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Essa maneira estranhamente esperançosa

[carta de Felipe André Silva para Pedro Maia de Brito, um dos diretores do filme]

Pedro,

no meu sonho de ontem o ano era 2030. Tentava te mandar um recado do futuro pra te dizer que nada mudou, nada melhorou, e nós não ficamos necessariamente mais fortes, mas voltamos a sonhar. Te lembrava, ainda que você já saiba disso, que nos últimos vinte anos tínhamos desaprendido os caminhos que levam a esse terreno onde tudo é possível, tudo é da lei, e às vezes, é verdade, um trem ameaça nos acertar em cheio, ou saltamos do penhasco sem qualquer garantia, mas o amanhã sempre vem. Era isso que queria te dizer com tanta intensidade, com tanta alegria, que voltamos a ser vitimados por trens e que voltamos a perder o discernimento perto de grandes alturas, e como isso tinha beleza. No meu sonho não te achava, guardava a mensagem comigo, com a paz de saber que ao acordar poderia te dizer tudo isso. Te falar um pouco sobre uma cena específica do teu filme com o Aiano que me fez chorar. Diz isso a ele, diz a ele que vocês me fizeram chorar. Foi ótimo.

Pra te falar dessa cena e desse filme, queria antes te falar de outras duas cenas, que acho igualmente bonitas. 11 de dezembro de 2012, vou ao Cinema São Luiz, em Recife, pra assistir uma sessão especial de Edifício Master, de Eduardo Coutinho. A essa altura da vida, já estava bem familiarizado com o jeito que o Eduardo perguntava coisas para pessoas, um jeito de alguém que se importa, mas ainda não tinha visto esse filme em específico. Agora não consigo me lembrar precisamente do nome da personagem ou do contexto em que ela fala isso, mas nunca tendo retornado ao filme desde então jamais esqueci da fala daquela mulher, mãe, prostituta, que investiu seu primeiro pagamento para levar os filhos ao shopping e comer um Mc’Donalds com eles. Uma cena. Algum momento no meio dos anos 90. Minha mãe, que eu só via uma vez por semana, por conta de seu trabalho de empregada doméstica na casa de uma mulher muito mesquinha e desagradável, me leva ao shopping para comprar algumas roupas. Das poucas e vagas lembranças que tenho desse período, a mais marcante é a do momento, nesse mesmo dia, em que ficamos, eu e ela, na praça de alimentação, comendo um pacote de Cheetos e lambendo os dedos cheios de sal e pó alaranjado. Eu mostraria depois, em casa, como havia aprendido a limpar os dedos, para diversão e reprovação de todos. Duas cenas.

Não sei o nome da personagem, e talvez a despersonalização desses corpos em detrimento de uma força maior, um corpo coletivo, seja uma das coisas belas do filme de vocês, mas queria saber quem é aquela senhora, que diz ter trabalhado de lavadeira para sustentar a família, que juntava as sobras do almoço dos patrões com a desculpa de levar para os cachorros e alimentava as filhas, que hoje finalmente tem sua felicidade concretizada na forma de uma casa para chamar de sua, ainda que a prefeitura, e o governo, e a polícia, e o mundo, e alguém, mesquinho, rico, já tenha manifestado de alguma forma sua posição contrária a isso. E igual a ela, milhares, milhões. Mas hoje minha conversa foi com ela, com vocês que ouviram ela por mim, que não fabularam em cima da dureza da vida, que não planejaram um dispositivo engenhoso para elevar algo tão simples e potente como o ato de ouvir, não tentaram fazer um filme importante. A importância, não raro, já está dada, só não é propriamente reconhecida. Queria ser convidado pra almoçar na casa dela, do mesmo jeito que ela tão vivamente te convidou.

Moro numa ocupação, Pedro, não sei se já te contei isso. Talvez não se veja mais dessa forma porque é uma ocupação com mais de 30 anos de existência, que de certa maneira já se mesclou com os bairros vizinhos e “oficiais”, mas onde as quedas de energia ainda são constantes, onde não há muitas ruas calçadas, onde raramente chega água nas torneiras. É um limbo entre Jaboatão dos Guararapes e o Cabo de Santo Agostinho, que as duas prefeituras brincam de jogar de um lado para o outro. Morei aqui até os cinco anos, depois disso vivi uma grande fantasia, uma brincadeira de casinha de ser classe média até os dezoito, e aí retornei, pródigo. E eu não luto, Pedro, não tenho em mim o fogo da luta pra fazer desse bairro, dessa rua, um lugar melhor. Eu só queria fugir, sair daqui. Talvez tu não me entenda, mas acho que sim. Queria poder falar, por exemplo, que essa maneira tão estranhamente esperançosa que vocês filmaram os habitantes dessa ocupação/bairro, e o vigor deles para permanecer num pedaço de chão que possam chamar de lar, respingou em mim, acendeu uma fagulha, mas seria mentira. Talvez seja isso que potencializa a admiração pelo retrato: a sensação tão potente e reconfortante de ver pessoas que realmente acreditam em algo, com energia, com coragem. Não existem tantas assim.

E falo de imagem, da moral que se propõe durante o ato de posicionar e apontar uma câmera, de iluminar um espaço. Penso em Pedro Costa, por exemplo, e talvez seja um comparativo um pouco extremo, mas existe uma disparidade muito interessante na maneira como vocês e ele compõem um plano, a semelhança basilar sendo esse interesse pelos cantos dos espaços, pelas arestas das pessoas. A diferença essencial é que vocês, nesse filme em especial, pareciam estar muito atentos em como jogar luz nesses ambientes, e nessas pessoas. A favela é por vezes um lugar escuro, e a beleza está contida então no vigor que essas pessoas fazem pra iluminar seus espaços, seus caminhos, iluminar a si mesmas. Estou bem longe de qualquer pretensão de atacar Pedro Costa, mas me sinto um pouco cansado das favelas escuras dele. Dos spots teatrais de luz, do halo prateado em volta daquelas pessoas. Vitalina Varela tem uma cena diurna em que a luz da manhã parece luz da manhã, acho bonito, novo.

Gosto dessa distância entre a câmera e as pessoas que vocês estabelecem logo de saída, porque me soa como respeito, respiro, e não receio. Acredito que no afã de mostrar a urgência de alguns corpos o cinema corre um risco muito alto de se tornar pornográfico, no pejorativo do termo; penso em Cafarnaum, por exemplo. Tu assistiu? Se não, não precisa, acho que tu já sabe o que possivelmente aquele filme tem pra ensinar. O que eu aprendi ao comparar os dois: cada um conhece a própria música, e para algumas pessoas, como essas do teu filme, moradoras de lugar nenhum que finalmente tem um CEP pra chamar de seu, essa música é diegética, é um canto de trabalho, precisa ser colocada pra fora agora, a partir da própria boca. Em alguns lugares, o violino só toca se nós mesmos aprendermos como ele funciona.

Saudades,

Felipe.


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