solon-header

Câmera pétrea: cinzas do olhar

No início não havia verbo.

Mas haveria um início? Num prenúncio imaginário murmura-se um cosmos, uma frase, um filme. Solon começa com raios de luz que atravessam o negro da tela, numa visão abstrata, veloz, que escapa e ilumina. A imagem, ao menos nesse primeiro embalo, não pretende tornar-se visível, mas ferir a câmera. E fere, de forma apenas luminosa, imbuída da mágica das suas partículas. Com notáveis granulações e o seu reluzir em 16mm, o filme situa-se diante das rochas, seus resíduos, sua cadência entrópica, como se pedras também pudessem observar. Capta-se um mundo-matéria na sua carnadura concreta. Escuta-se a sua voz inefática. Num misto de anseio geológico com veias de ficção-científica, o curta Solon evoca questões persistentes que precisam ser percorridas no arrulho das suas cenas.

O filme de Clarissa Campolina é composto por três partes complementares que criam uma pequena estrutura. Há, na primeira, um vazio: fumaças, ambientes preenchidos por pedregulhos, uma trilha em chamas, um pequeno rio que se expande e contamina o espaço. Vê-se gases coloridos que rodeiam rochas, misteriosas, e o movimento geológico de um mundo sem alteridade, já que sem ego ou personas, diante de entes amorfos ou distantes de qualquer aparência biológica. Nessa descrição, cósmica, lúdica, densa, Campolina realiza uma apropriação do espaço, a despeito dos evidentes aspectos do cenário e sua construção ficcional, e inscreve uma topografia no sentido mais literal desse vocábulo; ou seja, uma escrita do espaço por si mesmo, que se abre, se desdobra e se reinventa de maneira autônoma. A topografia, aqui, encontra-se materialmente com a câmera em 16mm, face a face, dente a dente, em cada fotograma, no meio dos seus rolos, na matéria que se choca, consigo e com o outro dela, algo que apenas poucos cineastas e artistas vinculados à Land Art, como James Benning e Tacita Dean, souberam erguer. Ocorre, entre o solo e a câmera, um encontro de espaços cósmicos. São formas de arquivamento dos acontecimentos, sejam eles imagéticos ou discretos, que se registram e se inventam numa duração autônoma, que surge do próprio espaço e nele abriga-se.

solon-2

O uso de 16mm, aliás, merece algumas considerações. Comumente, a escolha de filmagem nessa bitola – e em película – vem sendo apontada como uma evidência da recente passagem tecnológica ao digital. Uma evidência com um certo pathos nostálgico, como se no meta-comentário desse dispositivo, onde vê-se pelas lentes da película, e com olhares já digitais, uma certa aura de um cinema que perdeu seu protagonismo, ao menos em termos históricos e de padrões tecnológicos. Em boa parte dos trabalhos de Tacita Dean, há, por exemplo, um certo tom melancólico, num lento ocaso do cinema, da película e de uma forma de visão. O 16mm, assim, pulsaria como alegoria de um modo de cinematografia em declínio e como ruínas de formas imagéticas fugidias, que escapam e se perdem nas espirais do tempo. Solon distancia-se dessa tendência e num debate mais marcado pela arqueologia da mídia para vislumbrar algo próximo a uma geologia – no sentido telúrico -–da matéria fílmica. Uma geologia que se desdobra num espaço outro, utópico, e um ponto de fabulação vindouro, a ser construída e sem rumo certo. Além de visar uma pegada material – de encontro entre o espaço e a materialidade da película – a aposta no 16mm de Campolina arqueia-se mais a uma especulação sobre um tempo-espaço, uma “cronotopia” pré e pós-humana, do que propriamente eivada por anseios nostálgicos. O tempo da perda é justamente o início da sua fenda ficcional e da sua fabulação espacial. A escolha dessa materialidade, assim, geraria um anseio claro de elucubração cósmica.

Num segundo momento de Solon, e sem maiores explicações, emerge um corpo com forma ligeiramente hominídea. Aos poucos, um rosto, que reflete uma visão imperfeita, à sombra, sempre entrecortada por luzes velozes e fugidias. Enigmático, esse corpo é tanto acolhimento como refutação da pedra que se encontra com pedras, de um corpo-vida que se destaca e se distingue do espaço. Um aglomerado material fronteiriço, que ecoa como um surgimento ímpar, de um tempo abstrato, sem ascendentes, sem legados, como se olhássemos algo antes (ou mesmo depois, pouco importa aqui) da emergência de uma espécie. Um corpo que já nasce fossilizado e que, paradoxalmente, é oco, pois dele nada medraria, pois nele nada arquivar-se-ia. Um corpo perdido em meio a um cemitério sem mortos? Remete-se, em alguma medida, ao ato de olhar uma cabeça de Medusa: um olhar impossível que petrifica quem o olha. Afinal, quem senão a câmera para ver esse ente abandonado pelo tempo e pelo espaço? Evoca-se, hipoteticamente, o anseio de Orfeu em rever a face proibida de Eurídice. Um olhar, como ocorre em La Jetée de Chris Marker (1962), que conduz ao fim do sujeito que fitaria o seu próprio passado traumático, um olhar fatal, um olhar que insere o ego diante do seu fim, na dobra da imagem que mata. Em Solon, contudo, nenhuma morte é viável, possível ou imaginável. Existe-se. Apenas. Existe-se e desdenha-se a vida e o que nomeia-se como fenecimento.

É nessa encruzilhada realmente ímpar que Solon tece um diálogo entre esferas distintas como a ficção científica e o emergente campo chamado de realismo especulativo, onde o ponto de vista é de uma ontologia própria aos objetos. No cinema mais recente, essa evocação de entes metafísicos tem surgido de forma mais clara em filmes como os de Apichatpong Weerasethakul , nos quais fantasmas e figuras imaginárias ganham o proscênio cinematográfico. São temporalidades que apostam numa rica dinâmica entre a fabulação, a potência fílmica e os cristais de uma virtualidade audiovisual. São ficções genuinamente especulativas e especulações sobre outras ficções. Solon dialoga com essa tendência, mas tenta, de maneira autônoma, supor e especular sobre um mundo potente nos quais os entes antropomórficos estão, no mínimo, diante de um xeque, de um impasse, frente um ciclo comum e caro à inexistência. Trata-se de uma temporalidade inatual, longe, portanto, dos veios de uma recuperação de um passado nostálgico, que flerta com a potência de uma dissolução e a virtualidade de qualquer existência. Essa interação entre o realismo especulativo e a ficção científica evidencia um caminho promissor, cuja genealogia dentro da história do cinema ainda está para ser traçada.

As cenas de Solon, aliás, ocorrem a despeito de algum enunciado ou olhar subjetivo. Pulsa uma geografia neutra na qual aparta-se qualquer sujeito de criação e mesmo a criação de sujeitos possíveis, imagináveis, “parentes” próximos, fantasmas e outros assombros. Emerge, no teor dessas ausências, uma estética permeada por um alívio, serena, tranquila e mesmo um tanto zen. Haveria, afinal, (e talvez realmente haja), um mundo real e sem ego, justo quando não se abre, e se realiza, a partir do fardo, e desses pesados ossos, que reivindicam presença e uma pretensa bifurcação da natureza. Estaria-se, em termos ontológicos, e aí sim, num inerte estado de finitude. Como se estivesse no outro polo do cristal dessa finitude, o filme convida a olhar esse além que escapa; ou a olhar as rochas que tocam, sem macular, as objetivas da câmera, numa matéria que se espelha, num afeto que afeta a imagem e a escava num entre-ver, sempre inédito, pois hipoteticamente destituído de olhos vivos, humanos. Arqueia-se uma tônica de imagens que é inexistente e sobre as quais pode-se, quando muito, especular.

solon-3

Retorna-se, ciclicamente, ao começo: o solo, a terra, a solidão, silente, a solitude de um ser qualquer… um mundo apartado onde a existência, sozinha, de um ente neutro é a condição espacial da sua visibilidade ou o pressuposto visível da sua espacialidade. Antes do início, portanto, antes do verbo, haveria a luz. Ainda que opaca, a matéria refrata luz e conduz a um dilema ótico, a uma fenda temporal, a uma crise, estranha, entre partículas que coligam e afastam. No brevíssimo (e abreviado) intervalo que torna a luz viável à coisa-olho, emerge algo genuinamente absurdo. Ou, quem sabe, uma imagem como se fosse uma mera aberração. Se a visão é fruto desse “erro” da natureza que se depara diante de si é possível arriscar que o natural – não para olhos por demais antropocêntricos – mas as visões da natureza consigo mesma revelariam um mundo sem vista, um universo de raios que colidem em pedras, meteoros ou de movimentos caóticos e imbuídos de cores cegas. Nessas mútuas apreensões de entes sem imagens, o que queda são variações da matéria: o líquido, o gás, a pedra, o vento, o balé insípido dos pós cósmicos

Em Solon, portanto, não há vida, mas surgimentos caosmóticos. Não há morte, mas apenas uma dissolução. Um desaparecimento, ao fim da película, tão súbito como gradual: um mar, um farol abandonado, como vestígio inútil, já na terceira e última parte do curta, que tudo encobre. E vibra certo enigma diante das ruínas líquidas tão bem conduzida por Campolina. Ainda que essa parte final tenha tons mais densos e possa remeter a deslizes pessimistas, eles não chegam a comprometer o conjunto rítmico e lúdico do curta. Tênue, a fábula tende a conotar um ar de abandono, dando motivos possíveis a algo que remete a um certo apocalipse. Não ocorre no filme, contudo, revelação alguma e equilibra-se, com precisão acrobática, por suas aberturas, no seu processo de indeterminação, por sua condução possível, esquivando-se dos faróis, abandonados, das iluminações provisórias e de qualquer forma outra de revelação. Nessa viagem da luz que Solon resguarda e transmite, a escuridão é um dado, um ponto de partida e mesmo uma chegada fugaz. Pelas ondas, pelas águas, embala-se apenas um anseio de devir dentro e para além de qualquer escuridão.

Ao final, e nessa cadência, tampouco haveria verbo. Ou mesmo uma plaqueta, dado esse último instante que ignora salvos, perdões ou condenados, com letras anunciando The end. Ao cabo, quando todo vestígio biológico estiver ausente desse planeta – ou de outro aglomerado pétreo qualquer que suporte e hospede o que se ousa chamar de vida – ao fim, voltaria-se aos mesmos acontecimentos cegos e mudos de outrora. O que era imagem, o que era câmera ou tela, restará como pedra sem anima e o que se chamou de olhar será apenas um índice solto de uma estátua sem batismo, inominável, e alheia aos pesos bobos, vãos, frente a essas ausências. Encontra-se um cenário similar ao de Pompéia, onde os corpos calcinados abraçam-se com outras dobras da matéria. Onde o que era pedra, o que era imagem ou arte, ainda murmura como pó; onde quedariam pedaços de esculturas num abismo, pedaços desprovidos de sentido, estátuas, delicadas, profanadas pela frieza inorgânica do solo, frágeis chamas de um passado que foi supostamente visto, cinzas mínimas que só ao vento caberia soprar.


Leia também: