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Alegorias do nada

Com os Punhos Cerrados (2014), de Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, marcava uma guinada importante na filmografia conjunta que se iniciava com Estrada para Ythaca (dirigido pelos três realizadores e por Guto Parente em 2010), ao mesmo tempo em que continuava a trabalhar sobre os mesmos motivos (o luto; o lugar do sonho frente à mediocridade do cotidiano; a insurgência necessária contra um mundo hostil). A virada consistia em uma explicitação da verve política que anima o trabalho recente dos irmãos Pretti e de Pedro Diógenes (e que pode ser percebida também em suas obras individuais ou em outras parcerias): se Ythaca e Os Monstros (2011) eram elogios da dissidência com menções esparsas a certo repertório comumente vinculado ao cinema político – a famigerada citação de Vento do Leste (1970) do Grupo Dziga Vertov em Ythaca –, Com os Punhos Cerrados assumia não apenas o diálogo cinéfilo (já no título, a referência inevitável ao I Pugni in Tasca, 1965, de Marco Bellocchio), mas expressava a tarefa de encampar deliberadamente uma tradição do pensamento revolucionário e uma história do ativismo político. De certa maneira, a fábula autocentrada se abria para o mundo, visava a História, buscava um todo (“Ouçam, todos!” era o refrão mais ouvido na rádio pirata capitaneada pelos três protagonistas). O grito de “Festa! Festa!” de Os Monstros se transformava no “Estamos em guerra” de Com os Punhos Cerrados, em consonância com um movimento recente de certo cinema independente brasileiro: a retomada dos grandes diagnósticos, da utopia como território ficcional e da alegoria como gesto crítico (tendência sobre a qual escrevi mais amplamente em outra oportunidade).

Em O Último Trago (2016), longa mais recente do trio da Alumbramento, essa ambição crescente atinge seu ápice até o momento: a perpassar as três fábulas que compõem o filme, uma mesma figura mítica (a índia Valéria, vivida por Samya de Lavor) materializa a conjunção entre o luto e a luta, em sua dupla tarefa de redimir as vítimas de uma violência perpetrada no passado e de encarnar um espírito de insurgência imemorial e imparável. A busca por fazer justiça a uma história dos vencidos e o desejo de intervenção se manifestam desde as duas imagens de mapas que compõem a sequência de créditos: o primeiro – bordado a mão em tecido – será o emblema da salvaguarda do passado, quando retornar na caixa encontrada com as memórias de Valéria na segunda parte do filme; o segundo – um antigo mapa que reenvia às “grandes navegações” – será queimado, destruído já no início, como um prenúncio do desejo guerreiro que perpassará toda a narrativa.

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O traço alegórico, presente desde Estrada para Ythaca, se torna mais e mais acentuado e passa a impregnar toda a ficção, que se move menos por uma intriga do que por um jogo de ressonâncias figurativas: o homem na praia contemporânea (Rodrigo Fischer) que abre a primeira parte e a mulher nas areias fora do tempo (Mariana Nunes) que abre a terceira; a mulher espancada à beira da estrada na primeira sequência (Samya de Lavor) e a mulher abandonada à porta do bar na abertura da segunda fábula (Elisa Porto); as fotografias e os dizeres de Valéria que atravessam todo o filme; os nomes das quatro revolucionárias assassinadas nas cruzes (Tarsila Almereyda, Maria Borges, Ana Borges, Augustina Vanzetti), colagens de prenomes de mulheres célebres e de sobrenomes emblemáticos da história do anarquismo. Se, como escreveu Raul Arthuso, em Ythaca “a abdução é a alegoria que completa a trajetória dos quatro amigos propondo uma solução de sobrevivência frente ao mal-estar daquele estado de mundo inicial através da reclusão e do fortalecimento do simulacro afetivo criado pelos personagens”, em O Último Trago as figuras de Valéria e das quatro anarquistas – em suas múltiplas aparições – são o trunfo alegórico frente ao estado apático do mundo; a reserva de energia vital diante da sonolência geral.

“É a nossa última chance de escapar ao vazio completo. Da aniquilação total do que conhecemos por humanidade”, dizia o discurso final de Com os Punhos Cerrados. Em O Último Trago, a humanidade já não basta como destinatário. A grandiloquência atinge o cume no trecho do poema de Murilo Mendes tomado como um refrão pela revolucionária anarquista:

Os mortos minerais vegetais pedem vingança
É a hora do protesto geral
É a hora dos vôos destruidores
É a hora das barricadas, dos fuzilamentos
Fomes desejos ânsias sonhos perdidos
Misérias de todos os países uni-vos 

Mas se a estrutura é claramente alegórica – a incompletude; a cena visível que reenvia a outra cena; o uso dos emblemas reconhecíveis; a postura de decifração instigada no espectador –, o filme parece ter se desgarrado definitivamente (o que já era perceptível em Com os Punhos Cerrados, mas se intensifica aqui) da maior virtude da alegoria: o vínculo crítico com a História. Ainda que enigmático, ainda que fraturado, ainda que agônico, esse vínculo foi sempre a marca dos alegoristas modernos: tratava-se a cada vez de internalizar formalmente uma crise da História, encampando uma tensão entre forma e conjuntura que é definidora do gesto alegórico. Em O Último Trago, a tensão criadora com o mundo foi abandonada em prol de uma dança dos emblemas sobre o vazio. E isso porque a relação não é mais com a História, e sim com uma certa imagerie; porque o motor que a dispara não é mais a melancolia diante da catástrofe, mas a nostalgia, um motor artístico frequentemente reacionário. Se Walter Benjamin iniciava seu Infância em Berlim por volta de 1900 com uma nota prévia em que explicitava sua tentativa de refrear, na escrita, o sentimento de nostalgia que se apoderava do ensaísta ao rememorar seus primeiros anos de vida, era porque se via diante da necessidade de instalar a lembrança no terreno do presente, de fissurar o paraíso perdido da infância, de visar o passado a partir de um entrecruzamento forte com a história coletiva.

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Um sintoma dessa negação da historicidade e da diferença em O Último Trago é a relação que o filme estabelece com as citações literárias. O filme é uma espécie de culto ecumênico da revolta, onde cabe virtualmente tudo (desde que faça coro a um genérico e atemporal espírito de luta). A dramaturgia é capaz de reunir nas bocas de personagens com os quais somos impelidos a simpatizar (o velho bêbado expulso a trompadas do bar; a revolucionária à beira da morte) fragmentos tão díspares como um célebre discurso de ninguém menos do que Rui Barbosa (“de tanto ver triunfar as nulidades…”) e o manifesto surrealista de André Breton. Tudo cabe – e no mesmo tom declaratório – porque o filme é uma estranha espécie de alegoria autossuficiente, que se esquiva de enfrentar o mundo para fincar pé em uma fábula encerrada em si mesma.

Embora haja referências aqui e ali a desastres concretos – a Guerra do Caldeirão, o machismo cotidiano –, o que predomina é o “Às armas, sempre”, como diz uma das mensagens de Valéria. O que esse vazio do tempo histórico e esse recurso a uma ancestralidade guerreira mítica parecem ignorar é que até Murilo Mendes era O filho do século. O poema, embora se dirija aos minerais e aos vegetais, embora esteja imbuído de uma utopia maiakovskiana (“o pai seja pelo menos o universo/a mãe seja no mínimo a terra”), é impregnado pela mesma melancolia do Drummond do Sentimento do Mundo, do mesmo desespero que nasce da contemplação da catástrofe histórica. Na poética de O Último Trago, ao contrário, não há desespero algum: o edifício ficcional do filme se dedica frequentemente a apagar a singularidade de cada desastre (os ferimentos da primeira mulher e os da personagem de Mariana Nunes são, no limite, os mesmos) e nos deixar apenas com a beleza imaculada dos gestos de insurgência. “O inimigo tem vencido sempre”, diz a frase de Valéria, enquanto o filme se dedica sistematicamente a ocultar a face do inimigo – gesto que culminará na ausência do contraplano na sequência final: Valéria atira flechas para todos os lados do fora de campo, mas só o que vemos é seu rosto triunfante, belo e central. O vilão de Com os Punhos Cerrados já estava sempre de costas para a câmera, mas agora o inimigo se transformou em pura abstração.

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Se, como escreveu Ismail Xavier em Alegorias do Subdesenvolvimento, “a alegoria é a expressão de desencanto lúcido que desautoriza uma visão ingênua do progresso como promessa de felicidade”, nada lhe é mais antagônico do que uma narrativa que se assenta tão fortemente em uma teleologia: da primeira aparição de Valéria até a transfiguração que dispara a vingança derradeira, o que a narrativa constrói – ainda que pontuada por digressões – é um crescendo em direção a um telos inevitável (o levante). Se em seus melhores momentos a alegoria “exacerba o que há de fragmentário, infernal, na experiência cotidiana, explicitando um sentimento de exílio no universo da mercadoria, sem operar uma ‘regressão mítica’ própria a uma idealização segundo a qual a nostalgia do artista levaria a imaginar belas totalidades”, nada lhe é mais alheio do que uma figura heroica tão imaculada, tão absolutamente acima de qualquer suspeita: mulher, indígena, guerreira, poeta, redentora do passado, vingadora do futuro. A escritura fragmentária, surpreendentemente, não conduz a um estilhaçamento das totalidades, mas a seu exato oposto: a construção paulatina de um mito incontestável. Qualquer semelhança com o processo alegórico efetuado pelo Cristianismo – que transformava o elenco de imagens pagãs, fragmentárias e descontínuas, em material para uma ordem totalizante que dá sentido à experiência humana rumo à salvação – não é mera coincidência.

A Cidade é uma Só? (2011), Adirley Queirós
A Cidade é uma Só? (2011), Adirley Queirós
Com os Punhos Cerrados (2014), Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti
Com os Punhos Cerrados (2014), Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti

Um marco incontornável da guinada recente do cinema brasileiro em direção a narrativas cada vez mais explicitamente comprometidas com um gesto de intervenção é A Cidade é uma Só? (Adirley Queirós, 2011). Não por acaso, a sequência de créditos iniciais do filme terminava, exatamente como a de O Último Trago, com a queima de um mapa. Ao contrário deste, no entanto, tratava-se de um mapa histórica e geograficamente bem situado (o Plano Piloto), espaço de privilégio e exclusão espacial que o filme a seguir viria enfrentar. Em Com os Punhos Cerrados, há também um mapa (o de Fortaleza), que os três revolucionários utilizarão em sua fuga pela cidade. Em O Último Trago, o vazio histórico é acompanhado de um esvaziamento geográfico: embora o mapa inicial reenvie vagamente a uma certa territorialidade, os lugares no filme se tornam espaços quaisquer, estufas hermeticamente fechadas e despovoadas, prontas para receber uma ficção mítica que escapa às perturbações do real. Se o encontro de Dildu com a carreata de Dilma em A Cidade é uma Só? era o emblema do enfrentamento entre a ficção e o mundo e da reinstauração de uma crise na relação com a História no cinema brasileiro, o bar de O Último Trago é seu exato oposto: um refúgio, uma cápsula fora do tempo e do espaço em que a ficção pode elaborar, confortavelmente, um discurso cristalino e imperturbável sobre o que está lá fora.

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“Ouçam, todos!” ou uma poética da soberba

O refrão de Com os Punhos Cerrados é uma síntese adequada para a relação entre filme e espectador que a obra recente de Luiz Pretti, Ricardo Pretti e Pedro Diógenes tem construído. Se Ythaca e Os Monstros já eram atravessados por uma economia figurativa que opunha um microcosmo de virtude (habitado pelos próprios realizadores-atores) frente a um oceano de iniquidades, essa espécie de poética da soberba se tornou ainda mais contundente quando os filmes passaram a se basear fortemente em textos políticos. Em Com os Punhos Cerrados, o autoenclausuramento dos protagonistas em uma rádio – e a perseguição pela população da cidade depois – era a tradução figurativa desse encastelamento voluntário. Em O Último Trago, os realizadores não são mais atores, mas a soberba se tornou textual. Um dos primeiros textos de Valéria – uma citação de Jack London – diz: “Eu prefiro ser um meteoro soberbo, cada átomo meu em um brilho magnífico, do que um planeta sonolento e permanente”.

Essa escolha consciente pelo isolamento e pela arrogância é frequentemente acompanhada por uma notável negligência da encenação em transformar os fragmentos literários em algo vivo e convincente. Com os Punhos Cerrados se baseia fortemente na retomada de textos que originalmente foram destinados à intervenção no debate (como os manifestos), mas o esforço para produzir a adesão do ouvinte-espectador é mínimo. Salvo na sequência com Uirá dos Reis – em que, efetivamente, algo de tensão se produz entre o corpo do intérprete e nós –, todos os outros discursos são declarados com a mesma monotonia, a mesma dicção indiferenciada, os mesmos planos fixos nos quais a energia cai inúmeras vezes antes do corte. A sensação é de contemplar um conjunto de discursos diante dos quais o espectador não tem outra opção senão aquiescer automaticamente (por identificação prévia) ou ignorar por completo, tamanha a falta de investimento da encenação em produzir alguma vivacidade para a palavra.

Filme Selvagem (2014), Pedro Diógenes
Filme Selvagem (2014), Pedro Diógenes

Em Filme Selvagem (2014), de Pedro Diógenes, o encastelamento do discurso se dá de outra maneira: a articulação entre as interferências visuais em clichês do reino da mercadoria (praças de alimentação; escadas rolantes; telas de videogame) e a banda sonora ocupada por extratos de A alma do homem (sob o socialismo) de Oscar Wilde faz do eu-lírico uma espécie de aristocrata da revolta, que se inspira nostalgicamente em um dândi elogioso da desobediência e da liberdade artística do século XIX e se põe a recitar monotonicamente as belas letras da utopia diante das ruínas do mundo contemporâneo, como uma espécie de ladainha aos convertidos. Esse gesto alcança seu auge num fragmento em que, finda por um momento a enumeração das qualidades intrínsecas do artista em contraste com as terríveis iniquidades inatas do público, o filme se põe a retratar a deriva de uma criança por um shopping center, e só é capaz de enxergar nos olhos da menina um elemento a mais do décor distópico, junto à bandeja do McDonalds.

Essa atitude poética que combina a nostalgia, a autocomplacência e uma autodeclarada superioridade diante de um suposto espectador (cuja figura social imaginária, curiosamente ou nem tanto, está sempre muito distante daquele que efetivamente vê os filmes) alcança sua forma mais acabada em Os Últimos Raios de Sol (2015), de Luiz Pretti. Neste filme, enquanto a câmera se dispõe a filmar – da janela de um apartamento – as últimas incidências da luz solar num dia qualquer na cidade, a banda sonora reúne um conjunto de declarações furiosas de cineastas iconoclastas – como João César Monteiro, Nanni Moretti e Rogério Sganzerla – em momentos de ataque violento ao público de cinema. Nesse paradoxal e sintomático panfleto contemporâneo, a montagem forja uma defesa radical da liberdade de criação do artista justamente numa fase do capitalismo em que as formas da repressão e da censura foram convertidas amplamente em um imperativo cínico da criatividade individual; a câmera se dispõe a uma atenção às belezas do cotidiano justo no momento da sociedade do espetáculo em que filmar os últimos raios de sol num lugar qualquer se transformou em trending topic em qualquer rede social. Nostalgicamente imbuído da virulência dos cineastas citados, um eu-lírico imperativo se expressa através de cartelas como “ALGUÉM VIU O RAIO VERDE?” e “ABRA O OLHO!”, e termina por se corporificar na tela, dirigindo um dedo do meio ao espectador e usando como máscara o célebre último plano de Vai e Vem (João César Monteiro, 2003). Sintoma dos sintomas, aquele que na última cartela nos dizia para abrir o olho só pode se dirigir a nós com o rosto oculto, bem escondido detrás de um olho aberto emprestado e confortavelmente situado no centro da sala de um apartamento.

Os Últimos Raios de Sol (2014), Luiz Pretti
Os Últimos Raios de Sol (2014), Luiz Pretti

O final de Os Últimos Raios de Sol expressa de forma notável o componente reacionário da nostalgia que anima a fase mais recente da obra de Luiz Pretti, Ricardo Pretti e Pedro Diógenes. Apoiar-se nos ombros de gigantes aqui implica em uma total separação em relação à historicidade, movimento que é diametralmente oposto, inclusive, à vigorosa tradição dos ciné-tracts: um panfleto começa por uma tentativa de intervir na História, e o primeiro passo desse gesto não pode ser outro senão vincular-se ao presente. A figura do apartamento não é casual: o que está em jogo é um verdadeiro apartamento da história, num movimento que se aparta das lutas do presente em nome de um passadismo estéril e inofensivo. Que as falas dos cineastas citados tenham sido originalmente produzidas num contexto de controvérsia pública tampouco é um mero detalhe: o espaço público é o lugar em que a autoexposição está sob ameaça, em que é preciso assumir o risco de uma tomada da palavra. Ao reconduzir as palavras ao conforto do apartamento, ao espaço hermeticamente protegido da ilha de edição e à clausura da sala de cinema, o filme termina por aparar-lhes as arestas e amansar-lhes a fúria de que um dia foram portadoras.

Jardim de Guerra, Neville de Almeida
Jardim de Guerra (1968), Neville d’Almeida
Os Residentes (2010), Thiago Mata Machado
Os Residentes (2010), Tiago Mata Machado

É justamente na tomada de palavra – ou melhor, na apropriação da palavra revolucionária – que reside um dos grandes problemas de O Último Trago. Nas vezes em que se dedicou expressamente a se apropriar de textos e imagens pertencentes a certo repertório revolucionário, o cinema brasileiro – de Jardim de Guerra (Neville d’Almeida, 1968) a Os Residentes (Tiago Mata Machado, 2010) – frequentemente transformou esse gesto em um território esburacado, pontuado de nuances e de distanciamento: seja nas performances autoirônicas de Joel Barcellos (“sou filho de Guevara”) e na Marselhesa avacalhada por um saxofone rouco que preenche a banda sonora do filme de Neville d’Almeida ou nos slogans desmontáveis do casal vivido por Gustavo Jahn e Melissa Dullius (“estética/estica/ética”) e na “Cartilha da Juju” que interfere sobre a prosa revolucionária no de Tiago Mata Machado, o que estava em jogo era sempre o necessário estabelecimento de um intervalo entre o texto e a dicção, entre a eloquência militante do discurso e sua apropriação fílmica, entre a retórica das lutas (passadas ou contemporâneas) e sua reinvenção cinematográfica.

Em O Último Trago, bem ao contrário, tudo caminha para a abolição do hiato entre o espectador e o filme: as nuances são eclipsadas por um mesmo tom grandiloquente, presente desde a voz over que lê a primeira mensagem de Valéria até a convocação final da anarquista para o protesto geral. Nada mais sintomático do que a constatação de que no momento em que o filme ensaia uma dicção estilhaçada – a oração para o “herói”; o ritual funerário para a ativista morta – os textos sejam justamente os menos canônicos (a tradução do Eclesiastes por Haroldo de Campos, o manifesto surrealista e o poema que diz que “o mar não para de se masturbar”). A desconstrução vem exatamente onde se espera: no lugar onde a escritura, na origem, já fora cindida.

Nada mais contraditório para um filme que conclama à dissidência do que suas traduções tão fiéis, tão reverentes. Nada mais paradoxal para um filme tão anticlerical do que a fatura de seus discursos declaratórios, cuja modalidade de engajamento solicitada ao espectador (a aquiescência) difere muito pouco daquela da homilia católica ou da pregação neopentecostal. Nada mais incongruente para um filme que quer fazer jus às vanguardas do que a falência do olhar-câmera: o que outrora fora um expediente emblemático dos cinemas da ruptura hoje se diferencia muito pouco do pacto de confiança – baseado na identidade ideológica entre falante e espectador – ensejado diariamente pela mirada frontal para a câmera da televisão de um deputado na tribuna ou de um bispo no altar.

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Após o massacre das anarquistas, estamos de volta à cena que encerrava o primeiro ato: no palco, a stripper se transforma em Valéria e, arco na mão, rosto afilado, atira flechas no vazio, em direção ao fora de campo. Esse experimentar de uma liberdade após o encerramento de uma situação opressora caminha lado a lado com a experiência do espectador: o que está em jogo aqui é uma catarse, uma sorte de descarga emocional que ao mesmo tempo libera a personagem de suas amarras e nos libera do conflito ensejado pelo filme. Uma das traduções possíveis da kátharsis grega é, justamente, purificação. Em última instância, a insurgência guerreira de Valéria não tem outro efeito senão o de nos purgar, nos aliviar da responsabilidade de encarar as impurezas do mundo. Se o leitor de Murilo Mendes só podia deixar o poema impregnado pelo desespero, caído (como o poeta) “no chão do século vinte”, o espectador de O Último Trago alcança um estado de redenção, que o autoriza a deixar o filme plenamente reconciliado com a bela e pura índia guerreira na tela. Em certa medida, trata-se da saída de sessão perfeita para resumir o desastre contemporâneo da esquerda brasileira: redimidos pela fábula insurgente do filme, nós, espectadores pequeno-burgueses satisfeitos com nossa extraordinária resistência micropolítica cotidiana, saímos da sala e seguimos adiante, reconciliados com nossa própria fantasia política.

O final catártico, esse procedimento que se tornou um automatismo tão renitente no teatro brasileiro contemporâneo – a ponto de reduzir drasticamente a potência política do extraordinário Nós (2016), o espetáculo do Grupo Galpão dirigido por Marcio Abreu – e que tem inúmeras recorrências também no cinema nacional recente – os exemplos são vários, mas basta lembrar o parecidíssimo final de Rapsódia para o Homem Negro (2015), de Gabriel Martins, no qual o herói também se põe a disparar flechadas redentoras –, é o último gole de autocomplacência de O Último Trago. Diferente da atitude do último plano de Os Últimos Raios de Sol (que postulava um rompimento com o espectador), mas exatamente igual no efeito apaziguador que enseja em nós, o encerramento de O Último Trago é um sintoma forte de um problema estético-político grave que concerne às artes da cena no Brasil. Talvez o gesto mais urgente de uma dramaturgia política hoje consista em neutralizar radicalmente qualquer forma de catarse; em desativar integralmente toda possibilidade de identificação do espectador; no limite, em dinamitar de tal forma o mecanismo imaginário da redenção que a obra só possa fabricar um verdadeiro abismo entre o espectador e a tela (ou o palco, ou a rua), cujo efeito mais imediato seja a impossibilidade absoluta do aplauso ruidoso ao final da sessão.


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