O Porto, de Clarissa Campolina, Julia De Simone, Luiz Pretti e Ricardo Pretti (Brasil, 2013); Em Trânsito, de Marcelo Pedroso (Brasil, 2013)

fevereiro 8, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

Ideias e formas, matéria e memória
por Victor Guimarães

A situação criada por um festival do tamanho de Tiradentes, com seus mais de cem filmes em exibição, é bastante propícia ao jogo – às vezes, inconsciente – da comparação. Especialmente nas sessões de curtas-metragens, a curadoria propõe relações, sugere reverberações de um filme em outro, potencializa ou prejudica a experiência de cada um. Mas para além do desenho proposto por cada sessão (e da pueril necessidade de definir cada obra como melhor ou pior do que as outras), há também aqueles filmes que, mesmo exibidos em dias diferentes, saltam aos olhos e aos ouvidos não apenas por sua potência própria, mas por compartilharem motivos, traços, projetos que os excedem enquanto obras individuais e permitem lançar um olhar menos individualizante sobre o cinema (mas também, inversamente, um olhar mais acurado sobre cada um).

A comparação, no entanto, é um exercício que comporta sempre uma boa dose de risco. À primeira vista, o principal problema residiria na possibilidade de não ser específico o suficiente, de não oferecer ao filme aquilo que ele mais pede: tempo e atenção para existir, nem que seja no espaço da sessão, sozinho. Mas se o risco é real, há também algo potencialmente profícuo no gesto comparativo: a análise pode revelar, no cotejo, virtudes e problemas que um olhar centrado apenas em um único filme seria incapaz de trazer à tona. Deter-se – no mesmo movimento crítico – sobre um par de obras pode revelar nuances de uma proposta (a princípio) comum, desvendar forças subterrâneas, descobrir dificuldades insuspeitadas. Em suma: comparar para melhor encontrar o que constitui o plural, mas também para melhor enxergar o singular.

O Porto e Em Trânsito, exibidos na mostra Panorama, partilham de um mesmo território existencial: a cidade contemporânea, com seu afã desenvolvimentista e suas múltiplas contradições (expressas tanto na revitalização da zona portuária carioca figurada pelo primeiro como na demolição do barraco do protagonista que dá início ao segundo). Se o motivo é semelhante, a postura diante dele também é: seja na abordagem observacional de O Porto, seja no embate direto proposto pela ficção de Em Trânsito, o que está em jogo é um olhar profundamente crítico em relação à ideia de progresso, que aponta as contradições do capital para melhor combatê-las com o cinema. Mas se a crítica à iminente transformação urbana – que associa, no capitalismo brasileiro, especulação imobiliária e higienização social – já se tornou uma espécie de tema clichê entre nós (atravessando filmes tão diferentes quanto Um Lugar ao Sol, Avenida Brasília Formosa, Vista Mar, Em busca de um lugar comum, Vigias, O Som ao Redor, Câmara Escura, A Cidade é uma só? ou até Amor, Plástico e Barulho), as maneiras de abordá-la têm sido muito diferentes, com resultados mais ou menos inventivos. Tanto Em Trânsito quanto O Porto dialogam com esse universo de filmes, mas seguem caminhos bastante próprios. E se um clichê é uma imagem que perdeu sua potência de afetação, arrebentá-lo por dentro é tarefa primeira de ambos. 

O Porto (2013), de Clarissa Campolina, Julia de Simone, Ricardo Pretti e Luiz Pretti

O Porto (2013), de Clarissa Campolina, Julia de Simone, Ricardo Pretti e Luiz Pretti

O Porto se destaca desse contexto, à primeira vista, por travar um diálogo menos com esse cinema brasileiro recente do que com certa produção experimental contemporânea, que encontra em nomes como Lee Anne Schmitt, Deborah Stratman ou James Benning alguns de seus mais notáveis expoentes. Com um filme como California Company Town (2008), de Schmitt, o filme de Julia de Simone, Clarissa Campolina, Luiz Pretti e Ricardo Pretti partilha um olhar sobre a paisagem devastada pelo capital, uma mirada que se interessa pela arquitetura como vestígio de um processo histórico e político. Com a obra-prima In Order Not To Be Here (2002), de Stratman, tem em comum uma verve materialista que procura produzir sentido a partir da espessura mesma dos espaços, de sua reinvenção em imagem e som, em uma rejeição quase total da palavra como veículo de significado.

Junto da tela preta que abre o filme, a melodia triste e repetitiva das máquinas de construção nos instala em uma paisagem sonora bastante conhecida da urbe, ao mesmo tempo em que começa a nos transportar para a cidade pós-apocalíptica que será a do filme. O som cotidiano é transmutado em gesto de cinema, que encontrará no tratamento material das imagens sua contrapartida visual: os primeiros planos de O Porto conferem à paisagem da região portuária uma aparência aquática, como se uma câmera submarina – vinda de um outro tempo – viesse redescobrir uma arquitetura pretérita, uma Atlântida carioca uma vez perdida e reencontrada na estranheza do olhar. Tradução cinematográfica da letra de Chico Buarque: “E quem sabe, então/O Rio será/Alguma cidade submersa/Os escafandristas virão/Explorar sua casa/Seu quarto, suas coisas/Sua alma, desvãos”. Essa câmera escafandrista encontrará as pichações nos viadutos, as alegorias carnavalescas que se movem lentamente, um vulto que se movimenta sob uma luz no fim de um túnel, as pedras de uma construção abandonada a meio caminho. E então, de súbito, um som eletrônico lentamente se metamorfoseia em funk, e a cidade submersa torna-se luminosa, vibrante – apenas para tornar-se novamente aquática na imagem seguinte (que nos mostra uma placa de 1843, comemorativa do “embelezamento” do antigo Cais do Valongo para a chegada de D. Tereza Cristina). Expõe-se o vestígio de um processo histórico que se repete, na sucessão de mentiras constitutivas de nosso afã civilizatório. A profecia amorosa de Chico encontra sua reinvenção distópica: “Sábios em vão/Tentarão decifrar/O eco de antigas palavras/Fragmentos de cartas, poemas/Mentiras, retratos/Vestígios de estranha civilização”. 

oporto2

Mas O Porto descrê dos discursos, sabe que a tentativa de explicar é fadada ao fracasso, e segue em sua crença decidida em extrair pensamento da concretude da matéria: encontraremos os iates avantajados, novamente o carnaval, o trânsito, os prédios (na panorâmica que conduz da igreja ao edifício envidraçado), à medida que um outro clima sonoro se instala (um grito à base de cordas agudíssimas, um prenúncio de terror fundado em ruídos graves que remetem aos navios) para contaminar a sequência seguinte, que consiste em uma projeção arquitetônica digital do futuro daquela região (sai de cena a “feiura” dos viadutos, chega como presságio a higiene das novas avenidas arborizadas, habitadas por cidadãos de videogame). O travelling final reverte uma imagem tida como fundadora do cinema brasileiro, a vista da Baía de Guanabara de Afonso Segreto: se aquela era um anúncio de um cinema por vir, a despedida do Rio em O Porto é tingida de cores baças, sem esperança de futuro algum.

Há, certamente, uma investigação poderosa em jogo no filme: trata-se da acepção godardiana do cinema como “forma que pensa” em sua compreensão mais cristalina e sem concessões, que consegue diversas proezas: a imagem-mergulho que torna profundamente estranho o que pareceria corriqueiro; o parêntese funkeiro no lamento melancólico; o festejo da projeção da cidade higiênica contrariado pelo trabalho sonoro que anuncia o desastre iminente do projeto modernizador. Mas há também alguns riscos, dos quais o filme não se desvencilha de todo. Em certos momentos, a atenção detida às coisas em si mesmas esbarra na produção de uma abstração que anula a singularidade do fenômeno visado: quando insiste em demasia sobre motivos semelhantes, quando deixa de nos surpreender em sua repetição (compreensível como projeto, mas não tão potente como forma acabada), O Porto termina por fazer com que o Rio se pareça demais com outras cidades arrasadas pelo capital, ou com uma cidade-capital genérica. Por outro lado, quando não leva o gesto materialista suficientemente a cabo, o filme corre o risco de fazer não com que a concretude não nos diga nada (problema mais recorrente em certo experimentalismo de curta-metragem brasileiro), mas sim com que ela seja facilmente traduzível em palavras, perdendo algo da força de sua ambiguidade vibrante.

Em Trânsito, por sua vez, segue uma trilha diametralmente oposta. O filme de Marcelo Pedroso retira toda sua força da aposta estética inversa: em vez da crença na matéria silenciosa como produtora de sentidos, há um investimento na contrainformação direta, no panfleto inflamado e raivoso que não hesita por um só momento em encher-se de verbo, em transformar o cinema em arma discursiva de luta campal. Seu diálogo é com outra vanguarda: a da vasta história da contrainformação fílmica – da cooperativa Cinéma du Peuple a Medvedkine, do Newsreel ao grupo Dziga Vertov, de Masao Adachi a Santiago Álvarez –, que Nicole Brenez têm feito questão de reivindicar como um vasto campo de invenção formal (associada à importância histórica ou política no sentido da disputa ideológica). Em Trânsito postula um estado abertamente colérico e panfletário do cinema (e, na mesma medida, recheado de humor e de sarcasmo), que reenvia aos ciné-tracts de Godard, Garrel, Resnais e outros. 

emtransito1

Em Trânsito (2013), de Marcelo Pedroso

Logo no prólogo, delineiam-se as forças em disputa: um plano geral dá conta do pátio de uma imensa fábrica de automóveis, mas revela também os arranha-céus da cidade ao fundo (a produção de carros e a produção da cidade fazem parte da mesma rede). O corte nos transporta diretamente para o interior de um quarto escuro, em que um homem negro, sem camisa e exibindo vistosos dreadlocks, desperta pela manhã com uma chamada no celular: uma gravação típica das campanhas eleitorais brasileiras pede votos para o candidato a prefeito em nome do governador de Pernambuco, Eduardo Campos. O protagonista escuta entediado, fuma, enquanto o filme interrompe a golpes de montagem a fala pasteurizada do governador: trata-se de dinamitar um discurso oficial com as armas do cinema, de acentuar seu ridículo na operação do filme.

Enquanto seu barraco é demolido por um trator, o protagonista parte em uma deriva pela cidade: pega um ônibus, entra em uma concessionária de veículos e experimenta o ar-condicionado de um deles, atravessa a pé um grupo de cabos eleitorais uniformizados do tal candidato a prefeito. O homem sem nome é um corpo estranho em uma cidade que não lhe pertence; tudo em sua figura destoa da paisagem higiênica ao redor. Ao deparar-se com uma figura de Eduardo Campos em papelão, o filme os coloca frente a frente sobre um fundo branco, e o homem do povo pode imaginar-se na mesma postura corporal do governador. Sua jornada então se torna onírica: enquanto ouvimos o ufanismo seletivo da presidenta Dilma (“O sucesso do Brasil é também o sucesso da indústria automobilística”) e uma música de tom cômico, vemo-lo transfigurar-se em funcionário da fábrica de automóveis e em proprietário de um carro popular, até que um buraco na estrada interrompe o breve sonho de grandeza. De volta ao fundo branco e ao confronto com a face do poder, o filme lhe concederá a vingança possível: decapitar Eduardo Campos, tomar-lhe a cabeça de papelão tornada máscara que o converte em super-herói, reger com os movimentos dos braços a máquina que ergue e destrói a cidade, tornar-se um maestro improvável da coreografia circular dos automóveis que o saúdam (Holy Motors!) ao final da música grandiloquente.  

emtransito2

Há algo que urge e demanda vingança no cinema brasileiro contemporâneo – pelo menos desde o percurso quixotesco de Dildu em A Cidade é uma Só? –, e o filme de Pedroso fará da paródia sua principal arma de provocação. Sua força está no embate direto, no dar nome aos bois, no transpor a fratura que separa os corpos do poder dos homens sem importância pela via do excesso. Mas se seu vigor é inegável, há também um risco simétrico ao de O Porto, porém diverso: trata-se aqui da ideia que esbarra na tentação de suplantar a matéria, da contrainformação que corre o risco de ser ainda (apenas) uma informação, da antiga tentação do cinema militante (tal como a concebeu Serge Daney) de transformar a forma cinematográfica em veículo de pensamento fabricado em outro lugar. A demolição do barraco – cuja iconografia remonta à célebre sequência de As Vinhas da Ira (1939), de Ford – está lá, figurada, mas não carrega a potência trágica da imagem que é capaz de nos transformar em sua figuração (e não apenas em sua mensagem). O panfleto é urgente e certeiro, mas é mais forte quando deixa de ser apenas panfleto, quando não permanece essencialmente vinculado ao presente (Eduardo Campos, Pernambuco, Brasil): a regência do maestro negro que paira magicamente sobre a cidade tem a força das imagens eternas, porque singulares. 

oportoemtransito

Tanto O Porto como Em Trânsito encampam – em seus próprios termos, que não poderiam diferir mais – uma postura firme de enfrentamento e reconfiguração do discurso desenvolvimentista que parece constituir o único horizonte político possível no país atualmente. E se ambos guardam alguns dilemas (são sempre mais fortes quando ferem a previsibilidade de uma forma homogênea, quando encontram na singularidade insubstituível dos gestos de cinema uma chance real de nos colocar em crise), há aqui um notável par de filmes políticos, que exibem um labor estético vigoroso e pulsante. Num momento em que tantos filmes decidem trilhar caminhos semelhantes, que esses dois consigam se impor como formas singulares é motivo de festejo e de esperança. 

Share Button