vermelhosol-cabecalho

Aqueles que não querem se afetar

Durante uma hora, vinte e oito minutos e dezessete segundos, entre os dias vinte e quatro e vinte cinco de maio de 1975, a lua sangrenta se interpôs por completo entre o sol e a terra, lambuzando a Argentina de vermelho. Exatamente dez meses a partir do eclipse lunar total a Argentina sofreria um golpe, que retiraria Isabelita Perón do governo e uma junta militar, liderada por Jorge Rafael Videla, ascenderia ao poder e iniciaria uma ditadura no país. É no contexto desses dois eventos que se desenrola Vermelho Sol, quarto longa-metragem do jovem diretor argentino Benjamín Naishtat.

Logo no primeiro plano do filme, temos duas informações determinantes, escritas em pequenas letras vermelhas: o ano é 1975 e se passa em uma província argentina. A indeterminação local propõe a universalização da situação, sugerindo que aquilo não apenas poderia como, de fato, estava acontecendo por todo país, enquanto a data determinada nos coloca em um momento histórico inescapável. Claudio (Darío Grandinetti) e Susana (Andrea Frigerio) são casados, têm uma filha (Laura Grandinetti) e habitam esse microcosmo ao qual acabamos de ser apresentados. Ele é um advogado de classe média alta e vive durante um conturbado momento político: o governo peronista acabou de substituir um governo ditatorial (1966-1973) e logo será interceptado por outro golpe, em 1976. Apesar da grave instabilidade governamental, Claudio, sua família e amigos vivem tranquilamente no interior do país.

No início do filme, o protagonista está sentado na mesa de um restaurante quando um estranho o questiona, grosseiramente, de estar ocupando um lugar e não consumindo. Então, começa uma acalorada discussão na qual o advogado acaba por humilhar o rapaz, que destrói o espaço e vai embora. A mulher dele, então. chega no restaurante, eles comem, conversam e se divertem como se nada tivesse acontecido. Ao saírem do restaurante e entrarem no carro, porém, o rapaz joga pedras contra o vidro e reinicia o tumulto. Todo o drama central do filme se desenrola a partir desse acontecimento, que cresce até o ponto em que Diego, o homem com quem brigou no restaurante atira contra si mesmo e Claudio, ao fingir para sua esposa que iria tentar levá-lo ao médico, resolve desovar seu corpo no deserto argentino.

vermelhosol-01

Os letreiros com o nome do filme finalmente aparecem após vinte e três minutos de prólogo e finalmente somos transportados para esse universo – provinciano e, acima de tudo, inarredável – três meses depois do ocorrido. As relações de subordinação, de cooptação, persuasão e corrupção são, além de silenciosas, absolutamente aceitas e compreendidas. Um amigo do advogado chega ao seu escritório e pede que ele falsifique documentos de venda de uma casa abandonada de seu interesse pessoal. Apesar do diálogo sobre a falsificação ser explícito, por outro lado a situação do desaparecimento da família que habitava a casa é fugidio. Repleto de insinuações, um pacto silencioso se estabelece entre nós, o advogado e o amigo.

A casa abandonada, que vem a ser a mesma do início do filme, está completamente destruída: cacos de vidro, porta-retratos quebrados, móveis roubados. Claudio passa a mão pelos livros e podemos ver nitidamente, na lombada de um deles: URSS. Nas paredes, há manchas de sangue em formato de mãos. Outra tramitação importante que perpassa o filme é da reconciliação do governo local com os cowboys americanos. No meio de uma reunião amigável entre as partes, o governador presenteia-os com um kit de mate e, de volta, recebe um laço de vaqueiro. Essa parte é a síntese das circunstâncias, no qual os representantes americanos fornecem o aparato (simbólico) necessário para que o próprio governo argentino e a elite local cacem a população. Ao sair da reunião, um jornalista pergunta para o governador se era verdade os rumores de que em breve alguns partidos políticos se tornariam ilegais. No decorrer de belíssimos dias de outono, ocorrem conchavos que afetariam todo o país, mas que permanecem ensombrados pela afã de manter intocado o cotidiano. O retrato é de uma classe média desesperada de perder seu status, levando isso às últimas consequências.

Com ecos intensos dos filmes noir, a fotografia é feita pelo brasileiro Pedro Sotero (Aquarius, Bacurau). Em um exercício metalinguístico, o diretor evoca a própria cinematografia feita à época, tensionando as relações entre a ambientação e a representação de um período específico. Com planos abertíssimos e muito bem compostos, Vermelho Sol invoca, talvez inconscientemente, os quadros de Edward Hopper, pintor que retrata a ausência, a estagnação e a melancolia da classe média americana. É nesse universo aparentemente imperturbável da classe média alta que se passa o filme, no qual, apesar das instabilidades políticas e suas reverberações na vida das pessoas, a tendência daqueles que não são diretamente afetados é justamente velar os acontecimentos políticos em função da estabilidade de sua vida pessoal.

vermelhosol-02

Durante o eclipse à beira-mar, Claudio e Susana assistem ao evento junto à filha Paula e a alguns poucos turistas. Sob a lua tingida de vermelho, os espectadores usam óculos protetores: olhar diretamente para a luz pode causar severos danos à visão. Claudio é o único que, além de não estar usando óculos, se protege contra a intensa luminosidade, num gesto de recusa ao inevitável banho de sangue eclipsal. A lua sangrenta é um prenúncio do que viria a se desenrolar na Argentina. Assim como os óculos os protegem dos efeitos nocivos da sobreposição dos astros, o golpe de Estado em vias de se efetivar era amenizado pelo autoengano. As feições aprazíveis parecem não perceber os efeitos vermelho-sangue sobre seus corpos: apenas Claudio efetivamente se esconde tanto do fascínio quanto das nocividades do eclipse.

Naishtat e Sotero, assim como Hopper, pintam conflitos envoltos em imobilização. Por sob os véus da perfeita vida burguesa, das belas e amplas casas e dos feixes de luzes outonais existe um estranhamento intrínseco. Apesar de nada ser dito explicitamente, é impossível não perceber um certo descompasso entre o espaço e quem nele habita. As figuras de Hopper estão sempre refletindo profundamente, aéreas e ausentes: incomunicáveis. Cria-se uma distância entre o espectador e elas, na medida em que quanto mais buscamos compreendê-las mais elas nos escapam. De modo similar estamos um tanto quanto aquém dos anseios das personagens de Vermelho Sol. Apesar da brutalidade dos acontecimentos, ocupamos sempre o lusco-fusco das emoções, no estágio permanente de alheamento, assim como as personagens do filme.

A Argentina dos anos 1970 é talvez muito similar aos Estados Unidos do pós-guerra. Apesar de ter começado a produzir em 1902, Hopper fez suas obras mais famosas entre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. Diferentemente de um tipo de imagem obscenamente violenta que povoou o imaginário das guerras do século XX e XXI, Hopper se encontra no pólo oposto: é a partir das lacunas e silêncios que se depreende a angústia dos corpos retratados. O filme de Naishtat talvez caiba dentro desse espectro. Guerras e golpes foram exaustivamente representados pelos corpos violentados, pelo poderio bélico e pela resistência, mas um ponto de vista contornado é o da população, do cotidiano, do homem comum. Vermelho Sol é justamente sobre a vida privada e sobre aqueles que conhecem, ou, minimamente, intuem o horror e preferiram não se afetar por ele.
A relação com a linguagem dos filmes noir é, nesse sentido, um pouco nebulosa. Se por um lado acrescenta um certo tom anti-ilusionista ao utilizar close-ups e zooms estridentes, por outro parece mais uma homenagem do que uma expressão formal condizente com o pressuposto narrativo de representar estados, emoções e sensações das personagens. De todo modo, a utilização desses planos recupera o clima de suspensão dos filmes noir, ao mesmo tempo em que serve como um deleite aos cinéfilos que reconhecerem as referências ali presentes. Na mesma chave da relação ambígua com a linguagem dos filmes noir, o filme não é exatamente um suspense. Ao se deparar com um longo plano fixo de uma casa no início do filme seguido da fervorosa discussão – decupadíssima – entre Claudio e outro homem, tem-se a sensação de se estar vendo dois filmes. As intercalações entre a narrativa progressiva e planos que destacam do movimento contínuo chegam quase a ser um cacoete. Na tentativa de parecer disruptivo, falta ligação entre esses elementos. Ao invés de causarem um conflito frutífero, os momentos de experimentação – apesar de bonitos e poéticos – são apenas ruído: nem alto o suficiente para impactar, nem baixo o suficiente para amalgamar.

vermelhosol-03

Em um movimento similar ao de Deslembro, filme de Flávia Castro lançado nos cinemas também em 2019, Vermelho Sol tenciona retratar a experiência do cotidiano em momentos de crise política. Se em Deslembro adentra-se no universo dos militantes de esquerda e de uma família da resistência, o filme de Benjamín Naishtat se atenta àqueles que não querem se deixar afetar, àqueles que levam o pretenso desconhecimento às últimas consequências. Em um contexto contemporâneo que intenta revisitar as histórias das ditaduras civis-militares da América Latina, ambos os filmes propõem-se destacar os reflexos desses momentos na existência ordinária. Opostos à solidez de um documentário sobre o assunto (Santiago, Itália e Democracia em Vertigem, ambos de 2019), os dois filmes de ficção voltam-se para o microcosmo do núcleo familiar e das relações ali presentes.

O tema da caça e do caçador também perpassa todo o filme: a vaca que é enlaçada pelo homem, Claudio que está sob a mira do detetive, a filha que faz o papel de uma branca raptada por um selvagem em uma apresentação de balé. Em todos esses casos o caçador vence. A vaca se torna churrasco, o detetive encurrala o pai e a menina é pega na dança. Assim como a vaca, Claudio e sua filha, a população argentina também está sendo caçada. Apesar de vítima, a carne bovina alimenta; apesar de pego, Claudio não sofre as consequências de seus atos; apesar de raptada, a menina está apenas em uma apresentação. A natureza dessa violência, no filme, é sempre mascarada e disfarçada, assim como a própria violência cometida contra toda uma população. Praticamente todas as relações do filme, apesar de não estarem nitidamente inscritas na dinâmica caça-caçador, funcionam em polos dialéticos no qual um está sempre subordinando o outro. Sejam os caubóis estadunidenses em diálogo com o governador ou Claudio cooptando seu cliente pobre para o esquema de falsificação, as afinidades são sempre dissonantes.

O longa-metragem de Naishtat anseia mobilizar o olhar acerca da impossibilidade de se permanecer impassível aos acontecimentos político-sociais, que como infiltrações nas paredes de um quarto branco, se incrusta, à revelia, no universo privado. E é retratando um momento político já supostamente superado, a ditadura na Argentina, que o filme discute questões ainda muito latentes. Apesar do momento histórico ser muito bem definido espacial e geograficamente, Vermelho Sol é uma alegoria da burguesia e de como ela sistematicamente age quando há rupturas no establishment: de maneira omissa, tolerante e compactuada.


Júlia Noá, atualmente cursando Audiovisual na Universidade de São Paulo, estuda Glauber Rocha e seus diálogos com as artes plásticas. Além das produções universitárias, participou da curadoria do Festival Internacional de Curtas de São Paulo (2018) e atua como montadora e assistente de fotografia.


Leia também: