Na abertura da apresentação do grupo de swingueira de Recife Cia. Extremo, ouvimos um locutor falar, acompanhado por um teclado solene e sintetizadores, segundos antes do início do espetáculo: “Brasil. Um país maravilhoso. Realmente devemos honrar o que está escrito na bandeira: ordem e progresso”. No centro da cena, encontra-se Eduarda Lemos, modelo e bailarina, mulher trans negra, protagonista de Swinguerra (Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, 2019). A sua presença é a de uma diva pop, que tem pleno domínio sobre sua própria imagem. O seu semblante na abertura é, contudo, o de uma guerreira. Com a mão firme sobre a testa, bate continência.
Filme mais recente dos artistas visuais Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, Swinguerra é um estudo sobre a cena de swingueira, brega-funk e passinho dos maloka de Recife, que tem se desenvolvido nos últimos anos nas periferias da cidade. Anualmente, os grupos se encontram em competições locais e intermunicipais, em que disputam com suas próprias coreografias, figurinos e cenografia, em um sistema de validação reminiscente dos desfiles de escolas de samba. O filme dedica-se a reencenar as apresentações de três grupos – a Cia. Extremo, o Grupo La Mafia e o Bonde do Passinho -, que se preparam para as disputas em rituais coletivos de concentração, disciplina e rigor, que são dramatizados no filme. Os grupos dividem-se em formações “de meninos” e “de meninas”, que dançam frequentemente segundo modelos de gênero estereotipados. As classificações dos integrantes da Cia. Extremo, contudo, subvertem o que parecia uma divisão normativa entre dois gêneros: a “formação das meninas” é composta, sobretudo, por mulheres trans, queers e não-binárias, assim como os “meninos” não se conformam à imagem hegemônica de masculinidade que seus movimentos parodiam.
A hipótese de Swinguerra é de que tal universo oferece uma imagem exuberante de um país contraditório, que acabara de assistir à ascensão do bolsonarismo. Os grupos presentificam em suas apresentações uma certa forma de imaginar e constituir em cena a coletividade, que remete, às vezes, as fantasias de um corpo social harmônico, com posições de gênero bem marcadas, que anima o imaginário conservador. Os movimentos de quadril, bunda e virilha convivem, em desconcertante naturalidade, com o imaginário militarista de um corpo coletivo treinado, ordenado e sincronizado. A violência é também uma questão onipresente. Em uma das coreografias do grupo La Máfia, garotos simulam armas de fogo com as mãos, sob o som de “Dj Binho do Coque, o pai da facção”. Em outra cena, duas mulheres trans ensaiam passos de dança, cujos nomes são sintomáticos – “faz a chateada”, “chuta, não me toca”, “sai daqui que eu tô na paz”, etc. , sugerindo formas de se impor e se afirmar em um cotidiano hostil, permeado de violência. A dança em Swinguerra torna-se a cifra de um país que ainda não fomos capazes de entender.
Nesse mês, a Sessão Cinética mostra o novo filme de Wagner e De Burca em conjunto com quatro outros trabalhos. Artistas visuais de grande visibilidade, a sua presença é ainda limitada no campo de cinema, se levarmos em consideração a relevância de seu trabalho. Em uma década particularmente rica do cinema brasileiro como foram os anos 2010, são poucos os cineastas que produziram uma obra tão vigorosa e arriscada.
A pesquisa artística de Wagner e De Burca teve como ponto de partida o conceito de cultura popular, noção fundamental para a formação dos imaginários nacionais e regionais brasileiros, matriz de ideias politicamente significativas, como identidade, tradição, comunidade, pertencimento e autenticidade. O olhar dos artistas, desloca-se, contudo, para formas de viver o corpo, a música e a dança que ocorrem nas bordas tanto da cultura popular oficial, quanto da indústria fonográfica, espaços onde uma certa ideia normativa do “popular” é desarticulada e reinventada. O método de Wagner e De Burca é o de uma de etnografia de ficção, em que a postura de observação do documentário convive com os artifícios do musical. Os seus filmes são sempre um convite a prestar atenção ao corpo, quando ele entra em estado de imagem: os seus modos de vestir-se e enfeitar-se, as suas maneiras, as suas poses, as suas marcas, as formas com que presentificam os tempos e os lugares mais diversos.
A sessão tem como filme de abertura um de seus trabalhos mais conhecidos, Estás vendo coisas (2016). Estudo sobre a cena da música brega de Recife, o filme é um dos retratos mais fascinantes da classe trabalhadora brasileira feito nos últimos anos. Dayana Paixão é cantora, mas trabalha como bombeira, Porck é MC, mas de dia é cabeleireiro. As suas canções falam de amor, sexo, ciúme, traição, mas também de luxo, poder e de um sentimento vago, mas sugestivo, de que tudo pode não passar de uma miragem. Filmado em um momento onde o “horizonte de expectativas” do país ainda parecia vasto, mas que a crise econômica e política trataria de encurtar brutalmente, difícil revisitar o filme sem sentir uma certa melancolia por seu mundo reluzente, em que trabalhadores antecipam no palco um pouco do futuro brilhante que eles anseiam. O filme demonstra uma capacidade bastante aguçada de enxergar nos clubes de brega dos subúrbios da cidade um certo imaginário futurista, com seus letreiros néon, suas luzes estroboscópicas e suas telas onipresentes, onde até mesmo as roupas de marca, as correntes de ouro falso e os adereços dos cantores parecem vir de um futuro radiante, marcado pela ascensão social.
O ponto de partida do filme realizado em seguida foi o gênero musical Schlager, da Alemanha. Bye Bye Deutschland! Eine Lebensmelodie (2017) mostra um casal de covers de Munique, que personificam cantores célebres do gênero, em cenas de musical criadas colaborativamente com os artistas. Os personagens imaginam em suas performances duplos de si mesmos, que desfilam por cenas suntuosas, onde o cotidiano cinza do mundo do trabalho e da família foi suspenso. Como no filme anterior, descortina-se uma sensibilidade que tensiona com a própria distinção de bom e de mau gosto. As fantasias dos personagens, contudo, são outras, que revelam agora imaginários com outro lastro cultural e social: uma vida sentimental exuberante, onde florestas tropicais, igrejas majestosas e pianos de cauda são signos de esplendor.
Terremoto Santo (2017) é possivelmente o filme mais arriscado e provocador do grupo. A partir do contato com a gravadora de música gospel Mata Sul, Wagner e De Burca conheceram um grupo de jovens cantores evangélicos da Zona da Mata em Pernambuco, parte de uma classe média emergente que frequenta as igrejas pentecostais da região. Como nos outros trabalhos dos artistas, os personagens foram chamados a colaborar com a criação de uma série de performances musicais, que eles protagonizam. As cenas apresentam um mundo de artifício onde as lógicas do espetáculo e do rito, do palco e do altar, estão indissociáveis. Em uma fotografia de cores e nitidez publicitárias, o filme nos convida a escutar as orações e canções como práticas de cuidado de si, profundamente imbricadas na luta diária pela emancipação espiritual e material dos personagens, que vivem em uma das regiões do país onde mais se faz presente a memória da violência colonial. Em um momento em que o setor evangélico se tornou um ator político de maior relevância do país, Terremoto Santo oferece um retrato empático e ambivalente de uma parte do segmento distante das grandes igrejas e centros de poder, integrada por pessoas que encontraram na religião uma forma de transformar as suas condições de vida.
A posição de RISE na obra de Wagner e De Burca, por sua vez, parece de início um tanto ambígua. Os últimos três filmes se debruçam sobre gêneros musicais estigmatizados, formas de viver a música que revelam o próprio caráter conflitivo e classista da experiência social do gosto. RISE, no entanto, parte de um ambiente de criação com uma moldura institucional legitimada socialmente. O título refere-se ao movimento homônimo sediado em Toronto, criado pelo poeta canadense Randell Adjei, em torno da prática da spoken word. O projeto é uma plataforma de encontros, onde jovens, em sua maioria pertencente à primeira geração de descendentes africanos e caribenhos nascidos no Canadá, narram suas experiências pessoais e constroem sua própria identidade a partir da palavra. O olhar do filme sobre o universo, contudo, parece conservar certa desconfiança da retórica do movimento, colocando sob suspeita os regimes de visibilidade e enunciabilidade institucionais em que tais vozes minoritárias são convocadas a falar e a existir. Na única cena em que vemos o idealizador do projeto, ele se encontra no centro de uma roda de participantes. A sua fala é a de um líder motivacional, movido por um entusiasmo eloquente, mas um tanto pomposo. “Você pode ser a mudança ou permanecer em silêncio”, repete, em um discurso que glorifica a função redentora da palavra.
O primeiro plano de RISE mostra a imagem do poeta indígena canadense Duke Redbird, em um monitor localizado na estação vazia de metrô de Toronto onde o trabalho foi filmado. Ele recita um poema de título sugestivo, O espelho. A repetição do mesmo dispositivo cênico no fim do trabalho o coloca em evidência: o plano final mostra Redbird concluindo o poema, segundos antes da tela desligar-se subitamente. Wagner e De Burca se utilizam de um procedimento de ênfase anômalo em sua obra, que determina a função privilegiada do poema em RISE. Em um filme em que jovens talentosos enunciam pela música e pela poesia suas identidades individuais e coletivas, trata-se de um gesto significativo trazer para o centro do filme um poema que fala, justamente, da opacidade do espelho: a imagem de si refletida, diz o poema, é uma “máscara zombadora”, que “envolve e esconde”, antes de mostrar e revelar. O cinema de Wagner e De Burca parece nos provocar a cada trabalho, justamente, a fitar tal miragem.
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