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O outro em mim

Elle começa com um apelo do fora de campo: a tela negra, emoldurada pelo grito lancinante da estuprada; e, no contra-campo, uma advertência do fora de quadro: o close no olho do gato, que contempla aquilo de que só ouvíramos o grito. O estupro é diferido pelo incognoscível do olhar animal e pelo agonístico urro da vítima, duas formas de Logos que se acumpliciam com as Origens; uma história das profundezas começa a ser descrita aqui, e segundo o diapasão ditado por toda profundeza: cegos ou surdos, estaremos sempre lá…

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Michèle (Isabelle Huppert) passa o filme relembrando a violência de que foi objeto – e é este flashback, esta resistência do passado em passar, sua resiliência ao devir, que vai ditar o leitmotif da reemergência do interdito de que de que Elle será ora a crônica exploitation com pinceladas de nonchalance irônica, ora o sitcom “de caso” psicodramático; mas sobretudo: o romanceiro perverso de uma menina que, para esquecer uma cena originária monstruosa, precisou converter-se em uma medusina self-made woman, asséptica e frígida superfície de porcelana, impermeável aos humores como ao Amor e à Morte: “(…) quem matou o Outro dentro de si acaba um tanto morto também” (Serge Daney). Mas o monstro sempre volta, pois esta é a sua lei: a repetição.

A decupagem majoritária de Elle é de quintessência classicista, cujo paradigma certamente mais holístico nos foi dado pela obra-prima de Hawks, Only Angels Have Wings (1939). Fluida e “cerrada”, inventaria tudo o que pode, tudo o que deve, ou tudo o que nos deve interessar pelo menos: predatório, nada lhe escapa, pois as coisas, como os devires, devem manifestar-se integralmente no campo, infinitesimais inclusos: gestos furtivos como sombras rastejantes.

Mas embora adote este partis pris clássico de preeminência da presença, Elle também é um filme do Limiar, daquilo que, ocluso ou recalcado, espreita como fora de campo. Verhoeven pontualmente anuncia este detalhe estrutural ao situar três cenas-chaves à frente da porta que comunica o mundo de Michèle e o mundo tout court: na primeira, o gato entra no campo pela direita, e a porta entreaberta é o orifício pela qual o estuprador vai penetrar a casa e a dona; na segunda, o homem volta para beijá-la, mas agora travestido de Dr. Jekyll (o “bom” vizinho), e a cena grandiloquente, com cortinas esvoaçantes e mãos que se desgarram, é um pastiche de Emile Brönte incrustado num thriller psicótico à la Patricia Highsmith; em seu último consórcio com o limiar, Michèle é literalmente expulsa do hospital onde sua mãe está morrendo: no trespassing.

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O Limiar gesta o trânsito e modula os tráfegos do Amor e da Morte, pois ele é o interstício por meio do qual o crime soterrado e o Pai irrecuperável saem da coxia para talvez sua última aparição na ribalta, como o itinerário do filme vai descrever: ele torna a superfície marmórea de Michèle porosa às profundezas. Por sua intercessão, uma economia do demoníaco ameaça estilhaçar o clean and smooth universo de imagens (virtuais: é dona de uma empresa de videogames) que a mulher edificou para permanecer infensa a tudo o que é vivo: humores, devires, animais – o gato; o passarinho que se joga contra a janela; mas o interdito-mor é este arquetípico Minotauro cuja efígie ela se recusa sequer a ver (a mãe deve insistir para que contemple a foto do Pai, fotograma de maldição que lhe queima a pupila); e, diante de seu corpo morto, um exorcismo e uma vendeta… Elle lembra-me outro título honorífica consagrado a Deus na história do cinema perverso: El (1953), de dom Buñuel, conto de um paranoico e do destino de suas pulsões: ora oprime a esposa, ora joga na Bolsa. Michèle, que dos cimos de seu pedestal self-made woman também é uma espécie de deusa, começa a decair de seu trono quando uma mulher propositalmente derrama café em sua bolsa: “Lixo! Por você e por seu pai”. De um pai não se foge: o monstro sempre volta, e sua rentrée dinástica tem o Limiar como passarela.

Falei acima da Cena clássica predominante no filme: ela parece obedecer de forma mimética ao anguloso e reto corpo de Michèle, senhorial em sua determinação de comandar e ordenar tudo… no trespassing. Mas há uma outra Cena, introduzida justamente pelo Limiar, que desregra, desalinha e talvez acabe por revelar uma certa essência da cena primeira: uma Outra topografia, côncava face da Mesma. A cena do estupro é um teatro exterior, artaudiano talvez: na Cena clássica (onde tudo se vê, mas talvez nada se revelasse se não fosse a corrosão introduzida pelo Limiar), o que vige é o lado propriamente crônica de uma classe dirigente e de seus rituais domésticos de Poder, tão francês em seu “expedito fluido”: uma superfície bem torneada onde a lógica da corporação dita com precisão o jogo de cena e de corpo de Huppert, credora de uma predatória distância. Na Cena demoníaca do estupro, porém, não há clins d’oeil, golpes de cena e de sintaxe que nos poupem do Limiar: o estupro abre uma cratera na soberania até então inviolável de Apolo.

Se Elle acaba por se deixar fascinar e finalmente emascular pelo estuprador, é porque a encenação do estupro talvez represente um interdito espelho da Cena clássica, onde ela se reconhece de forma especularmente inversa: ambos são predadores (uma latente ou civilizada; outro manifesto, embora mascarado), e a arena noturna é um tablado onde se medem forças e se experimentam miras para o recíproco extermínio… talvez; mas Elle continua um filme comandado pelo Limiar, portanto poroso à imaginação e à hipótese, ao possível. Outras alternativas necessariamente devem se apresentar: outra causa (diegética) para a paixão masoquista pelo seu ofensor é o conhecido mecanismo psicológico de interiorização do opressor, pois o inconsciente habita um pântano indiferenciado onde Outro e Mesmo se traficam; outra ainda, e talvez a seminal, é de que ele lhe possibilite enfim uma incondicional abertura àquela parte suja e rota que ficou soterrada na casa onde seu pai, “o psicopata”, cometeu o hediondo crime: o horror vai colar novamente à pele de Michèle e enodoar o seu prático-inerte com os rastros do rés-do-cu (o Desejo tout court, o Desejo de Morte).

Elle é a história de uma regressão, de uma maldição também: tudo deve voltar, pois o tempo do trauma fratura a linha reta de Cronos e a inflete em direção ao círculo Kairos de danação, onde nada passou nem passará… A repugnância à foto analógica do pai e a impossibilidade de tolerá-lo senão como imagem digital (o vídeo que revê; o videogame de que é designer) revelam que Michèle padece de um recalque típico de nossa época: matar a intolerável vida – que é sempre nódoa, mácula da exposição à finitude – para eternizá-la somente como virtual… o “shoot and take” dos celulares expeditos para o que não mais vemos lhes diz alguma coisa?

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Mas falemos da cena noturna do estupro, cujo metteur en scène é o Limiar, avatar do fora de campo (o passado que não cessa de refluir, todo o sangue e todo o sêmen que o mundo asséptico da corporação obliterou…). A decupagem aqui é frontalmente oposta à da Cena clássica: seus zooms resfolegantes; a síncope arfante de seu corte; a brusquidão de seu látego encarnam propriamente o bicho que invadiu aquela ogiva de cristal e maculou-a com o Totalmente Outro… é um outro corpo o que se descortina aqui, uma língua cuja sintaxe é urdida pelo sangue, detritos e esperma: o efeito de choque é evidentemente deliberado, pois a intrusão do Outro no Mesmo é sempre uma terrificante operação de violação da máscara pela pulsão. Tudo o que Michèle deixara lá fora ou lá embaixo para tornar-se Michèle retorna através deste buraco aberto no seio do mundo apolíneo, ou pelo menos do Apolo ao qual hoje adoramos e a quem Michèle oficia: funcional, prático-inerte, útil.

Sabemos que o retorno do recalcado é a versão codificada modernamente por Freud daquele momento em que os deuses trágicos, “humanos tão humanos”, acabavam por se aperceber que tinham criado alguém mais belo ou mais viril do que eles e, curtidos de inveja, aniquilavam com um raio de Minerva a infeliz criatura. No teatro, ainda hoje se diz “merda” justamente para exorcizar a paixão destrutiva da divindade, já que, se estamos todos na merda, o que haveria para invejar? A natureza fatalmente se vinga se, quando criança, a trancamos no armário: o oikos de Antígona é o seu lote. Michèle esqueceu tudo para ser o que é, mas é justamente quando o Pai e seu cortejo de sangue se tornam mais inacessíveis à consciência, segundo o modelo do recalcado freudiano, é que estão mais “presentes”: o estupro figura de forma lancinante esta hedionda “volta à Cena”. Por que? Talvez porque seja um evento psicossomático por excelência, na medida em que, como as obras de arte, se alimenta de matérias (excrementícias) e de fantasma: o link entre o passado exploitation soterrado e o espectro onipresente do Pai está consagrado.

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A partir deste evento tenebroso, a regressão se instala propriamente e infecta a percepção até então “asséptica-funcional” da personagem: ninguém sai impune ao tête-à-tête com o monstro…tudo o que era natural, “à mão e útil” para a mulher da corporação torna-se uma questão: a figuração (Michèle passa, em atento contra-plongée, no térreo de seu escritório e vê no primeiro andar um assistente levantando bruscamente os braços de uma moça, segurando seu queixo com firmeza; mas ela vê errado, porque vê a iminência de um estupro, e não a preparação para um desfile); a questão ontológica das Origens, na relação com a mãe e com o que restou de imagens do Pai, mas também com aquela aparente blague pitoresca do filho negro de seu filho; o inevitável masoquismo, índice de finitude radical, de situação. A partir de agora, o ser está plasmado pelo fantasma: o trauma modela e modula a percepção cotidiana segundo a lógica teratológica das profundezas.

Mas o que é mais perverso em Elle é que, embora seja um filme sob a égide da extrema regressão, permanece em aparência “na superfície” da crônica sitcom, pois praticamente não se denota formalmente o demoníaco a que agora está sujeito: anti-expressionismo. Ao final, a resolução do romance de formação abominável, com o trabalho do luto e a consequente reconciliação: Michèle deposita flores nos túmulos dos pais. Finalmente, ela pode voltar à tona.


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