Landscape Suicide, de James Benning (EUA, 1987)

novembro 29, 2013 em Em Pauta, Luiz Soares Júnior

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A mecânica do vivo
por Luiz Soares Júnior

Objeto total, completo com partes faltando, no lugar de objeto parcial. Questão de grau”.

Samuel Beckett, Malone Morre

O importante a saber é que a fotografia possui uma força de evidência cujo testemunho reside não no objeto, mas no tempo”.

Roland Barthes, Camara lucida: Reflexões sobre a fotografia

A primeira seqüência de Landscape Suicide (1987) nos oferece uma espécie de trompe l’oeil temporal: à série de planos repetidos de uma jogadora de tênis rebatendo bolas contra o fora de quadro se segue um contracampo da quadra, onde as bolas arremessadas se acumulam. Uma pausa sibilante. O plano que parecia se esgotar no domínio da repetição ocultava sob a dobra de sua diligência monista uma diferença: se a quadra está recheada das bolas que a tenista arremessou, é porque os planos do arremesso, que pareciam um mesmo e único plano, segregavam um contracampo sub-reptício, repercutiam e ressoavam contra o fora de quadro; eram vários, específicos, irredutíveis uns aos outros; em suma, diferenciais (no sentido hegeliano, em que a diferença representa o trabalho do tempo sobre o sentido). Este corte que nos é negado – e que aparece integrado a uma síntese estrutural, no primeiro e último contracampo – intercepta e difere, agora sob a forma de um buraco negro fade in, a fala dos assassinos, Bernadett Prott e Ed Gein.

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O que significa esta intercecção da palavra pelo abismo, esta diferença que o tempo escava na planície da significação, rastreamento topográfico do discurso pelo choque de uma infinitude litigiosa de pequenas síncopes – ou antes: pela suspensão que estas instauram no continuum do Ser e do Logos? Benning segmenta, litiga, disjunta o discurso de ambos: a experiência dos assassinos não se deixa resgatar numa narrativa, registro pontual e causal; ela não está completamente aí, divaga e esvai-se; é necessariamente fraturada, descontínua – há um istmo de ausência, uma cratera in-significante que lhe destina a um impasse, que a condena à repetição e à fragmentação: o rastro do morto, a afasia perplexa do espectador? Mas os longos mortuários planos fixos, onde a memorabilia das assassinadas se fixara – quarto de baby doll suburbana da amiga de Prott, indie e nostálgica; valsa folk, espectante e espectral, de dona de casa interiorana, a presa de Gein – permanecem intactos; a suspensão incisiva e o fragmento reminiscente só afetam os depoimentos dos assassinos.

Se ao morto é dado um último presente, ele deve mostrar-se em sua absoluta pregnância: acompanhamos ambas as mulheres assassinadas em rituais de acasalamento narcisista com o espelho – sobre a cama e dançando uma valsa. A experiência reconstituída em sua integridade só pertence ao morto, mas é registrada com calculado e caricato rigor: o american way of life, bovinamente kitsch, maculara com o selo do cromo aqueles crepusculares kammerspiel… Se ao trauma e ao horror restou um lugar, é no registro taquigráfico do discurso dos vivos – sob o arcabouço institucional, legalista da prova – que este se localiza: o ponto de vista dos que prestam testemunho, dos que estiveram lá. Inaudita perversão, onde a culpa coletiva sartreana, com um esgar ainda mais irônico, vem se aninhar: as únicas testemunhas são também os assassinos.

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Se a montagem em Benning rasura e cinde os discursos de Prott e Gein através da mediação de seus cortes sinápticos, é igualmente porque se recusa a identificar em um mesmo e único sujeito – autor do delito e lugar da elocução – a perspectiva da verdade. O cinema é este estranho laboratório zumbi, a um só tempo pretérito imperfeito e presente perfeito (Gilberto Perez: “O tempo da projeção de um filme designa um presente morto, do qual estou excluído”), em que se defrontam os espaço-tempos destes cúmplices compossíveis: o meu assassino, Eu, aquele que me assiste (assiste?) morrer.

Mas ninguém passa impune pela vida, nem incólume pela representação: o depoimento dos assassinos, fraturado pela síncope da montagem, aparece-nos necessariamente como a cicatriz do passado, o lugar não totalmente suturado onde permaneço sangrando. Daí a sua incompletude, seus laivos de hesitação, o extravio mnemônico e perceptivo de um gesto decrépito, muito aquém do umbral da significação: reticência e indiferença de Gein ao empunhar a arma de caça e a pose do crime; apatia e “programação” tatibitati de Prott, emaranhada na trama dos “Ok, ok, all right”. Right stuff.

Se a alienação supura implacavelmente a memória do morto e o discurso dos vivos, qual o verdadeiro lugar do testemunho no cinema de Benning? Quem vai se encarregar (se humano, se pronome) de exprimir a verdade desta impossível acareação entre um discurso tatibitati e uma memorabilia-cromo, entre uma alienação que se fixou na representação (kitsch) e outra que insiste em lhe escapar, infiltrada pelas bordas do fora de campo?

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Em um belo livro sobre aura, testemunho e trauma, Ulrich Baer registra a palavra de Alfred Londe, fotógrafo de Charcot na Salpêtrière: “A câmera possibilita de fato a captura do traço residual da manifestação patológica, qualquer que seja a sua natureza, traço este que modifica a forma exterior do paciente e lhe imprime um caráter particular, uma atitude, uma feição especial. Estes documentos imparciais e rapidamente coletados dão às observações médicas, na medida em que colocam sob os olhos de todos a imagem fiel do sujeito estudado”.

Qual a mediação que funciona, no domínio da fotografia, como catalisador deste processo de captura do traço ou rastro do ser, da sua diferença? Qual o demoníaco duende encarregado de deflagrar na figura da histérica a inervação do Mal – e assim tornar visível e presente o trajeto da doença, a ronda do abcesso espritual? O flash. A imagem traumática aparece-nos no lusco-fusco entre a Memória e a imaginação – sempre num relance, pássaro cego e voltejante contra a treva; o flash é a tradução no domínio tecnológico e representacional desta imagem-relâmpago que me assoma e difere. Abrasada pelo flash, a pupila conhece uma outra irradiação, hipnagógica e cintilante – e a identidade, titubeante máscara de Linguagem, enfim vacila e cede o passo ao demoníaco da Doença.

Se o flash (o equivalente às síncopes na montagem, em Landscape) é o desequilíbrio indispensável à cristalização de uma experiência impossível – aqui, a reconstituição da atmosfera e dos afetos que presidiram aos crimes, o caráter propriamente fantasmático da cena- , qual o site que o filme de Benning vai designar como o lugar provável de uma verdadeira presentificação? Se o discurso dos criminosos constantemente vacila e se interrompe, cabe à empreinte de realité baziniana o papel de índex de revelação.

A princípio. A paisagem, no cinema de Benning, parte desta constatação de base de que a fotografia é a infra-estrutura irredutível da representação cinematográfica (Renoir: “O que eu faço é fotografia”). O cinema, que certamente mereceria o último lugar na classificação da Estética hegeliana, é uma arte com uma carga ontológica pesadíssima: nele, o mundo desde sempre me precede e me ultrapassa (Aqui, na encarniçada luta para esfolar o corpo do cervo, temos uma amostra deste delituoso trabalho de violação da realidade pela técnica cinematográfica). Mas esta é a base; o esforço de todo grande artista consiste em tomá-la como princípio (Arché), não Telos (Fins). É nisto que consiste a arte, aliás: um trabalho de confecção do Real a partir do Real – a Mímeses como fundamento da Poiésis.

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Assim, Benning imprime e superpõe à paisagem a métrica da série (as repetições) e o diapasão em stacatto das síncopes; ele suprassume (Aufheben) o real a partir de operações de significação, nas quais ele se torna a base indispensável mas ultrapassável de todo jogo semântico. Sim. Indispensável e ultrapassável. E a crueldade particular de Landscape Suicide consiste justamente nisto – neste trabalho, lúcido e metódico, de vivissecação da matéria pelas mediações da montagem e o mecanismo da serialização; como em toda démarche de crueldade, trata-se de atingir, com os meios de que dispomos (materialismo é a regra aqui, como em todo imenso cinema, de Stroheim a Brisseau), o fito de uma operação de conhecimento, existencial ou dedutivo: tornar transparente na carne opaca o eidos de uma Memória, proceder a uma demonstração ou elaborar um teorema espacialmente arrojado com dados estatísticos, como aqui – enfim: fazer emergir na matéria e pela matéria a translucidez do Espírito – encarná-lo e encarecê-lo, tornando-o presente para o Logos do espectador, o verdadeiro sujeito do filme, o lugar onde enfim se realiza a síntese kantiana: percepção e conhecimento reconciliados, Unos. 

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