Gravidade (Gravity), de Alfonso Cuarón (EUA, 2013)

dezembro 1, 2013 em Em Cartaz, Raul Arthuso

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O elogio do espetáculo
por Raul Arthuso

Em dado momento de Gravidade (2013), de Alfonso Cuarón, a personagem de Sandra Bullock, em sua primeira chance de repouso após o desastre-estopim do filme, entra na câmara a vácuo da estação espacial russa e, depois de tirar sua roupa de astronauta, fica em posição fetal, flutuando na falta de gravidade do lugar. A imagem remete imediatamente ao planeta-feto que encerra 2001 – Uma Odisséia no Espaço (1968), clássico de Stanley Kubrick, no qual a dita imagem metaforiza o renascimento do homem. Como lá, este plano de Gravidade sintetiza a trajetória de renascimento que se fará dali por diante. Ameaçada diretamente pela morte no espaço, um lugar hostil onde as “leis da natureza” são estranhas ao ser humano e requerem outra relação do corpo com os espaços, os objetos e os movimentos, a volta para a Terra não é apenas questão de sobrevivência, mas ganha uma carga simbólica de renascimento: na cena final, a personagem sai do mar, reencontra a terra firme e literalmente reaprende a andar, primeiro engatinhando e logo em seguida levantando-se, gloriosamente.

Por outro lado, Gravidade cria uma identificação ambígua com a posição do espectador diante do espetáculo audiovisual relativamente novo que é o 3D. Desde que a estereoscopia foi reapropriada pela indústria cinematográfica como a salvação financeira da vez, pela inflação da capacidade do espetáculo de envolver fisicamente o espectador, há a sensação incômoda de que grande parte dos filmes em 3D traz para dentro das narrativas uma espécie de auto-afirmação do meio técnico, uma espelhamento na ficção de formas que exemplificam, potencializam e elogiam o espetáculo. Um caso exemplar é Alice no País da Maravilhas (2010), de Tim Burton, que deixa claro um caráter de “atrações” do novo espetáculo. O filme se organiza pela viagem a um novo mundo fantástico com seres peculiares e por uma forma de olhar diferente (as proporções são distorcidas, a perspectiva enganosa). Esse “novo mundo” aberto pelo 3D requer cuidados, mas é também um lugar de ação fascinante, misto de curiosidade, prazer e delírio.

Se certos filmes faziam esse gesto demonstrativo da “atração 3D” – “misto de curiosidade, prazer e delírio”, Avatar (2009) causa certo espanto. O filme de James Cameron não se oferece como auto-afirmação de um negócio que pede respeito. Avatar encarna a ideologia do 3D como uma experiência, um modo de ver, não apenas um espetáculo (ainda que essencialmente o seja). Traz, então, uma trajetória de mutação do corpo, do modo de viver e da visão, mas essencialmente de uma troca material. Há uma vivência paralítica, débil, passiva; por sua vez, uma experiência inovadora de incorporação num “super-homem” com capacidades acrobáticas e novos parâmetros de mobilidade é elogiada como uma transcendência. O cinema 2D é relegado a uma metáfora do corpo debilitado, impotente de movimentos, capaz apenas da observação passiva. A imagem sintética (é significativo que os avatares sejam azuis, como o fundo dos estúdios de efeitos especiais) é capaz de fazer do corpo débil um super-organismo ilimitado, retomando a chave dos super-poderes humanos de Matrix (1999). Avatar metaforiza a passagem de um espetáculo a outro, mas principalmente o desejo de que a experiência pueril seja a nova vivência. O custo é a imersão num novo corpo, parecido, mas transmutado: uma sala de cinema tornada corpo amplificado, com outras capacidades motoras e sensoriais, acrobáticas como ideal desse espetáculo de imersão.

Gravidade é um ponto culminante dessa ideia, trazendo-a no centro de sua narrativa. A vertigem e o desgaste físico da protagonista é também o nosso. Não lembro de outro momento em que o espetáculo cinematográfico tenha se parecido tanto com uma experiência de resistência física. A Dra. Ryan Stone (Sandra Bullock) ocupa simbolicamente na tela o espaço do espectador na sala de cinema: neófita, hesitante, ela terá de entender as novas regras do jogo para conseguir sobreviver – um novo modo de movimentação, relações diferentes de perspectiva e profundidades. Terá de completar seu trajeto no espaço antes que a chuva de lixo espacial inicial retorne. Esse “lixo espacial” é a carga de estímulos visuais e sonoros com o qual a técnica do espetáculo IMAX 3D nos atinge – não é acaso que esses momentos, junto da cena da reentrada na atmosfera, sejam os mais ruidosos e espetaculosos do filme: técnica e narrativa se espelham.

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Nos anos 1960, o ensaio de Jean-Louis Baudry, Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelhos de base, tentava desfazer o discurso da neutralidade do aparelho de base cinematográfico (câmera, sala escura, projetor), apontando como o aparato do cinema reproduz a perspectiva renascentista, tomando um lugar reconhecível dentro da arte ocidental, alinhado, então, com certa ideologia historicamente inscrita. O mais importante para a discussão aqui é como Baudry coloca também o aparato cinematográfico (filmagem/montagem/projeção) no balaio da discussão ideológica. Não seria apenas a linguagem cinematográfica artífice de uma ideologia burguesa que visa identificação emocional e a transparência; o aparelho, a câmera, o projetor, sua posição na sala de cinema, tudo isso colabora para uma convergência dessa ideologia. O conteúdo é, nesse sentido, manifestação calculada de um processo inerente ao aparelho de base.

As idéias de Baudry não estão aqui como ferramenta para ressuscitar uma discussão com lugar definido dentro do pensamento cinematográfico, mesmo porque seria um procedimento por demais automático buscar em um novo contexto as mesmas explicações. Baudry serve aqui muito mais como uma consciência que auxilia no atestado de uma hipótese: Gravidade leva ao paroxismo o ideal do cinema em 3D como espetáculo de imersão. Uma imersão forjada a porretes e bela dose de coerção física pela exposição do espectador a uma massa de estímulos assustadora se comparada ao espetáculo “tradicional” – trocando-se, por sua vez, estímulos de conteúdo e articulação de planos, presentes mesmo na versão 2D do filme, por outros próprios do aparato estereoscópico-estereofônico, com inflacionamento da tela IMAX e som 7.1. Mas essencialmente, Gravidade não extrapola nada quanto ao que pode o cinema; pelo contrário, está completamente a serviço da técnica, demonstrando suas competências, suas possibilidades de estímulos.

Tanto aqui quanto em seu filme anterior, Filhos da Esperança (2006), Cuarón trabalha com o plano sequência e sua dimensão poética. Nas cenas mais fortes daquele filme, há uma quantidade de malabarismos com figurantes, tanques e acontecimentos que causam certo espanto, chamam a atenção para si e tiram os malabarismos do nível do espetáculo, criando certa opacidade, atentando para sua própria existência enquanto um feito de dimensões sobre-humanas. Aqui em Gravidade, os malabarismos de câmera parecem inócuos, pois, se o filme tem uma série de longos planos, eles funcionam como estímulo, como reforço de imersão no espetáculo. Sem o arsenal IMAX 3D, os planos sequências de Gravidade são grandes peças de um cartoon tentando se passar por filme sério: Ryan Stone escorrega numa casca de banana, levanta-se e tropeça numa pedra, levanta-se e cai num precipício, para se esborrachar no vale e levantar novamente. Filhos da Esperança opera ao inverso, fazendo o personagem, de repente, se ver num universo cartunesco que se avoluma aos poucos, reforçando o absurdo da situação. O efeito do plano sequência em Filhos da Esperança é levar o filme para além da narrativa e dos limites da tela; Gravidade, com muito mais elementos, mantém-se nos limites da sala.

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A arte tem como gesto explodir os limites da técnica, tentar alargá-los, tensionando até o rompimento, de onde se pode tirar força e beleza. Consolidar a técnica, aproveitá-la para, no fim das contas, deslumbrar-se com ela, é tarefa do artesanato. Quando acaba é, de alguma forma, deixado de lado sobre a cômoda e vira, na melhor das hipóteses, um artigo de decoração. Gravidade não emana a força nem a beleza necessárias para superar isso. Ao final, o filme termina no ponto em que a experiência do espectador acaba: quando Stone retorna ao planeta, à movimentação normal, à gravidade normal, renasce sua relação habitual. Saímos da sala e, depois da massa de estímulos audiovisuais, temos de renascer, reaprender a andar e a ver como antes de colocar os óculos. Gravidade é outro exemplo de metáfora da jovem técnica, adolescente petulante tentando depôr o rei. A única tensão real vem da duração da projeção. Como acontece com a Dra. Ryan Stone, ao final do filme o retorno à terra firme é um momento de alívio, deixando para trás essa experiência, apenas como uma anedota de superação.

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