A mítica do olhar interno

Uma câmera à mão, o marca-passo de um ritmo respiratório – e o tempo suficiente para que a impressão de uma trepidante subjetiva levante “seus” olhos do nível do chão para deixar adentrar, no quadro, um desconhecido em trânsito de alto fôlego. A curvatura de intromissão de um estrangeiro, da subjeção ao intuitivo, saltando do pulmão ao acompanhamento que se fará sobretudo olhar, é, ainda naquele preâmbulo, uma instalação do anonimato em mais de um sentido. E se a câmera aprende a ceder espaço para… CONTINUA

Aqueles que não querem se afetar

Durante uma hora, vinte e oito minutos e dezessete segundos, entre os dias vinte e quatro e vinte cinco de maio de 1975, a lua sangrenta se interpôs por completo entre o sol e a terra, lambuzando a Argentina de vermelho. Exatamente dez meses a partir do eclipse lunar total a Argentina sofreria um golpe, que retiraria Isabelita Perón do governo e uma junta militar, liderada por Jorge Rafael Videla, ascenderia ao poder e iniciaria uma ditadura no país. É no contexto desses dois eventos… CONTINUA

“I am a passenger”

O hino à falta de controle sobre o destino proposto por Iggy Pop abre a primeira cena de La Gomera, novo filme do romeno Corneliu Porumboiu – e seu primeiro a ser exibido na competição de Cannes. A música acompanha a chegada do policial Cristi na ilha espanhola que dá nome ao filme: ali ele é um estranho e será transportado por uma história sobre cujas rédeas, logo vamos percebendo, não tem nenhum controle. A forma como o filme se espalha pelo tempo e pelo… CONTINUA

Estranho: modos de usar

Cada vez mais, o cinema que se costuma exibir nos festivais é marcado por um apelo ao realismo, seja na sua vertente mais radicalmente naturalista, seja numa incorporação de aspectos fantásticos típicos de cinemas de gênero, mas onde se exige responder a uma lógica dramática e narrativa em que a construção de personagens/seres humanos retratados deve seguir regras psicológicas que emprestem a suas ações algum tipo de racionalidade onde possam se espelhar os espectadores. Inclusive, possivelmente o mesmo pode ser dito até mesmo da lógica… CONTINUA

Figuras de um desmantelo blue

Um dos conceitos mais envolventes sobre espaço que conheço foi cunhado por Milton Santos. Com uma simplicidade cortante, Santos afirma: “O espaço geográfico é uma acumulação desigual de tempos onde convivem simultaneamente diferentes temporalidades”. Ao ler essa sentença, a primeira impressão que surge é a de um desvio do espaço pelo tempo. Mas há, na formulação, uma interessante provocação: o convívio – e essa palavra não é trivial – de distintas camadas temporais, como se o espaço fosse crivado por inscrições, vestígios, palimpsestos, acúmulos e… CONTINUA

Quando corpos desafiam suas figuras

Uma das formas de testar e sentir o corpo é confrontar os seus limites. Embora opostos, o sublime e o grotesco são dois gestos estéticos que costumam desafiar as fronteiras dos nossos corpos. Com o sublime, o corpo é afrontado numa extremidade do sensível. Diante de um espanto, aposta-se numa transcendência, pela qual os olhos, os ouvidos e mesmo a pele passam a sentir algo que não se supunha possível. Com o grotesco é o próprio corpo que entra em colapso, pende para o verso… CONTINUA

Figuras da persistência

Há um conhecido provérbio grego a dizer que “a faca não corta o fogo”. Muito aparta-se com uma lâmina. Muito ceifa-se com sua violência, sua vontade de dividir. Diante do fogo, a lâmina e seus ásperos fios de metal tornam-se impotentes – nada retiram. Queimam-se, apenas. O provérbio é uma metáfora sugestiva para captarmos a potência de dois documentários brasileiros que estrearam nesta Berlinale de 2019. Embora tenham formas de abordagens e mesmo grupos temáticos bem diferentes, ambos os filmes oferecem retratos contundentes de algumas… CONTINUA

Berlinale 2019 e suas despedidas

A sexagésima nona edição do Festival de Berlim, ou Berlinale, como é geralmente conhecido, certamente será marcada por um instante de inflexão na sua história. Após dezoito anos no centro dos holofotes da curadoria, Dieter Kosslick anunciou a sua despedida. Ficará à sombra e deixará de lado o chapéu, o cachecol vermelho e o bigode que legaram charme à sua marca visual. Como ocorre na maioria dos festivais de cinema de renome internacional – vide Cannes e Veneza – as direções artísticas são longevas e… CONTINUA

Monstruosidade contraditória

O que são “as boas maneiras” referidas no título do filme de Juliana Rojas e Marco Dutra? A expressão é carregada de sentido irônico, ao qualificar determinado comportamento (“maneiras”) como bom (“as boas”), pressupondo que exista, em contraponto, um ruim. Sob qual ponto de vista estão “as boas maneiras”? Da dupla de realizadores? Dos personagens? Do espectador? Eis o primeiro enigma de um filme que, a partir de uma fábula de horror, desenvolve a complexidade de relações sociais num Brasil urbano de ares contemporâneos, onde… CONTINUA

Imagens para o amanhã

I. Do cotidiano: Grass A carreira de Hong Sang-soo reflete, piamente, um interesse pelos longos diálogos de plano único, uma intuição de que nos fugidios intercâmbios verbais entre duas ou mais pessoas, que se dispõem genuinamente à troca, pode-se mesmo encontrar o inestimável. O traço se repete em Grass, mas deixa de ser um dispositivo narrativo para se consumar como o retrato do mundo humano em si mesmo, como um sumário essencial das relações. Através de bate-papos, marcados por imponentes músicas clássicas, em cafés e restaurantes,… CONTINUA