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História do olho

A mais recente embarcação de James Gray lembra: não somos ingênuos a pelo menos três dos rastros mais distintivos, e, portanto, também, mais reiterativos, escorregadios, da chamada ficção científica como tratada pelo cinema – e não simplesmente porque a certos gêneros a assinatura de seus traços é uma docilidade aos olhos: 1) fala-se de uma noção de cidade, de um espaço reflexivo diante das relações que ali se travam e/ou não mais se travam, 2) é perceptível um arranjo de técnicas constituintes dos limites de mundo, técnicas de sobrevivência, de comunicação, de prazer (lembremos do intricado exemplo de Blade Runner, espécie de videocassete enigmático embalsamado numa cápsula do tempo mítica, encerrada como um canto de valor ad aeternum), 3) e é indubitável que, ao menos “a título” do meio que aqui acolhemos, e a despeito do valor de seu regime ou do tempo em que subsista, é menos numa abstração, no possível remonte de uma teoria política intra-diegética, do que na qualidade dada ao movimento da matéria entremeada nas relações de poder, que se pode visualizar, apalpar, muito além de qualquer percurso psicológico dado a um protagonista, a disponibilidade das formas de governo desse mundo distinto/indistinto. Pois que é estranhamente pelo desafio perpétuo a uma noção de povo, espécie de somatório fictício dessa ficção mesma em tríptico, que Ad Astra – Rumo às Estrelas estipula não um anti-herói ou heróis decadentes, nem tampouco heróis problemáticos pelos seus apelos de indústria, mas: até que ponto de valor se mede a vida de um homem para que ele precise chegar ao estágio “métrico”, corporativista, de juízo que se chama Herói?

Que espécie de fabricação de um povo estadunidense necessitado (ainda) de heróis é esta que faz de um filme uma busca, plano por plano, da restauração de comunicações na Terra, quando na verdade não há um murmúrio sequer, dois passos ou três frases trocadas fora de vidros, às ruas, entre um povo? Pior: não só não há uma réstia de “externalidade” às cenas, como seu principal viajante, carregando menos o peso do que os liames arrastados da bravura patriótica que o precedeu, dissolve todos os diálogos em déjà vus graduais: tudo o que é coletivamente construído ou discutido desaparece como as últimas lufadas de sopro numa audição um tanto sentimentalizada, que guarda os modos da palavra junto a ela. Roy McBride (Brad Pitt) interrompe, antecipa, comenta, sublinha tudo por meio de uma voz mantida plácida, e não há pane sistêmica ou trágica chacina entre outros tripulantes que não se desvie para essa interioridade cada vez mais paradoxal. Aquela raiva, aquele desespero: isto tudo ele já viu.

Onde devia subjazer uma singularidade em âmago, cumplicidades contornando um grande homem que se ouve tanto quanto se vê, porque o dispositivo aqui é mais confessional, atento à gravidade da voz e aos tempos incrustados nos tons do que passível de psicologias – justo onde devia haver desejo jaz um escafandro chapado, balançando entre nulidades. Mas, também, justamente aí onde menos se diz é onde mais aquilo que não se é está contido: falar intermitentemente dos outros como plurais dos quais não se participa é duplicar a própria deriva. Seria uma das mais inconcebíveis atuações num dito contemporâneo desafiar o excesso que a língua até então produziu, somente para dizer “o que quer seja” – o discurso do enfado – da maneira mais explícita e vocal possível? Essa assinatura humoral de Gray, diletante e dilatada, de alguém que simultaneamente restitui e fabrica um ser a um/num espaço, encontrando assovios e retumbares entre vozes, experiências e aberturas de espaço comuns, não teria esse traço o teor de uma comunicação vista em termos amplos? Algo de religioso, de abundantemente corporal e que por alguma razão retoma ainda um terceiro. Talvez se entreveja mesmo e de uma vez por todas o berçário semiautomático com que certa cinefilia afeita à imagem como milagre tem recebido obra por obra do realizador: um quadro é uma janela, decerto, assim como pode ser um mundo e quiçá um abismo, mas o rosto enquadrado de Brad Pitt enquanto realiza a rotina psicológica de confissão ao sistema que precisa senti-lo como um corpo fechado de pulsação e razão de pensamento, as arestas que replicam um rosto no grau preciso de envelhecimento epitelial e inquietação na pupila para que ele repentinamente atinja a exceção pictórica de um Jean-Pierre Léaud (a lenda que é habitar a própria pele), este quadro é a imposição de tudo o que é mais intolerável e mais erótico num outro, palimpsesto de uma transparência possível entre as coisas: é uma responsabilidade muito além do rosto, essa de redimir as simulações espontâneas da natureza.

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Fora e Dentro se confundem. Mais espacial do que os sinônimos metafóricos ou sinestésicos da “apreciação visual” possam sugerir, o pôster que responde na afirmativa e com uma pichação enfática à pergunta que repousa sobre a existência ou não de vida inteligente na Terra, grafada como um bibelô no túmulo sideral do pai fugitivo e obcecado, é como o vaso filmado por Yasujiro Ozu e destacado como signo puro do tempo, por Gilles Deleuze, na sua teoria cinematográfica do cinema no pós-guerra. Aqui, no entanto, não cabe mais a reação motriz interrompida por um nó expressivo nem a temporalidade difusa das coisas, mas antes a evidência que rasura o mundo vivido como expectativa de um Fora, feito binominal: se há uma inteligência “lá”, não se supõe que sua apreensão também necessite de algo fora, por consequência, do humano, o humano feito e refeito como limite de todas as coisas? A questão se transfigura: como é possível comunicar com aquilo que, no entanto, não está presente? Ora, e por que modos Gray trata dessa impresença, desse enfado de um corpo treinado a destacar-se de si mesmo para responder às avaliações psicológicas quase fabris, senão pelo recurso que mais parecia propenso a torná-lo estatístico, tautológico, a saber, a narração em primeira pessoa? É, então, diário? Tem liberdades típicas a um ensaio, uma vez que aquele que ruma propriamente às estrelas se deixa deambular pelas intermitências do olho? Necessita que se acompanhem as suas funções científicas, “genéricas”, já que a relação com um presente em que estamos “três planetas antes” dali sublinha com a sutileza de uma lâmina, veloz, um grau de avanço técnico capaz de tornar denso o filme, o seu lugar nessa densa experiência de povoamento que é um filme?

Essa eminente jornada de infiltrações interplanetárias desemboca numa espécie de longínquo onde quase é possível não mais (se) desejar, e não são precisos mais que dois planos para realizar a latência de uma distopia em que a colonização extraterrestre reproduziu a lógica dos shoppings e colonialismos, ambos feitos para simular o ponto de visão vítreo, a-respiratório, de um escafandro que funciona duplamente para higienizar e empurrar a presença do que possa haver de corpóreo nesse povo em si. América que partilha com Bacurau do estigma de dois gumes de “um futuro próximo” de sujeitos e reações disparatadas, extremos sem conectivos que não eles mesmos. Mecânica, decerto, mas que não se furta ao excesso que é deixar rastros: o além-mundo em que os sussurros de McBride relatam a própria ausência, na verdade, parece menos o recurso para uma interioridade, no fim, do que essa eminente ficção cujo balé dos signos que localizariam um topos, fabricariam um povo, se silenciam em outras variantes do plano. Marte, nosso corrente fetiche, estranhamente familiar, pinta-se num encontro trágico, sanguíneo, precedido e embalado por um misto de laboratório e gueto abissal, planeta vermelho de pontos de vendas de camisetas e distritos imperialistas, tão inóspito, sólido, invulnerável e hostil como o penúltimo planeta do sistema – e, no entanto, em nome de quem se resolve falar – as suas emigrantes, seus amantes, seus desbravadores, seus laços de sangue –, sob o risco de que se se colocam aptos a reclamar por uma curva diante desse destino que lhes impõem através dos cerceamentos e demandas? Porque se há um medo, se ele é sistêmico, é o de que o astronauta seja tomado espontaneamente por algo chamado “decisão”; submetem-no, pois, à falta de nome. McBride se torna alguém “fora da pulsação e do biorritmo normais”.

A curvatura dessa expiação individual é um golpe de presente e futuro que a narrativa de Gray repuxa sorrateira como um novelo guiado por uma razão astuciosamente mitológica: fazer do que está à sua frente ir à frente de si mesmo: reunir os atos diante do que existe e enviá-los para os que virão depois. Mas há como que um contra-mito. McBride desfaz a loucura do pai, a quem está atado por nada menos que a obrigatoriedade apreendida de uma retificação, fazendo o inverso de um ad astra: o sussurro de sua confissão final é aniquilar a solidão retornando para casa. Matará, negligenciará, viverá em falsidade, esconderá; como se por detrás de Odisseu nunca deixasse de pairar, indubitável como uma melodia, o reconhecimento daquilo a que faltaremos e que não cessa de acusar a tragédia acidental da coexistência com outrem: debaixo dos anéis de Netuno, em meio ao vácuo disforme do universo, a digladiação derradeira com o passado atinge, em certo ponto, um estalo seguido de um silenciamento, como se o Nada refletisse a si mesmo, e ainda mais assombroso que os movimentos da comunhão com um rosto, aproximação inimitável, comuniquem com uma transparência, uma continuidade, um possível alento “de milagre” a ser permitido. É a corporificação com que um silêncio pode transtornar a experiência do que é individual.

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As teorias cinematográficas das viradas dos séculos passados se detiveram sobre o espectador, não se pode negá-lo. Mas todo o vício com o dispositivo e suas mecânicas, toda a construção de um pavor e de uma superficialidade sobre aquilo que se conveio a chamar de “psicológico” no cinema, todas as potentes reconfigurações do que se pensava dos funcionamentos da memória para além e aquém do cérebro, ou ainda as reiteradas e virulentas atitudes da vanguarda e das militâncias perto dos entraves de encenação e montagem com o olho futuro do espectador, o que se pode dizer desse superficial e leviano resumo de nossa história “das recepções” é que, propriamente falando, talvez ainda não nos colocamos aptos a ouvir – não inteiramente ver, tão-somente ver – o quão corpórea pode ser a experiência dessa obra que a elementaridade do que existe grafa, em retorno, no corpo que é um espaço partilhado. As bordas, as linhas, as distâncias, a materialidade particular dos objetos: o que é da alçada daquilo que carrega e guarda, em memória, a invisibilidade do peso, aqui, recebe de volta na corporeidade dos sons. Suntuosa e amalucada possibilidade dos filmes que ultrapassam suas imagens sob o risco da esquizofrenia titulatória dos lugares de exibição ou desmontes dos dispositivos, como se os filmes precisassem de justificativas para dialogarem com o corpo da massa que sempre se lhe reconheceu. Se há outra vida, afinal, ela não seria esta das alteridades extremas que nos passam despercebidas, mas para as quais encontramos as mais desdobráveis formas de nomear? Há gravidades na voz. Há densidades de relação inteiras num tom.

Cabe-nos perguntar, afinal, como parece caber a Gray sempre questionar de novo: onde está o cinema se não puder ser devolvido à matéria de seu corpo de mundo? É mais que um terceiro olho, mais, aliás, que qualquer multiplicidade ou atribuição de qualquer olho. Por detrás do silêncio que se arranca do visível daquilo que já era praticamente apenas pulsação – queremos que se resolva logo, queremos ficar presos, também, ali, nas massas da tempestade azul –, se estar presente com um filme é fazê-lo por um ritmo do qual quase não temos recordação, quem poderia contrariar uma memória que não seja nada mais do que a verdade de uma partilha física, íntima? Aparelhagem visual, Ad Astra silencia com este palpite de que o cinema possa ser o tabuleiro de rememoração do que é sobre-humano, circunvizinho, in-humano.

Pois pensemos, então; que aqui se arrisque também um palpite, uma sugestão à memória: é do osso “enquanto primeiro objeto de técnica”, ou antes da sinfonia de sua ascensão, em 2001 – Odisseia no Espaço, que Stanley Kubrick extrai o devaneio de um possível anseio vertical por detrás dos saltos do homem?; é a serialização das imagens psicoterapêuticas ou o globo ocular azulado de McDowell arreganhado e exposto por uma parafernália com pinças, em Laranja Mecânica, que floreia e esgarça a violência orgânica do edema social de Anthony Burgess?; é o tecido amarelado e a quase rarefação do ar na homogeneidade desértica de Blade Runner 2049, ou o fato de que a inexistência de vida possa vir a ser mesmo emplacada, chapada, invisível um palmo de distância adiante? – o que se vê nessas ficções com a capacidade de inflamar não é precisamente aquilo que o olho fixado na sua referência de subjetividade não consegue ver, aquilo que lhe escapa da condição visual mesma?

Ensaiar um rosto que não se vê. Atuar na medida em que se suponha a própria visibilidade num jogo interminável de “insistência” com aquilo que não se é – entre um ator, essa espécie de xamã, e alguém que pensa a si depondo num tom amansado como quem flutua e convoca, por consequência do som, aqueles por quem vive, entre um ator e um homem-de-todos, afinal, há semelhanças. Será preciso retornar demasiadamente ao rosto de Brad Pitt, não para historicizá-lo junto aos outros rostos de que se fala que a imagem em movimento por vezes precisa se servir, mas porque, quando um movimento inaudito religa a memória com o paradoxo das coisas despidas de seus nomes, quando montagem e razão de montagem (para que as coisas sejam vistas e vistas de novo) refabricam uma unidade de presença desconhecida até então, talvez, e isto se diz “felizmente”, não tenhamos de fato superado as mitologias de totalidade, de unidade, que o olhar para o passado tão costumeiramente quer fazer imóvel, museológico, datado. Curioso que Gray tenha tomado para um palimpsesto o gesto que faz de nossa fatia ocidental uma erótica da própria auto formulação para o outro – a confissão. Confissão nua no rosto, no timbre, na velocidade. Que haja idealmente alguém para mais que ver tudo à sua frente é a tarefa final e a única possível para McBride. Devotar-se somente para aquilo que , que há neste momento. Ainda mais curioso que essa utopia, esse acontecimento seja um verdadeiro milagre, pois se por algum momento parecer que essa proposição de um Encontro seja o retorno metamórfico da questão dos homens totais, entre dois rostos separados, quiméricos, teremos sempre algo a chamar de filme, ou ainda: todo filme capaz de suscitar milagres é capaz de chamar-nos ao impossível além de nós.


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