O Regresso (The Revenant), de Alejandro González Iñárritu (EUA, 2015)

setembro 1, 2016 em Colaborações especiais, Em Cartaz

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A ilusão do hiper-realismo
por Alejandra Rosenberg (colaboração especial)

Como se estivesse em uma sala de taxidermia e etnografia de um museu de história natural, o espectador de O Regresso adentra, pela tela, os arredores do rio Mississippi no século XIX. Nesse cenário sangrento e bucólico, a história de sobrevivência de Hugh Glass (Leonardo DiCaprio) é contada. Não se trata, apenas, de uma história baseada numa história real; especificamente, sua intenção é ser “tão real quanto possível”. Alejandro G. Iñárritu nos transporta para um Oeste virgem e violento, exótico para nossos olhos metropolitanos, no qual o espectador é absorvido pela altura das árvores, a umidade do solo, a imensidão da floresta. Assim, O Regresso revela e ostenta a visualidade de uma terra (des)conhecida – uma terra que conhecemos primordialmente pelo cinema, mas que Iñárritu tenta re(a)presentar através de outra lente: a lente do hiper-real, da veracidade dos fatos.

Contudo, é a fotografia de Emanuel Lubezki o nosso verdadeiro guia nessa revisitação de uma terra que, apesar de extinta, continua viva no imaginário coletivo. Onde quer que olhemos, nos encontramos imersos na vastidão da paisagem retratada por Lubezki, como se andássemos em um panorama 360º do século XIX. A fotografia hiperestilizada nos conduz por uma perspectiva plural dessa terra em estado bruto que varia da grande angular e o close extremo para a perspectiva de um pássaro; da vagarosa deriva sobre o rio para o abrupto rasgo do ar. E, por vezes, o movimento orbital e orgânico da câmera (também marcante em Gravidade, de Alfonso Cuarón) para de girar pelos diversos espaços em sua ilusão de 360º e adere ao nosso ponto de vista. Em outras palavras, a fotografia de Lubezki é polimorfa; posso facilmente planar sobre pessoas reduzidas a formigas, adotando a visão de uma águia, e também tomar nosso ponto de vista privilegiado, como se o espectador fosse outro personagem diegético do filme. Por adquirir tanto a perspectiva em primeira e terceira pessoa, nós, espectadores, rastejamos pela lama enquanto seguimos nosso colega-personagem; ficamos tão perto de DiCaprio que nossa visão é borrada por sua respiração; estamos tão presentes na luta que o sangue espirra e mancha nossa visão. A câmera, então, é tão interna e ativa no desenvolvimento dos acontecimentos quanto externa e imparcial. Somos participantes das ações, como que jogando um vídeo game de open world, e meros observadores do que acontece, como um drone passivo sobrevoando sobre um território desconhecido que, repentinamente, recebe ordens de atacar.

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O Regresso se parece com um vídeo game não apenas em sua imersão do espectador via perspectiva em primeira pessoa e uma ilusão de “panorama” do enredo. A característica de vídeo game está também presente na construção de sua narrativa: fase a fase, nosso personagem principal ganha força a partir das adversidades a fim de atingir seu verdadeiro objetivo. Como a subir uma escada, acessamos a próxima adversidade uma vez que a última foi resolvida. Uma linearidade horizontal formada (quase) por episódios de sub-plots verticais e autocontidos: uma vez passado x, podemos progredir para y; uma vez Glass ter lutado contra o urso, ele tem de sobreviver ao ataque de seu colega e, uma vez passado isso, ele tem de cavar, com o corpo imobilizado, para sair de sua cova.

Essa aventura por fases funciona como uma Odisseia na qual Penélope está morta de início, e cujo objetivo da viagem é cumprir uma promessa para a esposa falecida: vingar-se pela morte de seu filho. Paralelamente, há a busca de outro homem que funciona como uma inversão do gesto icônico de Ethan (de Rastros de Ódio, de John Ford): o chefe dos Arikara também enfrenta uma odisseia em busca de sua filha Powaqa, sequestrada por homens brancos. Essas perseguições podem parecer opostas mas, em essência, ambas expõem uma fórmula comum: as únicas duas mulheres “ativamente” presentes em O Regresso servem simplesmente como um McGuffin passivo para os protagonistas homens. As mulheres são faíscas que acendem a chama da ação, mas nunca serão parte dela. Mais que isso, são completamente dependentes da boa moral dos homens para sobreviver. Não só o protagonista é responsável pelo resgate de Powaqa como, também, Jim Bridger (Will Poulter), outro bom membro da festa, dá comida para uma Nativa esfomeada sem que seu companheiro assassino perceba, salvando sua vida. Assim, Iñárritu nos leva a um mundo violento onde as mulheres são o estopim dos objetivos perseguidos por homens e, também, receptoras das boas ou más intenções deles. A participação ativa delas em qualquer evento é recusada, uma afirmação que, fora isso, não é questionada: o fato de as mulheres aparecerem apenas como elementos passivos da história, sem resistência e penetráveis (ambas têm seus corpos permeáveis para ações de homens, já que uma é morta e a outra é continuadamente estuprada) é assumido como natural. Mais que isso, essa ubiquidade masculina é absurda quando comparada com outros retratos cinematográficos conhecidos do Velho Oeste, nos quais figuras femininas não eram inexistentes. Pelo contrário, apesar de haver uma segregação espacial dos sexos pelas lentes históricas do faroeste, a figura feminina é geralmente entendida como aquela que não apenas carrega o reino dos espaços internos mas, principalmente, como aquela que instala e mantém a sanidade mental e uma certa racionalidade.

Para contrapor a deficiência de personagens femininas ativas, Iñárritu produz uma representação artificial da Natureza como uma entidade feminina. Nesse sentido, O Regresso é a história de um homem assassinado pela natureza, aninhado na natureza e renascido por causa da natureza. Esse homem, que desafia a leis da mortalidade dos seres humanos, afirma não ter medo de morrer, pois já morrera. Mas o personagem de DiCaprio não pode ser entendido apenas no sentido morto-vivo da palavra “regressado” (revenant, do título original), aquele que retorna da morte. Ele é, como as imagens do filme refletem, um gato com nove vidas, alguém capaz de renascer agora e sempre. E isso, precisamente, pela virtude da chamada Mãe Natureza – Mãe Natureza como companhia feminina do herói, aquela que o leva a seu útero e que, continuamente, dá a luz a ele: após muitas mortes episódicas, a cabeça de Leonardo DiCaprio sempre termina por sair do casulo natural onde estivera se curando, e que pode ser tanto um solo quente, escuro e úmido, uma tenda triangular em forma de monte púbico ou, mais explicitamente, uma vagina gigante da qual um DiCaprio nu e recém-nascido emerge. Desse modo, o retrato da Natureza como um organismo über-feminino, complementando e ajudando o personagem masculino, desvela uma outra camada do discurso estético sexista de Iñárritu.

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Com a intenção de representar a Natureza como uma entidade tão bela, selvagem e desgovernada que nos transcende, Lubezki tenta encantar o espectador com espetaculares tomadas de seu mundo puro e robusto. Infelizmente, Iñárritu esquece que a Natureza não precisa ser forçosamente ordenada para ser bela, já que é inerentemente impressionante: não precisa de nós para fazê-la atrativa. Pensar num livro de mesa da National Geographic enquanto vê DiCaprio cruzar o rio Mississippi é perceber o esforço por trás da composição dessas tomadas. Novamente, a ideia de um panorama realista e persuasivo emerge: cada centímetro da imagem é controlado para ser empolgante mas, por forçar esse sentimento, a genuína Natureza sublime é deixada de lado. E, ironicamente, ao empurrar o efeito de realidade, a artificialidade irrompe das rachaduras da ilusão construída. Apesar de Iñárritu explicar em entrevistas que a equipe sofreu condições adversas por causa de seu desejo de capturar a realidade da experiência, ele falha em retrair sua híper-dominância, que facilmente flutua para a superfície. Na busca pelo hiper-real – também encarnada em DiCaprio, o ator, comendo um fígado cru por causa de uma cena – o “real” é, precisamente, esquecido graças a um excesso de reconstrução. O real não precisa ser artificialmente reconstruído; ele já está lá, preexistente a nós, como se vê no trabalho de cineastas como Jonas Mekas que, com um claro entendimento do necessário gesto fragmentário para retratar o real, pode ser descrito como “hiper-realista”. Ao contrário, o gesto de Alejandro G. Iñárritu tenta ser completo e inteiriço, tenta capturar todos os 360 graus da realidade do personagem. E essa intenção de completude é, precisamente, o que despedaça O Regresso e empurra Iñárritu a sua própria armadilha: a realidade e veracidade que ele tenta revelar nunca é realmente evidenciada, pois, ao nos forçar a engolir uma Madeleine industrializada, ele não é capaz de expor racionalmente o passado no presente como um todo verdadeiro.

Se o personagem de DiCaprio está implacavelmente repetindo a necessidade de respirar em muitas das cenas pseudomísticas do filme, parece que Iñárritu não ouviu verdadeiramente sua própria instrução. O Regresso não permite respirar; falta-lhe o ar e o espaço onde a Natureza poderia delicadamente revelar-se para a câmera, um espaço para os personagens existirem organicamente, de modo que não sejam meras caricaturas… um espaço onde a coreografia dos personagens e ações possa criar raízes que fluam profundamente no solo. Mas, aqui, não há raízes, e as muralhas da ilusão são sustentadas com muitos pregos, cujos furos deixam vazar a artificialidade escondida de Iñárritu. Assim como o urso gerado por computador, a criação de um Velho Oeste sintético e supra-sensorial de Iñárritu, cuja intenção é parecer hiper-real, atropela o diretor e orgulhosamente exibe seu mambembe protótipo de panorama – uma panorama que é facilmente montado e acessado mas, rapidamente, torna-se instável, esquecido e arruinado. Um panorama que não achará lugar no nosso imaginário coletivo do Velho Oeste.

Tradução do inglês por Raul Arthuso. 

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