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A última Canaã

“A pintura não é nada senão um pano de algodão tecido pelo inferno, que dura pouco e tem pouco preço; ao retirar-se a fina película que a recobre, ninguém mais se dá conta do que acontece”.

Carta de Pontormo a Benedetto Varchi, 1564

“Ce monde, je ne sais pourquoi dejà exténué, ne vient pas vers nous, ne nous entrâine pas em lui: il nous change momentanément- il exige plutôt pour être vu que nous percevions notre raccourcissement em face de lui, ou plus exactement que nous percevions ceci: nous ne sommes pas em face de lui, nous ne sommes que ce monde: nous en sommes le réel”.

Jean Louis Schefer, L’homme ordinaire du cinéma

“Porquanto prevaricastes contra mim no meio dos filhos de Israel, nas águas da contenção, em Cades, no deserto de Zim, pois me não santificastes no meio dos filhos de Israel. (…) Pelo que verás a terra diante de ti, porém não entrarás nela, na terra que darei aos filhos de Israel.”

Deuteronômio, 32:51

1. Um introito de Método

Advirto aos possíveis espectadores, sentimentais e culposos dos ‘filmes que nos assistiram crescer’ (Schefer\Daney) que esse texto talvez não seja o mais indicado aos seus devaneios masturbatórios, pois se funda em certo partis pris polemista, pelo menos na perspectiva desta concepção ‘nostálgico-elegíaca’ característica daqueles edipianos sem chance de tornar-se Laius que foram, pelas contingências de nossa época, obrigados a abandonar a grandeur nature das telas de cinema em troca da petitesse culture das de computador sem terem as condições de substituir a fascinação totalitária das primeiras pela diatribe crítica exigida pelas últimas; a genealogia, arte tardia para críticos tardios (sim, tautologias muitas vezes são necessárias para investigar a origem ou essência de um processo de cultura: um fórceps de conhecimento no cerne do Mesmo), necessita fazer jus à condição terminal – precisa, mas um tanto sumariamente resumida por Serge Daney na noção de “morte do cinema” – de certos modus operandi, técnicas e leitmotive do período canônico do classicismo no cinema, por exemplo, e se invoco para começar este Museu de tudo (Jean-Claude Biette) que inaugurou a nossa infância televisiva – Museu hoje mais do que nunca empoeirado na memória daqueles que identificam a temporalidade de um filme com a velocidade do download, e segundo uma implicação sintomatológica de grave sentido acreditam ter visto o filme quando “apenas se apropriaram dele no HD do computador” – é por uma razão elementar, mas jamais simplista: o classicismo foi uma espécie de divindade tutelar sob a qual se abrigaram as Origens do cinema e que, segundo o movimento típico de cosmologias modernas como as descritas por Hegel e Spengler, fatalmente há de retornar-retomar-se em um diálogo conosco, como nos testemunham generosamente filmes modernistas como Passion (Jean-Luc Godard, 1982), Hitler, um Filme da Alemanha (Hans-Jürgen Syberberg, 1977) e O Teatro das Matérias (Jean-Claude Biette, 1977); paternidade da qual talvez ainda não tivemos o know how, os meios para efetivar convenientemente o luto, permanece a assombrar nosso “destino de contemporâneos”. Mas isto não mais segundo o metro desta diferença modernista que, nos filmes supracitados, dialeticamente apoderou-se do “teatro” do plano clássico (as marionetes manejadas por Harry Bauer e a cena concêntrica do picadeiro em Syberberg, a Mary Stuart mambembe e minimalista de Biette, os números musicais em falsete e pianinho desolado no tom errado dos atores, no Femmes Femmes e La Machine de Paul Vecchiali) para talvez pervertê-lo, infiltrá-lo de irrisão e patético, infleti-lo segundo os modos tão crepusculares da paródia, da anamorfose, da paráfrase, da “nota de rodapé” a que certo texto em off , avatar de fora de campo, serviu paradigmaticamente… não; definitivamente, o teatro do plan tableau e proscênio com que se inaugurou o cinema não é o mesmo teatro que se reapresentou diante de nossos olhos em filmes do final dos anos 1970 e início dos 1980, pois agora é um teatro que se sabe teatro e reivindica esta cumplicidade-dolosa do espectador.

Desde a morte de Serge Daney, no entanto, esta tarefa, sumamente necessária existencialmente como na crítica da cultura de “arrematar o luto” por esta experiência que já não é, mas que nos foi geneticamente constitutiva (sim, os “filmes que nos assistiram crescer”), de resgatar a dívida com o morto – a origem como o destino de uma História que inapelavelmente nos pertence, e intransitivamente nos solicita, uma vez que “somos nós” – se entrincheira na fastidiosa tâche infini (Sartre) dos estudos acadêmicos, em geral incapazes de abordar frontalmente a experiência dos filmes senão pelo desvio, tantas e tão anódinas vezes, de decalque de modelos semióticos ou de narrativa literária que nada revelam de nossa paixão, pois como em tantos modelos de efígies mortuárias da Grécia antiga de que Vernant nos deu uma catalogação vertiginosa, possuem como cânon da obra de cinema o paradigma cadavérico do “sôma”, já que para o grego o corpo excelso a ser cultuado era o cadáver do nobre ou guerreiro, vaticinado à Eternidade das unções públicas; sim, a universidade hoje, que deveria ser o local privilegiado para a condensação “transcendental” (Kant diria sempre melhor: da síntese da apercepção) de tantos filmes experimentos-experiências acumulados ao longo de um faustoso século de epifânicos dons na caverna escura tornou-se um depósito necrofílico-fetichista de filmes-sômas, de ersatz mortuários de experiências e experimentos “que éramos nós”.

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Este texto tem como propósito genealógico estudar, a partir do último filme de James Gray, uma possibilidade ativa – sim, pensemos com o Nietzsche da Gaia Ciência em um uso ativo para o niilismo: intempestivo, pois precedido e orientado pelo futuro -, para o classicismo do cinema, a que este artista soube dar um destino idiossincrático sem perverter seus “dons” de essência; mas atenção: não leiam jamais classicismo segundo o metro tópico, reativo, cronológico e acumulativo de uma época de acabamento técnico impecável, sutura absoluta (para que não incidissem em campo os meios da sua produção: a Economia, mas igualmente a pulsão e o trabalho), elisão do fora de campo, e sobretudo a tríade mítico-fascinatória da mise-en-scène, do glamour e do idealismo platinado da película, avatares mais do que desconstruídos pelos maoístas dos Cahiers du Cinéma dos 1970 como instrumentos de suspeição política, ideológica, etc (mas não só, é claro, pois não fazemos programas de partidos, e sim crítica de arte); o meu fito aqui é entender o classicismo segundo a temporalidade não mais cronológica ou sincrônica do resenhista domingueiro, mas genealógica e diacrônica, destinal, expresso na noção – paradigma escatológico paulino, que estabeleceu para o Ocidente os arcanos todos da genealogia, de Lutero e Schleimercher a Nietzsche e Gadamer – de Parousia, ou “ser presença”; por acaso não se lembram do que acontece com nossas mães no ocaso de suas vidas? Com frequência reencontram o Princípio, constrangendo-nos com histórias de berço e mesa que jamais Saint Simon teria registrado em suas memórias; pois a temporalidade da vida como na Obra finita não é, como os metafísicos essencialistas pensavam, uma reta verticalmente eterna (imaginem para onde) mas um círculo, possivelmente contundido nas bases, onde se extraviam e inelutavelmente se reencontram Fim e Princípio, five o’cloak tea crepuscular onde retrospecções e prospecções se reconciliam em obras seminais: Tom, Tom, The Piper’s Son (Ken Jacobs, 1969), mas também Change pas de Main (Paul Vecchiali, 1975), A Idade da Terra (Glauber Rocha, 1980), Stan Brakhage, Stephen Dwoskin, Belair, a Diagonal francesa… Vamos afinal ver como aqui e ao cabo tudo ainda se encontra lá?

2. A obra dos inocentes: Da Graça e da Revolução

Em um dos parágrafos com justiça mais comentados e de escandalosa posteridade hermenêutica na enlutada práxis política do século XX, Karl Marx escreve, em seu 18 Brumário de Luís Bonaparte, que “os homens fazem sua própria história.(…) mas eles não a fazem arbitrariamente, nas condições escolhidas por eles, porém em condições diretamente dadas e herdadas do passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa muito gravemente sobre o cérebro dos vivos. E, mesmo quando eles parecem ocupados a transformar a si mesmos e as coisas, a criar algo de totalmente novo, é precisamente nessas épocas de crise revolucionária que eles evocam medrosamente os espíritos do passado, que lhes tomam emprestado seus nomes, seus mots d’ordre, seus costumes, para aparecer sobre a nova Cena da História sob este travesti respeitável e essa linguagem emprestada.”.

O zeitgeist invocado por Marx para nos falar dessa repetição dos primórdios é, evidentemente, o das barricadas da Comuna de Paris. É “na prova”, não apenas dos semicírculos de fogo mas também dos chumaços de querosene e pedradas lançadas contra a Realpolitik de Luís Bonaparte, que se prova o sentido dessa repetição que horizontaliza nosso destino para projetá-lo na ascensional verticalidade do futuro revolucionário, o escathón do fim da luta de classes. Esse paradigma foi histórico e arquetípico (Marx era, como vocês sabem, um profeta laico que, como Julien Sorel, Rubempré, Moreau e outros heróis desencantados da modernidade pós-bonapartista, necessitou da máscara do ideólogo para permanecer fiel a seu credo). Histórico e arquetípico, ele também se destinou a ilustrar como também a trabalhar (mediação) os destinos de outros escathóns, messiânicos ou não: da arte, por exemplo. No cinema, arte onde por efeito de prestidigitação tecnológica os milênios que conduziram a pintura ao sfumato davinciano se concentraram (e – por que não? – burilaram mas também precisaram sob o esquadro art-nouveau de Nadar) em mísera centena de anos, esse imbróglio entre mito e historicidade foi ainda mais flagrantemente evidente e tantas vezes flertou com a obscenidade (King Kong (1933), Número Deux (1975), Saló ou os 120 Dias de Sodoma (1975)), talvez para com propósito pedagógico nos advertir que uma arte de presenças manifestas também se ausenta infiltrada, gioco de campos e foras de campo. Mas não se trata disso ainda; não, ainda não.

Então permitam-me lembra-lhes que existiram, na história do cinema, esses momentos praticamente soberbos de fervor altruísta e eudaimonismo à vista em que esperamos (sim, nós: ainda crédulos, porque filialmente inocentes) uma renovação exaltada, uma enlevação petulante, um paroxismo de forças temporãs que só aguardavam o momento do gênio para cristalizar-se: os barrocos, aqueles que, desde o século de Ouro – tão bem resumido por Borges, em seu libelo acusatório contra a essência decadentista desta arte –, foram conhecidos pela generosidade de seu potlasch endiabrado e foram os primeiros que solicitaram nosso fervor cinefílico, que, com suas obras, construímos as mais alvissareiras barricadas: Erich von Stroheim, Josef von Sternberg, Paul Fejos, Max Ophüls, Orson Welles, Monta Bell, Edgar G. Ulmer “quando pobre”… se eu tomo o barroquismo aqui como paradigma evidente (libidinosamente evidente) deste élan revolucionário que dos communards contaminou por osmose anímica de inspiração a artistas e espectadores, foi talvez porque, em ambas as experiências criativas (a política, como a estética), eu ousaria identificar um mesmo quantum extasiado de potência, de crença e de jouissance incendiárias, características talvez de Primórdios, de Primeira vez… sim, da jouissance – e não me peçam para traduzir para o chão português “gozo” ou “gozar”, porque jouissance implica isto e mais que isso: nossa inocência, hoje perdida, em acreditar que um filme é um pedaço da vida.

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Sim, uma época de potência extasiada, como de crença gozosa; se refletirmos com afinco, talvez a crença tenha sido o leito de Procusto da recepção clássica, pois todos os espectadores tiveram de, ao longo do filme, acomodar-se mal, mas com constância à ideia de que o ar de verão, como as buzinas onipresentes que os esperavam lá fora, haviam sido magicamente abduzidas pelo mundo da “tela-cache” (para o mundo e do mundo), e de que este mundo “janela-cache” substituíra vantajosamente o ser-aí; foi uma árdua, uma disciplinada tarefa tornar-se inocente e, como no primeiro Laudate entoado por Tomé, crer enfim no que nos aparece, e a pedagogia draconiana deste intento pode medir-se, por exemplo, no impossível esforço de acompanhar a logofilia anabólica de Rosalind Russel e Cary Grant no filme de Howard Hawks, turbulenta montanha-russa de sintagmas bulímicos ou no raccord no eixo da câmera que, de Hawks a Budd Boetticher e em tantos clássicos amealhados pelo caminho, constituiu-se num diapasão “che la voce soa soave” para substituir a contundência háptica do zoom, porém que não menos do que o zoom perturbava nossa relação com a distância do quadro representatio; definitivamente, um duro aprendizado retomar-se inocente!

...mas isto quando ainda nos queríamos inocentes; quando era, mais do que possível, desejável (Daney, Oudart, Narboni: classicismo = “desejo” de crença) sermos inocentes, e assim fazermos parte do filme. Esta crença desejante na inocência foi o apanágio talvez de uma época que, como na Grande Depressão – paradigma de fora-de-campo dos musicais dolce amaro do Raoul Walsh dos anos 1930 mas também, por uma dessas destinações mutatis mutandis da genealogia, Grund temporal de toda arte, de Femmes Femmes, de Vecchiali, ou de All That Jazz, de Bob Fosse, filmes terminais que ainda dançam -, precisou apartar-se do mundo real para não soçobrar no álcool e na heroína, e viu no cinema, vivenda eminente do Fantasma, o lugar para, por infantil satisfação substitutiva, torturar, enrabar e finalmente matar aqueles que nos queriam ver mortos.

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Mas o porquê desse introito “Caderno rasurado de adolescência perdida”? Para, por um método que me é caríssimo – sim, a analogia –, indagar do nosso zeitgeist, da nossa impossível inocência, da impenitente leniência (para com a representação, que nos clássicos foi sempre tudo, embora encoberta) e se, para arrematarmos com a citação marxista com que se iniciou esse texto, para saber se vivemos ainda em uma época que, à semelhança da escatológica da Revolução ou pregnante da fascinação clássica, ainda nos permite a crença integral num destino de vida ou numa obra de arte.

Z – A Cidade Perdida, último longa de James Gray, fornece-me um horizonte para em um fôlego vertiginoso abarcar e talvez inextricavelmente implicar estas questões, ontem alvissareiras, hoje talvez mortuárias, dos destinos da inocência do cinema em um mundo irremediavelmente votado à Queda, o lugar terminal da Significação; mas esperem… um momento! Não é do Paraíso perdido que estamos falando? Não é também do Eldorado de Z, perdido na Bolívia selvagem, que um filme tardiamente inocente (sim, oxímoros sempre falarão melhor que eu), trata? Sim, e sempre. Z – A Cidade Perdida é, não apenas uma fatalista aventura gozosa (e lembrem-se ainda da acepção dupla invocada aqui: divertimento e inocência) sobre um ciminiano, george stevensiano, ulmeriano, etc mito de Fundação autóctone por uma alteridade desbravadora, uma nota de pé de página heurística sobre a autofagia da jouissance pela obra inacabável (mas que consome de exaustão seu “operário”, que, como Moisés, está destinado a permanecer do lado de fora de sua Canaã equatorial), como também um desencantado conto que consiste em nos relatar uma impossível quête das Origens, que a esta altura só podem coincidir com a aniquilação do aventureiro e – como irão perceber – do próprio filme, finalmente desaparecendo em uma profundidade de campo especiosa que, como bem devem ter visto, é talvez uma acintosa figuração do abismo cujo ora pro nobis a profética mão enlevada de Percy Fawcett (Charlie Hunnam) anuncia; e se viram o abismo num campo tantas vezes vertiginoso para a humana percepção devem ter inferido igualmente uma mise en abîme do que esperava o nosso aventureiro ao cabo do filme e do campo que ele abandona para sempre, não?, sim, tragado pela Ideia.

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Antes de prosseguir, indago aos leitores se recordam uma conexão, aventada no início deste texto, entre historicidade e Mito: como Lutero “que repete São Paulo, como Napoleão que repete César para haurir inspiração e com o fórceps “pneumático” da Ideia arquetípica projetar o passado na Obra por-vir, um imemorial mito do cinema – arte que, por efeito da grandeur culture tecnológica, alcançou os cimos do imemorial sem abandonar a empreinte telúrica do fotográfico – retoma-se aqui, pois de Edwin S. Potter e D. W. Griffith ao Walsh de A Grande Jornada (1930), o indômito operístico dos pioneiros da carne extasiada e do Laudate dominus a Deus em King Vidor, caravanas comemorativas quakers em John Ford e envolvimentos cooperativos e existenciais entre profissionais que tudo arriscavam em nome da Lex activa da comunidade americana em Hawks, sendo é claro o western o modus operandi onde melhor se conjugou esta integração entre dinamicidade e método, arrojo e cálculo, Hubris e Nomos, indispensáveis à conquista dos rincões de Deus e dos cânions do Diabo – o que se encenava aí senão o desbravamento de um mundo, sob (extremos oblige) os modos lírico-epifânicos de Griffith ou icônico-entalhadura de camafeu vitoriano em Ford?

Esta apropriação de um mundo – em dupla acepção novamente: o mundo do imanentismo telúrico das coisas que me aparecem num plano de cinema e o mundo entendido como valores de uma Cultura, em geral por efração-infiltração no uso do fora- de- campo – foi Obra de um tempo talvez irremediavelmente caduco, e cuja grande Revelação testamentária se inscreveu não mais nos papiros de Alexandria e sim no nitrato fatigado pela milionésima projeção; sim, o tempo da Revolução e o tempo da pregnância clássica foram talvez rincões de um mesmo kairós, em que num caso como no outro a Ideia da Salvação pela kharis e da Salvação pela Beleza foram passíveis de se encarnar em entes frontalmente manifestos, cerimônias pungentes, gestos inolvidáveis, acompanhamentos de parada e cavalariças ex -machina; nós acreditamos nisto, e tudo pudemos ver. O último filme de James Gray, neoclássico fatigado, avariado, mortificado, atesta-nos porém em sua carne macilenta ( os dourados e os ocres esmaecidos pela pátina do Oblivium da foto inacreditável de Darius Khondji só conseguem tornar tudo ainda mais acremente bonito) este irremediável, e a pallida morte futura que Virgílio viu em tantas máscaras mortuárias de Etrúria agora se imprime no rosto sobre-elevado à luz dos archotes de Percy Fawcett ao final ( como é que Bazin se referia mesmo às pegadas dos entes na chapa fotográfica? empreinte de verité; e aqui de fantôme).

Ninguém vive impunemente, e as cicatrizes hão de fatalmente imprimir à comissura do sorriso adolescente o esgar onde o hermeneuta-sintomatologista-crítico pode já começar a ler a promessa do colapso cardíaco; em obra de arte ocorre o mesmo processo de entropia, substituído agora o colapso pelo excesso de cálculo, de estrutura, de sobre-determinação linguística, de jogo, cicatriz onde devemos ler o gládio do logos castrador sobre a manifestação do “ser aí”.

Em todos os autores modernistas que eu aprecio, a presença clássica, mediada pelo trabalho de “todo este tempo decorrido” desde Une Partie de Campagne, de Maupassant, e The Dawn Patrol (1930), de Hawks, deve necessariamente apresentar-se emaciada ou deficitária, e mesmo em barrocos tardios como os maneiristas a mais-valia exuberante do significante é certamente o índice de embolia iminente, de indigestão fulminante. Com o tempo e a diatribe do julgamento, vamos morrendo processualmente, e é a Palavra o nosso Caronte; aquelas mortes e ressurreições que para Marcel Proust caracterizam o devir humano talvez na obra de arte acabem por se manifestar nesta modulação contrapontística (que em artistas tardios aparece como uma espécie de ferida narcísica sublimada, ou suprassumida pela ataraxia daqueles que já não esperam muito de nada, e se contemplam a contemplar o próprio ocaso) entre o fascínio e a reflexão, o punctum sensual da foto e o castrador do raccord. Esta cisão inelutável entre a jouissance e a Linguagem é o lote tardio, como venho repetindo, e nos melhores ela permanece irreconciliável – veios rachados de cinzelados outrora resplandecentes, estilhaços e encardidos do casaco da última guerra -, index de autenticidade epocal, uma vez que à nossa sensibilidade exploitation repugna cada vez mais obras urdidas pela harmonia da música das esferas; mas em artistas como Gray, que tendia a exalçar o lado trágico-paroxístico de tudo nos primeiros filmes (o lado do Filho?) acabou em A Imigrante (2013) e neste Z por se regrar segundo um certo tônus elegíaco-outonal, talvez a forma mais arrematada de tragicidade, afinal, como nos mostram tantas máscaras de rigor vacui e mortis coletadas nos museus de Etrúria e Palermo.

Então, vamos nos debruçar sobre o idiossincrático neoclassicismo de Gray, enfim, escolha (destino?) a princípio suspeitoso que o poderia condenar a julgamentos precipitados por parte de modernistas levianos, deliberada, barbaramente esquecidos de que, sendo o modernismo uma arte tardia, deve necessariamente saldar uma dívida (de ‘rubricas’, de estruturas, de Cultura, de Questão) para com sua ascendência passada. É preciso compreender o processo refinado de apropriação de uma arte moribunda que volta a nos ser presentificada pelo empenho prestidigitador de certos artistas, modernos embora, mas cujo gênio consiste em permanecerem antes de tudo entalhadores e enquadradores de altos-relevos de mármore, talvez finalmente um tanto ensombrecido e carcomido nas bordas pela má-consciência do never more!, never more…

3. O legado dos culpados: De abjurações e regicídios

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“Tem alguma coisa escondida aí; alguma coisa perdida e que você deve achar; vá!”, recita-nos o vivaz off de Nina (Sienna Miller), a esposa do explorador, e o que nos é dado a ver nestes primeiros 20 minutos do filme são estes planos um tanto rascunhados de impressão que no melhor Terrence Malick um dia serviram para sismografar a terra ignota que deveríamos fecundar. Sim, é preciso aprofundar o horizontal do rascunho em uma verticalidade significativa – salvífica? civilizatória? enfim, sua síntese na voz off: narrativa -, e é este o papel da palavra da mulher, epistolar Minerva; é preciso, a todo momento (sob o risco de soçobrar às intempéries da malária, das flechas envenenadas ou piranhas, e perder a inspiração da ação significativa a empreender) erigir uma Obra de civilização na mata fechada e, segundo um tanto aquele esquema psicótico de associação da palavra à coisa, levar a Ideia da cabeça do explorador a iluminar as negras paragens da Amazônia; não se trata exatamente de antropocentrismo europeu, pois o que o explorador deseja é encontrar a Cidade de Z, e isto pressupõe pensar que há um Logos, uma Casa, uma Lei, e evidentemente um Pai, arcano de todas estas instâncias (arquétipos classicistas que Gray retrabalhou ao longo de toda a sua obra, modulando-a como um vertiginoso patchwork de paternidades suspeitosas e dolorosas filiações negras) que é característico da floresta e de seu povo.

Mas a ideia central talvez não seja esta, pois nos restringiríamos ao anedotismo da diegese fantasista-rapsódica: a Ideia que me parece subjacente e ilumina ainda o olhar desvairado do desbravador sob a luz dos archotes mortiços é que sob o despenhadeiro da floresta ou na garden-party Biedermeir em Londres permanece estruturalmente onipresente a questão da Origem, e traficada por ela aquela que melhor servirá a um empedernido romanesco como Gray, pois desdobra essa origem, excessivamente hierática em seu altar-mor de Carrara, em uma historicidade melodramática, mas também noir e agora “de safári iniciático”: falo, é claro, da questão da Filiação.

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Em um texto sobre o filme que Wim Wenders dedicou a Nicholas Ray, Serge Daney nos fala que o tema do cinema de Ray “(…) é menos a revolta que a impossibilidade da revolta, a contenda infinita entre dois homens, um jovem e um velho, um adotador e um adotivo. O velho ‘se faz’ de pai, se oferece aos golpes, encena sua morte, priva o ‘filho’ justamente de sua revolta. O filho histérico deve sustentar o desejo do pai e, para isto, lhe pressupor um desejo. (…) Quase todos os filmes de Nicholas Ray contam esta história, todos acabam mal – ou antes: não acabam ou com um happy end inventado e falso. Isto consiste na aliança forçada no sentido da filiação, ou esta filiação sentida como uma aliança: era isto o cinema de Nicholas Ray”.

Então, a título talvez precipitado de analogia e destinação genealógica (sim, um legado, como do Pai ao Filho), arrisquemo-nos a pensar o cinema de Gray também sob este esquema da filiação “vivida como aliança”, com a inflexão decisiva de que não mais são possíveis os happy endbâclé et faux” dos filmes de Nicholas Ray, visto que a fábrica de sonhos do recalque sexual, moral e ideológico (Hollywood, é claro), como me referi acima, foi completamente dizimada, e em geral só nos restaram seus ersatz “significantes flutuantes”; e o que nos cabe, então, para pensar convenientemente o cinema de Gray como “filiação vivida como aliança”, coisa de que estou convencido, assinalando-se no entanto que esta aliança é em geral traída, espoliada, abjurada, vendida e deceptiva, visto que o cinema moderno retirou o homem do proscênio do plano clássico e o jogou no mundo, e portanto o destinou à tragicidade do que é? Vocês afinal se lembram da última empreitada do nosso desbravador em Z – A Cidade Perdida? Do pacto, do contrato, do usufruto mas também do crédito (São Paulo tudo resumia numa palavrinha latina em que se aliaram o Direito romano e a teologia profética: pistis, ou fé) dado ao Filho, que os perde a ambos na diegese para eternizar no relato enlutado da mulher?

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Sim, do Filho…os filhos de Percy Fawcett estão bem menos presentes no filme do que deveriam, e este evento, que numa família ainda vitoriana e pietista não tem nada de contingente ou anedótico (antes pelo contrário) aqui comparece na minha visão com o peso sintomatológico de um ato falho, em que profundezas inexpiáveis se revelam apesar da superfície da tela “janela”, pois não é demais sempre recordar aquela ideia do autor da Psicopatologia da Vida Cotidiana, para quem os traumas mais decididamente presentes são aqueles que permanecem distantes da consciência, e acabam por infectar a carne de todo nosso ser: aqui, um filho solicita histericamente a presença do pai em uma cena de melodrama vitoriano a que certamente o diretor acrescentou scherzi da Senhorita Júlia de August Strindberg, para tornar tudo mais contundente; um filho afinal se reconcilia com seu pai no último terço do filme, mas apenas para converter em obra (óbulo da morte, como sabem) a vida que nunca foi deles; um filho embarca para a morte com seu pai, e lega à mãe a tarefa de narrá-los, pois uma vida que se consumiu na Ideia sem jamais propriamente consumar-se só pode ter como destino as memórias de uma dama solitária; o filho ausente (e que estruturalmente deve permanecê-lo, uma vez que só se reencontra praticamente com o pai para morrer) é a figuração humana desta quête de Origem que aprendemos com o filme ser de natureza cósmica, Una, e de que o grande arcano da floresta (mas numa maniera muito distinta dos wagnerianos Fitzcarraldo (1982) e Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972), lembremo-nos) serão o lugar: em vários momentos, a câmera fluidamente concertante de Gray reencontra a sutura impecável daquelas obras modernas que talvez tenham sido as mais quintessencialmente clássicas – sim, o recalcado do clássico: a transfixação pregnante da pintura restituída pelo movimento -, como Jacques Lourcelles viu em Otto Preminger; pois esta fluidez que a tudo raccorda sem parecer que raccorda, esta dança ubíqua, esta serenidade intransitiva que nos momentos mais dramáticos (a guerra, o ataque das piranhas) antes parece querer esposar uma sobre-elevação de promontório, estes reenquadramentos que – ao contrário dos de Fritz Lang -, não capturam expeditos os personagens nas barras dos planos ratoeiras, mas englobam, integram, imantam-nos aos espaços, e ainda estas distâncias que jamais se distanciam o suficiente nesta profundidade de campo onde se figura o vórtex de um never more igualmente inelutável, com tantos se perdendo para nós e se despedindo uns dos outros…

A espacialidade, elemento eminentemente classicista dos filmes de Gray que ele no entanto sempre soube tornar tão plástico aos afetos e tão poroso às atmosferas, aqui se distende e ressoa segundo um metro mais musical que arquitetônico; esta deliquescente figuração escolhida por Gray é o index de que ao Filho tópico, burguês, o filme prefere o Filho mítico, que há de naufragar com o pai no mesmo sempiterno rio; que à Mulher feminista de uma sequência menor sobreviverá (deo gratias!) a Mulher narradora, que tudo inscreveu “a tempo” na escritura rememorativa, pois só morreria em 1956; que aos episódios deliciosos, é verdade, da caçada ao veado, do front ensandecido de flâmulas e peitos emplastrados de sangue (Gray talvez nunca tenha filmado tão bem!), do baile de eminências pardas e ocres ele prefira aquele beat monotonamente primordial do rio e dos cantos hipnóticos, como dos anelos de fumaça, beat e atmosfera de tohu bohu onde, por refração fantasmática, se raccordem outros tantos rios, até todos encontraram o mesmo rio, que é e será.

Porém, atenção: é preciso estar atento ao processo dialético engendrado aqui, de natureza tipicamente tardia aliás (em Gray, um tardio matizado segundo diapasões mais ataráxicos): Z – A Cidade Perdida não é, evidentemente, o filme de um “barato hipnagógico”, onde um underground de boutique se infiltra no delírio diegético, operação bárbara a que um digital tatibitate tem servido tão utilmente nas mãos de cineastas ignaros; a força desta continuidade etérea que estrutura o filme, como desta transitividade de dança que passa e repassa os destinos humanos segundo compassos metafísicos nada seriam sem o arco firmemente tendido dos duos concertantes com a mulher, dos planos de conjunto da assistência institucional e militar, dos autóctones em luta ao fundo ou unção presciente “à mão” – “Precisamos encontrar a fonte deste rio; você vai acabar aqui”; ou dos figurantes miniaturizados a la Cecil B. De Mille num cerimonial da espera do navio, amplificando-se um scope que também conhece o vitral, como a aquarela e o retábulo; é dialética esta dívida que se confirma paga do artesanato clássico, deste rigor de esquadro e enquadramento, como desta Cena polivalente segundo afetos e ethos diversos (uma comunidade, uma igreja, a nação) que teve no classicismo a sua grande escola polifônica, e aqui é retomada segundo os propósitos idiossincráticos (neste caso, não perversos, como em tantos contemporâneos) de um artista romanesco que sabe que para seus fitos encantatórios como suas decepções críticas a ousia do trabalho clássico foi um indispensável horizonte de matéria-prima.

Esta dimensão mítica ou cosmogônica do ser está também presente em Juventude Transviada (1955), de Nicholas Ray; lembram-se da explosão galáctica, de tão pungentes efeitos nos personagens? Em Nicholas Ray (ainda), Juventude Transviada também encena um triângulo semelhante ao da Mãe, do Filho e do Pai no filme de Gray: Plato, o Filho irreconciliável com a família original e com a família substituta (Natalie Wood e James Deen) deve ser eliminado daqueles casais porque, mais-valia excessiva de romantismo, acabará por fulminar a todos, por implodir a economia restrita do casal, sem a qual nenhum consórcio pode instalar-se duravelmente sobre a terra; Plato é Nicholas Ray, como o filho do desbravador aqui é a versão elegíaca-outonal (reparem como Gray nunca força a mão interpretativa deste bibelô novelesco, deixando-o sempre calcificado sob o tipo behaviorista do adolescente impúbere) daqueles filhos exploitations-demoníacos que acostumamos a ver na obra de James Gray, enfants terribles que, ao contrário de Plato e do menino aqui, extravasavam para o Outro a Hubris romântica de sua luciferina insubordinação para com a Casa paterna; James Gray – como o Ray de Juventude…, Jornada Tétrica (1958), e mesmo O Rei dos Reis (1961), onde este ideal romântico de reconciliação a que secretamente seus heróis carentes aspiravam se arremata numa dimensão mística de “Filho integrado ao Pai” – tornaram-se masoquistas consumados como tantos de nós maduros que antes convertem em sintagmas incendiários o apocalipse que queriam infligir ao mundo; eles abandonaram aqueles cimos e baixezas tão tipicamente dostoievskianos que em seus morceaux de bravoure mais extáticos chegavam a Shakespeare sem jamais abdicar da notação de detalhe camerístico e do expletivo do gesto em surdina dos melhores Tchekhovs; eles não querem, eles não podem mais quebrar o cristal do filme nem conspurcar a família com sua força voraz, talvez porque tenhamos atingido, nesta fase “elegíaca-outonal” dos dois últimos (dos três: colocaria também Amantes (2008) nesta lista) a uma dimensão tão interiorizada de drama, tão lapidar de gesto e rarefeita de angst que os “esplendores e misérias”, os crimes hediondos e as tentações luciferinas, as traições e as orgias de sangue tenham todas se interiorizado num polegar estendido de moribundo, comando menos de general em vilegiatura do que de alguém que finalmente, como a cega de Chaplin – vidente arcano dos clássicos todos – “pode ver”; e ver o que? A Ideia: finalmente Chardin, e não mais ‘tão’ Greuze? Último Dreyer, último Ford, apaziguados e apascentados por terem encontrado a si mesmos, para além do tumulto anedótico do mundo? Via mística, em que a matéria enfeixa-se segundo o metro da Ideia, o mais excelso dos continentes? Vamos verificar isso.

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Há uma sequência que me impressiona vivamente no filme, e que Gray vai raccordar com outro ‘tele-transporte’ místico ao final; é quando da leitura da mão pela vidente. Não lhes impressiona que agora o espaço-tempo seja outro, e aos fundos da tenda onde se arregimentam os soldados sequiosos de presciência se substituam os campos e os cipós da beira do rio? Não veem o raccord que Gray nos dá com a hora da morte do capitão, que num semicírculo de hipnagogismo encantatório o revê no quarto da mulher e na mesa do escritório para logo depois mergulharmos com ele na infinitude do chiaroscuro da selva? Não veem que estes outros lugares que o raccord introduz são o Mesmo e sempre lugar, e que o anedotismo diegético (factuais, ônticos eventos) vai sendo dilapidado, consumido e finalmente consumado pela chama de uma Ideia que a tudo devasta, e em um mesmo movimento transfigura? Sim, desde os românticos de Iéna conhecemos os prodígios de que a imaginação é capaz para o pensamento, a inervação extática, a escritura e a autodestruição; Gray não é jamais um expressionista tout court, mas Z – A Cidade Perdida é também este tubo de ensaio onde experimentamos (e experienciamos; jouissance ainda) que o mundo real é talvez, para artistas e aqueles que romperam o véu de Maia, o istmo evidente e superficial de nebulosas; a câmera lenta, artefato talvez naïf em outros Grays (mas resgatado da naiveté por sua situação, por exemplo, em certo cadre maneirista contemporâneo) aqui já não é mais necessária; basta o elementar raccord para elementarmente nos revelar que la vraie vie est ailleurs…, e que é a Ideia que acabará por triunfar dos destinos humanos. Z – A Cidade Perdida, sob a máscara de uma sessão da tarde mais modorrenta, cíclica, arquetípica e pouco elíptica, é um filme que trabalha a Casa, o Pai (a Lei) e os destinos transviados da filiação, como qualquer grande Gray, cineasta devedor tanto dos apocalípticos quanto dos integrados enfants gatés ou terribles do grande cinema americano dos anos 1950.

Mas ao contrário de Fuga para Odessa (1994) ou Os Donos da Noite (2007), filmes ainda trabalhados dramaticamente pelo choro e ranger de dentes dos Filhos rebeldes – que acabam sempre por se integrar à Família e “crescer”, ao final do tumultuado percurso iniciático, como bem o sabemos -, Z – A Cidade Perdida possui talvez o mesmo gênio romanesco observado nos outros filmes, mas prescinde do demoníaco como alavanca da fábula porque, reconciliados romanticamente com a Natureza (modelo de aprendizado de Hyperion, auxiliado pela mediadora pagã Diotima), desde sempre estivemos lá, e não precisamos percorrer o anfractuoso caminho de volta para casa; aqui, é não tanto o bildungsroman do indivíduo ainda não-reconciliado o que lhe importa, mas o conhecimento das aparências à luz da Ideia, que acaba por tudo transfigurar/fantasmagorizar, como vemos na última e alucinógena seção; mas que ele tenha conseguido traduzir semelhante experiência filosófica como mística – e que um dia, segundo a relevância da transparência nos revela, engendrou o classicismo como ourivesaria da Ideia – sem sombra de retórica, grandiloquência chargesca, enfatismo patético, é algo digno de nota, afinando-se aqui uma têmpera de controle “férreo de pelica sobre seus materiais. O plano final com que vemos Nina desaparecer ao fundo do espelho emaciado recorda-me um trecho de Jean-Pierre Vernant, em que ele nos informa sobre um estranho espelho – mal polido e recurvo nas bordas – à entrada do templo da deusa Despina na Arcádia; este espelho é o front, não para uma jouissance narcisista do fiel, mas sagrada, porque apenas a profundidade de seu campo deixa ver alguma coisa: a invisível figuração do trono da deidade ali cultuada? O espelho com que Z – A Cidade Perdida se encerra é o lugar onde desaparecem os homens e começa a escritura, talvez o cadre mais excelso para homens, rios e obras habitarem eternamente.

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