Câmera pétrea: cinzas do olhar

No início não havia verbo. Mas haveria um início? Num prenúncio imaginário murmura-se um cosmos, uma frase, um filme. Solon começa com raios de luz que atravessam o negro da tela, numa visão abstrata, veloz, que escapa e ilumina. A imagem, ao menos nesse primeiro embalo, não pretende tornar-se visível, mas ferir a câmera. E fere, de forma apenas luminosa, imbuída da mágica das suas partículas. Com notáveis granulações e o seu reluzir em 16mm, o filme situa-se diante das rochas, seus resíduos, sua cadência… CONTINUA

Alegorias do nada

Com os Punhos Cerrados (2014), de Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, marcava uma guinada importante na filmografia conjunta que se iniciava com Estrada para Ythaca (dirigido pelos três realizadores e por Guto Parente em 2010), ao mesmo tempo em que continuava a trabalhar sobre os mesmos motivos (o luto; o lugar do sonho frente à mediocridade do cotidiano; a insurgência necessária contra um mundo hostil). A virada consistia em uma explicitação da verve política que anima o trabalho recente dos irmãos Pretti e… CONTINUA

A poesia está morta; longa vida à poesia

1. À primeira vista, Paterson parece um filme dedicado a simplesmente contar uma história, mesmo que de sua maneira levemente peculiar. Há, aqui, suficiente aderência dramatúrgica para não alienar uma plateia recentemente reconquistada pelo diretor, muito embora a catequese tenha sido fruto de um de seus piores filmes – Only Lovers Left Alive (2013). Nesta nova ficção (simultaneamente, o diretor lançou também o documentário Gimme Danger), essas estratégias narrativas tradicionais são colocadas na vitrine, como iscas sedutoras a um espectador que o filme sabe bem… CONTINUA

A política da atenção

Na conferência A Política da Arte, o filósofo Jacques Rancière conta uma narrativa de emancipação operária publicada em um jornal militante durante a Revolução Francesa: “Sentindo-se em casa enquanto ainda não terminou o piso do cômodo em que trabalha, ele desfruta da tarefa; se a janela se abre para um jardim ou domina um horizonte pitoresco, por um instante ele repousa seus braços e plana em ideias para a espaçosa perspectiva, gozando dela melhor do que os proprietários das casas vizinhas”. Essa breve chance de… CONTINUA

Os outros

Todo narrado pelo ponto de vista de Eduardo (João Miguel), o pai da família formada também por Julia (Marina Person), sua mulher, e o casal de filhos dos dois (ele, no limiar entre adolescência e idade adulta; ela, entre infância e adolescência – e estarem ambos nesse estado “de passagem” não parece nada desimportante para o que está em jogo no filme), Canção da Volta toma o partido da pessoa que “recebe o gesto” numa tentativa de suicídio – ou seja, não quem a comete,… CONTINUA

Elogio ao artifício

Café Society (2016), último filme de Woody Allen, se assume como uma espécie de fábula reminiscente de Hollywood. Mas no lugar de um gesto de reverência vigoroso a essa golden age do star system, Allen prefere a domesticação. A fotografia de Vittorio Storaro cria o cenário ideal para uma peça de legítima veneração – ali sim a reminiscência como um mote do encanto – porém o culto à estrela, ao legado cinematográfico icônico onde o filme é situado, se limita à exploração enfadonha dos conhecimentos… CONTINUA

A alteridade está morta; longa vida à alteridade

1. A Garota Desconhecida se passa em grande parte dentro de uma clínica médica. Diferente de um hospital, o espaço funciona mais como uma unidade de atendimento familiar, onde pessoas daquele bairro ou região recebem consultas médicas básicas, mediando a triagem para núcleos mais especializados. É o tipo de estrutura que se beneficia de uma maior intimidade entre o clínico geral e seus pacientes, e permite um acompanhamento que conjuga alopatia com certa atenção social – serviço que serve também, mas não só, como escada… CONTINUA