a sequência da tempestade de A Filha de Ryan (1970), para a qual David Lean teve de esperar um ano inteiro na costa irlandesa, com a equipe e o elenco, antes de poder filmar. Enquanto Lean aposta no encontro irrepetível entre as forças da natureza e as do cinema, transformando a chuvarada em um ataque violento aos sentidos que desestabiliza as coordenadas do melodrama, Nolan reduz tudo o que filma à escala de sua moral de almanaque e faz com que todas as locações pareçam integrar o mesmo cenário de videogame. Se até pouco tempo atrás usavam-se os efeitos especiais para mimetizar com mais acuidade a realidade (pense-se, por exemplo, na mais-valia do efeito de real associada a outra sensação industrial recente, O Regresso), agora filma-se em locação para chegar à mesma textura do CGI. Na mesma direção, seria possível traçar o cânone do espetáculo bélico – Ford, Eisenstein, Fuller, Walsh – e achatar o nome de Nolan pela mera associação, ao constatar a quantos anos-luz estamos desses cineastas quando nos defrontamos com personagens tão irremediavelmente previsíveis e com um tratamento tão pueril da guerra.

A Filha de Ryan (1970), David Lean

Dunkirk (2017), Christopher Nolan
A Filha de Ryan (1970), David Lean; Dunkirk (2017), Christopher Nolan

Mas vestir o traje da viuvez e carpir uma vez mais diante do desastre do cinema industrial contemporâneo talvez seja chover no molhado.

Seria possível, também, jogar o pretenso jogo do filme, pagar o ingresso do IMAX 70mm e tratá-lo como a peça de entretenimento elevado à máxima potência que ele parece querer ser. Então perceberíamos como a última bolacha do pacote do cinema industrial é um vasto cemitério de ideias cinematográficas desperdiçadas. A escolha de filmar o galã com o rosto coberto e quase sempre em silêncio, a pilotar friamente seu avião como um super-herói da eficácia seria um achado, não fosse a necessidade de mostrá-lo finalmente de corpo inteiro, no pôr-do-sol, entregue em sacrifício às tropas alemãs como um Cristo de editorial de moda. A baixíssima cota de diálogos – se comparada à falação dos blockbusters médios – seria um alívio, não fosse a inimitável capacidade do roteiro de operar como as famigeradas “legendas para cegos” que costumam acompanhar as fotografias da Folha de S. Paulo (um soldado olha para o céu dominado pelos aviões alemães e exclama: “onde está a maldita força aérea?”, quando o espectador já está cansado de saber da falta de quórum da Royal Air Force na costa francesa).

Bem longe de qualquer retorno ao cinema de atrações, que certa produção acadêmica advoga para a Hollywood atual, Dunkirk apenas simula um investimento nessa direção, no mesmo movimento em que permanece fielmente fincado no bom e velho discurso para boi dormir. Se num filme como Incontrolável (2010) – aliás, programado por Nolan em uma retrospectiva no BFI que aconteceu enquanto Dunkirk estava em cartaz – Tony Scott se utilizava da máquina hollywoodiana para produzir uma rara experiência de energia cinética, um tour de force de tirar o fôlego, enquanto implodia a narrativa televisiva ao incorporá-la criticamente à própria textura do filme e desviá-la como um situacionista no seio da indústria, Dunkirk abusa desesperadamente de todo tipo de instrumento retórico visual e sonoro para disfarçar sua encenação pífia, enquanto se rende a uma narrativa histórica for dummies sem nem pestanejar.

Incontrolável (2010), Tony Scott
Incontrolável (2010), Tony Scott

A absoluta ausência de senso de humor de Nolan é só mais um sintoma do abismo que o separa de Scott, que desde filmes como Dias de Trovão (1990) e Amor à Queima-Roupa (1993) não cansou de jogar malandramente com o cânone do filme de ação ao injetar-lhe doses cavalares de vulgaridade, enquanto a démarche de Nolan é justamente a contrária: agregar valor, vestir com trajes de nobreza e solenidade o que – com sorte – seria de uma fanfarronice exuberante. É assim que o investimento pesado nas sequências de ação seria benfazejo, se a ação não fosse sempre interrompida para dar lugar a um discurso patriótico que faz os desenhos animados de propaganda norte-americana da época da Segunda Guerra parecerem peças retóricas sofisticadíssimas.

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Der Führer’s Face (1943), Walt Disney
Der Führer’s Face (1943), Walt Disney

Mas assumir a tarefa da descrição do fracasso talvez seja enfadonho demais.

Seria possível, ainda, levar o filme a sério e analisar suas operações discursivas, para perceber como o plano-geral dos barcos ingleses atravessando o Canal da Mancha para resgatar os soldados na praia ao som da música triunfalista de Hans Zimmer é o equivalente do final de Der Führer’s Face (Walt Disney, 1943), em que o Pato Donald acorda do sonho no qual habitava um inferno nazi – devidamente trajado com seu pijama de listras e estrelas – e confunde a sombra na parede com uma imagem de Hitler, logo antes que um reenquadramento nos revele que se trata da Estátua da Liberdade. O retorno triunfal ao home sweet home, a catarse do conforto reencontrado na identidade nacional é exatamente a mesma. Com a diferença de que o ufanismo didático de Walt Disney faz sentido em meio ao traço caricatural do desenho, enquanto que o discurso de Churchill lido pelo soldado ao final de Dunkirk (um reforço da identidade britânica em tempos de Brexit vem bem a calhar) é apenas uma prótese mal-ajambrada em meio a um filme que retrata (inadvertidamente, se nos fiarmos no discurso final) a soldadela britânica como um bando desorientado de rapazes lutando pela sobrevivência a qualquer custo.

Dunkirk (2017), Christopher Nolan
Dunkirk (2017), Christopher Nolan

Mas isso talvez seja levar Dunkirk a sério demais.

Uma possibilidade alternativa seria baixar a guarda e tratar o filme como uma reunião de momentos isolados, de exercícios de encenação mais ou menos bem-sucedidos. Forçando um tanto a barra, talvez chegássemos a acreditar que há uma sequência que promete muito. O núcleo dos covardes e dos fura-filas encontra um barco abandonado na praia e se esconde. De repente, tiros de fuzil começam a perfurar o casco, até que o mais esperto se dá conta da situação: alguém está praticando tiro-ao-alvo lá fora. Mas o que poderia se transformar numa sequência extraordinária – a situação entre ridícula e terrível, o confinamento, o jogo com a pressão do fora-de-campo – é logo arruinado pelo sempiterno coito interrompido da montagem, que não permite que a tensão da cena se instale e logo corta para algum outro momento aéreo ou para a cara de pastel do coronel Kenneth Branagh na praia (já não me lembro bem, mas no fundo não importa para o quê – o importante é cortar). O argumento da eficácia talvez seja o menos pertinente para um filme como Dunkirk, uma vez que a estrutura dramática em multiplot e a montagem funcionam como uma prodigiosa máquina de arruinar climas e desperdiçar o pouco que se conseguiu com a encenação.

Dunkirk (2017), Christopher Nolan
Dunkirk (2017), Christopher Nolan

Mas insistir nesse caminho talvez seja permitir que os termos do diálogo sejam capturados por uma abordagem estritamente tecnicista, que certamente interessa muito a Nolan e aos distribuidores do filme, mas muito pouco ao resto de nós.

Por outro lado, talvez aí, no cerne do jogo de sedução desse imenso trambolho arrasa-quarteirão resida algo pertinente, que justifique a escrita sobre Dunkirk. Na tentativa de ir um pouco além da lamentação inevitável, seria possível tentar perceber a forma de Dunkirk como uma cristalização didática de certa maquinaria do espetáculo contemporâneo. A trama narrativa e plástica do filme é o último estágio de uma economia libidinal que está por toda parte. Já sabemos que o imperativo do gozo é absolutamente central no atual estágio do capitalismo (basta atentar para a retórica dos comerciais, de telefones a planos de saúde, que só dizem uma coisa: carpe diem), mas talvez a experiência de Dunkirk ensine uma outra lição.

Primeiro, a voracidade. Se um filme pode circular à vontade em sete diferentes versões, com níveis muito diversos e violentos de mutilação nas bordas da imagem, é porque a própria noção de limite – central para o pensamento do cinema até nossos dias – parece ter perdido o sentido. No entanto, diferente de todas as tentativas que buscaram esgarçar o cinema, implodi-lo, forçar seus limites – de Andy Warhol a Leviathan (Lucien Castaing-Taylor & Véréna Paravel), de Chantal Akerman a Jacques Perconte –, Dunkirk só é voraz até a página dois. Nunca a ponto de sequer ameaçar seu compromisso inabalável: manter as coisas exatamente como estão. No IMAX, a imagem ocupa toda a tela, que por sua vez ocupa quase toda a parede, mas nada de importante acontece visualmente fora do centro do quadro; o som nos envolve por todos os lados, mas sempre de maneira uniforme a cada vez e sem a menor sombra de desarmonia interna, como uma Blitzkrieg sonora que comporta alguns momentos de calmaria, mas volta sempre à carga; a música, com seu tema imponente e sua estrutura melódica em loop, inteiramente baseada na ilusão auditiva que simula um crescendo interminável, assume a tarefa de um assédio sensorial ininterrupto. Aliás, o tom de Shepard – a partir do qual Hans Zimmer constrói a trilha inteira – é a ferramenta perfeita para simular um estado de constante angústia e expectativa, a tradução musical precisa do gozo interrompido que adia o prazer real para relançar a promessa na sequência seguinte.

Dunkirk (2017), Christopher Nolan
Dunkirk (2017), Christopher Nolan

Mas é então que a tão comentada estrutura narrativa do filme cumpre seu papel e revela o funcionamento atravancado da promessa do prazer. A cada vez que o filme troca de chave entre os três espaços-tempos (a praia em uma semana; o mar em um dia; o espaço aéreo em uma hora), constrói-se algo mais do que a versão mais pateta dos multiplots que viraram moda com Iñarritu, Paul Haggis, essa turma toda. À diferença de todo um conjunto de cineastas que investiu na multiplicidade de pontos de vista na história do cinema (de William K. Howard a Brian De Palma, para ficar no campo do cinema narrativo em Hollywood; de Dziga Vertov a Tomonari Nishikawa, se nos permitirmos escapar dele), a alternância de perspectivas em Nolan é um apêndice visual; não altera o que já vimos, não problematiza, não desestabiliza o olhar – apenas oferece um suplemento de prazer, que abusa da artilharia pesada da superprodução na tentativa de manter o interesse. Para além da constatação de que a atividade do espectador se resume a jogar um jogo de cartas marcadas ou a ver a mesma cena “por outro ângulo”, como nas transmissões esportivas na televisão, o que Dunkirk revela é uma maquinaria que, repetidamente, promete intensidade a golpes de retórica, apenas para obstruí-la (antes do clímax) e, na troca seguinte, recomeçar a promessa vã. A constante intercalação entre os plots funciona como um princípio de dosagem e regulação dos estímulos, que mantém uma expectativa de futuro sem oferecer nada de concreto no presente.

A cada sequência, tudo aparentemente aponta para uma maximização do gozo sem fronteiras (a começar pelas do quadro), mas, muito antes de que alguma potência se sedimente, a interrupção relança a partida destinada ao fracasso. É um imperativo do gozo regulado, um princípio do prazer constantemente interrompido prematuramente e cuja promessa é relançada em seguida, que condena o espectador a um eterno presente, esse sonho molhado dos poderes contemporâneos. Na sempre renovada espera de um futuro vão, permanecemos atados a um presente com o tanque de combustível furado, que demanda investimento constante para sustentar uma intensidade pífia, um pouco como as máquinas de videogame arcade dos anos 1980 que nos faziam gastar fichas e fichas na ingênua tentativa de conseguir algum prazer nas tardes modorrentas dos trópicos. Ou como a enxurrada de séries televisivas que sustentam a expectativa para a semana seguinte à base de cliffhanger atrás de cliffhanger, mesmo sem oferecer nada de memorável a cada vez. O trabalho é manter o espectador numa espécie de limbo temporal contínuo entre uma experiência e outra, com um olho semicerrado no peixe do presente e outro bem aberto no gato do futuro (nunca com os dois na tela), procedimento que Dunkirk traslada para o interior de cada sequência do filme.

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l Navy – Ben’s Story [Royal Navy Recruitment, 2015]
l Navy – Ben’s Story (2015), Royal Navy Recruitment
Dunkirk talvez seja apenas o exemplo mais didático, mas não tão eloquente quanto o comercial da marinha britânica exibido antes do filme na sala londrina (qualquer semelhança com as banquinhas de alistamento na porta dos cinemas que exibiam Rambo II – A Missão nos Estados Unidos em plena Guerra Fria não é mera coincidência). No vídeo de um minuto, uma voz over em primeira pessoa e um conjunto veloz de imagens com textura de arquivo pessoal contam a história de Ben, um rapaz que largou a escola aos dezesseis, começou a trabalhar num bar, mas logo trocou as cervejas pela Royal Navy, onde encontrou uma nova casa, conheceu pessoas, viajou pelos sete continentes, virou homem. A narrativa da superação e da descoberta de si, a rima que emula certo rap contemporâneo (I upped my game/made a leap/I learned to think on my feet/and off them) e injeta ritmo, a introdução de música de balada que aumenta a intensidade aos poucos, as imagens que parecem extraídas do Instagram de algum mochileiro bem-sucedido, tudo aponta para um território excitante, charmoso, adrenalina pura. Tudo é tão cool que talvez alguém nem se lembre do produto oferecido pelo comercial. Como sempre, o conteúdo é o de menos: um episódio da Segunda Guerra Mundial, um filme de super-heróis, um comercial de plano de saúde ou uma campanha de alistamento militar. O que importa é manter a expectativa. O substrato desse imperativo do gozo interrompido, sua operação é uma só: oferecer um prazer a conta-gotas no presente e inflá-lo com a promessa de futuro, enquanto se instila o desejo que alimenta a máquina do mundo tal como o conhecemos.


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