Os conflitos internos de Tiago (Okado do Canal) sempre são apresentados pela exterioridade: a sua vagância desenha as dificuldades que está atravessando, a partir do encontro com as pessoas com quem estabelece vínculos interpessoais. Nos breves diálogos ou nas trocas de olhares, vemos Diana (Cíntia Lima), sua ex-companheira e mãe de sua filha, seu padrasto, sua vizinha e um amigo da época em que cantava rap e dançava hip-hop. Sem grana, sem tempo e recém-separado, a constante itinerância espacial do personagem atrita com sua ínfima modulação emocional, que permanece quase estática perante o mundo que o perpassa, tornando os deslocamentos existenciais pouco presentes diante dos olhos das espectadoras de Rio Doce (2021), primeiro longa-metragem de Fellipe Fernandes.
Enquanto mudanças espaciais acontecem com constância, o tom observacional do filme torna o personagem cada vez mais introspectivo e numa espécie de looping de si mesmo. A dificuldade de exprimir verbalmente suas afetações tornam o flow do filme monótono, ao mesmo tempo que a vagança de Tiago não cessa. A dinâmica da paralisia do personagem é sutilmente interrompida com sua saída de Rio Doce até um casarão típico da zona norte do Recife, onde encontra a família de seu genitor até então desconhecido. Se as relações comunitárias se desenhavam ponto a ponto no seu bairro de nascença, com o encontro entre ele, sua família e sua vizinhança, de dentro da casa desocupada as tensões raciais, de classe e de gênero se delineiam, a partir da lida com suas irmãs, Erika (Thassia Cavalcanti), Laura (Nash Laila) e Catarina (Amanda Gabriel), e seu cunhado Pedro (Artur Canavarro).
A família branca de classe média de Rio Doce possui um desenho representacional bastante semelhante ao encontrado em filmes como Aquarius (Kleber Mendonça Filho, 2016), Casa Grande (Felipe Barbosa, 2015) e Que horas ela volta? (Anna Muylaert, 2015): trejeitos contidos, conversas mornas, incômodos aparentes e preconceitos expostos. No entanto, Fellipe Fernandes causa uma dobra ao apostar num corpo familiar menos homogêneo, com conflitos interpessoais que demarcam a diferença de percepção de cada uma das irmãs em relação à recepção de Tiago como um “novo herdeiro”. Catarina suspeita de Tiago e age com desconfiança e racismo perante ele. Laura e Erika, por sua vez, se mostram mais abertas e confrontam o posicionamento da irmã mais velha. No mesmo sentido, o descompasso de Catarina enquanto reflete sobre a posição de seu pai na situação apresentada, estremece seu entendimento sobre a presença non grata de Tiago, colocando-a a se questionar sobre a traição e a falta de transparência do recém-falecido, o que produz uma quebra sutil no modo de articular os conflitos de dentro deste grupo social tão representado no cinema pernambucano.
Além de se confrontar com a realidade da “nova família”, chama atenção a relação estabelecida entre Tiago e as fotografias e quadros da casa de seu genitor. Se dentro do banheiro olhar para o espelho é uma tentativa de autoconhecimento no meio de um lugar estrangeiro – metáfora um tanto comum para o tema – tentar buscar a si mesmo nas histórias daquele espaço cria um contraste importante para mediar a relação entre o protagonista e sua família materna. Isso é demarcado pelas fotografias no rack da sala da casa de sua mãe, no bairro de Rio Doce. Se antes havia desimplicação, as imagens presentes no lugar onde cresceu enlaçam história, memória e pertencimento. Uma outra camada de significância é adicionada pela construção do filme, que insere fotografias e vídeos de Okado do Canal para elaborar o painel da identidade fragmentada de seu personagem. Tal escolha borra a ficção criada por Fellipe Fernandes.
A manutenção do personagem silencioso é contrariada pela festa surpresa organizada pela mãe de Tiago para o seu filho. O sentimento de não-pertencimento, vivenciado no casarão, dá espaço a uma rede de relações estabelecidas com conversas enérgicas, bem distante do modo blasé da família branca recifense, sem criar maniqueísmos. Uma dança no meio da sala, um sonho louco compartilhado entre amigos ou uma conversa rotineira entre vizinhas colorem o quadro com um pouco mais de vida, em evidente oposição ao clima fúnebre e desconfortável experienciado pelo protagonista com a “nova família”. Mais uma vez, o mundo ao redor de Tiago se move, se experimenta, e seu personagem pouco parece acompanhar o ritmo, gerando um conforto incômodo, um lugar ensimesmado que não dá vazão aos seus dramas internos, gerando força e precariedades na construção do personagem protagonizado por Okado do Canal.
Sem apostar numa dimensão psicológica mais intensa ao seu protagonista, é numa conversa com uma de suas irmãs, Laura, que o filme produz, já em seu final, um diálogo mais complexo, em que o personagem passa a encarar seus fantasmas mais frontalmente. Seu corpo está preso por algo que não consegue mapear – um contraste aos trânsitos silenciosos e observadores entre Recife e Olinda. Sua introspecção, no entanto, se apresenta como a maior fragilidade de Rio Doce: a não-comunicação beira a ausência de conflitos na narrativa, ao mesmo tempo que fortalece a construção de uma masculinidade controversa, contida, que se revira por dentro mas permanece resistente a expor suas desordens mais íntimas.
Perdido e insistente em si mesmo, ter conhecimento da família de seu genitor não cria mudanças significativas em Tiago, ainda que o ponha em estado de reflexão sobre a figura paterna e a ausência de seu pai em sua vida. Não parece ser necessariamente isso que o move, mas pouco além disso conseguimos ver. No entanto, nos últimos minutos do filme, sua andança finalmente parece revirá-lo: ir ao encontro de sua filha é ir ao encontro de si mesmo. Nesse sentido, a ação de mudança aparente, uma vez que o personagem encontrava-se distante da criança, aparece como uma solução fílmica para tornar visível as transformações acumuladas pelo personagem durante a narrativa. Apesar de permanecer até o fim em constante movência, Rio Doce encara um dilema contraditório entre conservar seu personagem em seu estado observacional e apresentar pouco espaço para complexificar os trânsito internos de Tiago, mantendo-o em uma cadência cautelosa e protegida, que, se por um lado, dão força à introspecção, por outro, faz do filme algo pouco arriscado.
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