Filmar por instinto – uma conversa com Paul Vecchiali

agosto 12, 2015 em Em Campo, Entrevistas, Filipe Furtado

Noites Brancas no Píer (2014), Paul Vecchiali

por Filipe Furtado

Certamente teremos poucos eventos mais relevantes no circuito de cinema brasileiro do que a estreia de Noites Brancas no Píer (2014), o primeiro longa de Paul Vecchiali a chegar aos nossos cinemas. Entre grandes cineastas veteranos ainda em atividade, poucos representavam lacuna tão grande, e se Noites Brancas no Píer não é necessariamente seu melhor filme, não deixa de ser tanto um trabalho de fôlego em sua obra. Vecchiali andava um tanto esquecido, filmando regularmente em digital, num ritmo rápido, porém quase invisível. Quando o contatamos para conversar, junto ao lançamento do filme no Brasil, o diretor pediu desculpas por demorar duas semanas para responder porque estava se dividindo entre cinco filmes diferentes, e o fez sempre de forma sucinta e direta, como é habitual para quem acompanha seus ocasionais posts em redes sociais.

Seu estilo, calcado num trabalho cuidadoso de ficção e encenação, está longe dos modismos das curadorias dos festivais internacionais atuais e dos agentes de venda que as sustentam, mas a presença de Noites Brancas no Píer na competição do Festival de Locarno do ano passado parece ter relembrado a nossa cultura cinematográfica de que Vecchiali seguia tocando sua obra sem grandes preocupações ou interesses em se encaixar. O filme atualiza o clássico de Dostoievski já filmado antes por Luchino Visconti e Robert Bresson, e o filme é dedicado a eles e a Max Ophuls, que Vecchialli diz ser seu cineasta favorito junto a Jean Gremillon.

Vecchiali também permanece bastante despreocupado quanto ao peso da herança da sua obra. Quando perguntado sobre a afirmação de Serge Bozon de que a Diagonale seria a última escola do cinema francês e a sua influencia sobre jovens cineastas locais, preferiu desconversar “Caberia a eles se expressar sobre isso.” De qualquer forma cravou seu desinteresse sobre o cinema e a crítica contemporâneos – é bom lembrar que Vecchiali produziu filmes de críticos importantes, como Jean-Claude Biette e Noel Simsolo pela Diagonale – com raras exceções. “Eu não creio que exista uma crítica contemporânea interessante. As grandes máquinas de produção hollywoodiana obscureceram a paisagem do cinema, e os franceses se contentam em fazer telefilmes mais ou menos interessantes quanto aos temas, mas sem a menor tentativa de escritura fílmica. Excetuando-se Bozon, Ropert, Fitoussi, e sobretudo Laurent Achard, eu não gosto do cinema atual”. Fazendo, porém, a ressalva: “mas ainda temos Godard”.

Falando da Diagonale, Vecchiali não poderia ser mais pragmático “Nossos desgostos nos reuniam mais que nossos gostos. Mas a amizade era mais forte que a conivência”.  Destacava, porém, que como montador – função na qual também foi mestre – sempre se esforçou em servir aos demais realizadores, “mas eu dirigia a produção”. Também desconversou quando questionado sobre a repercussão dos filmes. “Quando se é independente, caçoamos da eventual repercussão dos filmes. Fiz grandes sucessos comerciais, mas foi por acaso”. Fez questão porém de resaltar que a Nouvelle Vague foi uma fonte de inspiração para os filmes da Diagonale, dizendo porém que permaneceram “muito ligados aos sentimentos e aos personagens. Nós não éramos ‘cerebrais’.” Vecchiali também aproveitou para frisar a importância da imaginação e da construção de mundos que só poderiam existir no cinema como essenciais para seus filmes.

Noites Brancas no Píer segue esta mesma trajetória de depuração de um universo particular buscando transportar o universo de Dostoievski para o de Vecchialli.  O filme existe quase suspenso no tempo, somente duas pessoas isoladas numa locação envolvidas com seu drama particular, tomado por ocasionais rompantes, como o número musical, e a presença constante de um celular que ao mesmo tempo conecta-os ao nosso tempo e ao mundo exterior. Para Vechialli, a grande dificuldade como adaptador foi “tornar o texto moderno, mesmo respeitando-o escrupulosamente”.

O filme tem a seu favor a locação do título, que se revela bastante marcante e particular, que o diretor conhecia bem e já havia utilizado em outros longas com menor protagonismo. “Trabalhei com frequência nesta locação, mas jamais tinha visto o píer à noite. Quando cheguei lá numa noite, me pareceu evidente que seria o cenário do filme: em particular, as verticais de concreto me pareciam um bom contraponto aos movimentos do mar”.  Vecchialli também fez questão de frisar  que a passagem da película para o digital em “absolutamente nada” alterou a sua abordagem de mise en scène.

Boa parte de Noite Brancas no Píer se sustenta no tripé da locação com seus dois atores (Astrid Adverbe e Pascal Cervo) e um cuidadoso trabalho com a luz. Por vezes o filme chega a sugerir um estudo de como a luz reflete sobre as aguas do píer e os rostos de Adverbe e Cervo. Questionado sobre ela, Vecchiali destacou que o papel essencial da luz já está predito na citação de André Gide que abre o filme: “Escuridão, de agora em diante serás minha luz”. Sobre os atores, o diretor se entusiasma e explica mais do seu método de trabalho: “É a cada filme que me ocupo dos atores. Aqui, eu pedi a Pascal e a Astrid que decorassem o texto fielmente, de modo a que só precisasse fazer uma tomada. Frequentemente, entre duas tomadas os atores fazem um pouco de psicologia. Aqui, eu buscava certa inocência. E cada plano foi rodado uma única vez”. Mas também devolve um pouco de encanto e mistério ao processo “Eu não penso no que faço. Faço pelo instinto, e cada filme é diferente.” Com sorte, o espectador brasileiro terá novas oportunidades de conferir a obra de Paul Vecchiali.

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