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O mundo não é seu

Em uma entrevista concedida a David Poland em julho de 2017, o ator Robert Pattinson comentou que abordou os diretores de Bom Comportamento propondo-lhes trabalharem juntos após ver um still na internet do longa-metragem anterior dos dois. Não havia ainda nenhum projeto. Ou melhor, o projeto de alguma forma começava a nascer ali. Acostumados a trabalhar com não-atores, com moradores de rua ou ex-viciados no elenco, como é o caso de Só Deus Sabe (2014), a reação deles foi imediatamente pensar em como lidar com um grande ator hollywoodiano – uma estrela – ou melhor, um “protagonista”, conta Josh Safdie. Esta “diferença” que o diretor menciona entre o rosto de um desconhecido e o de Pattinson poderia servir como chamariz, sem afetar propósitos artísticos mais significativos no roteiro influenciado pela literatura de Norman Mailer, não resolvessem os diretores transformá-lo em algo singular dentro do filme.

Bom Comportamento não é tanto um filme sobre o protagonismo quanto sobre a sua impossibilidade ou crise. Parafraseando um crítico alemão, David Bordwell comenta em seu seminal O Cinema Clássico Hollywoodiano que o star system norte-americano favoreceu a estrutura básica do “herói com um objetivo”, no qual “o primeiro ato estabelece o seu objetivo; o último, a sua realização, e que tudo que há entre estes dois momentos é a sua prova de força”. O Connie de Pattinson encarna este protótipo, tanto na condução da narrativa quanto em seu próprio discurso. De um lado, é dele que parte todos os principais gestos e a movimentação, não importa o quão errática e mal direcionadas elas acabem por ser. Desde o início, conhecemos sua vontade de libertar o irmão Nick (Benny Safdie) de uma estrutura opressora composta por sua avó e pela instituição psicológica que o infantiliza; toda a trama gira em torno do perpétuo esforço de levar esta libertação a cabo.

Por outro lado, este senso de superioridade de Connie em relação aos outros está também na ordem do seu próprio discurso. A dada altura da jornada noite adentro, quando aguarda em um apartamento um sujeito para comprar o ácido que encontrou no parque de diversões, Connie volta-se para o parceiro temporário Ray (Buddy Duress) e diz peremptoriamente: “Eu sou melhor que você”. O parceiro embriagado discursa que ninguém é melhor que ninguém, que todas as pessoas são desastres e que não deveriam ser julgadas. Connie retruca: “Você não tem função nenhuma no mundo”, diz Connie, “não sabe cuidar de si mesmo”. O protagonista quer se distinguir hierarquicamente do outro, afirmando a sua soberania, capacidade de ação e de levar a cabo os seus objetivos; comparando-se com Ray por negação.

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A singularidade do arco narrativo de Bom Comportamento está no fato de que, a cada gesto de Connie procurando se aproximar do seu objetivo, o que encontra é um novo desafio ou problema que o deixa ainda mais longe. O movimento é de afastamento. A substância seria aqui repelida pelo ideal ao invés de convergir com ele. Ao tentar sequestrar o irmão para tirá-lo do hospital, por exemplo, termina por carregar o homem errado, que lhe inaugura ainda um novo conflito. Neste sentido, o longa-metragem tem mais a tendência a corroborar o discurso do parceiro doidão que o de seu protagonista; mais a homogeneizar as figuras humanas, desenhando-as como o alvo de uma sociedade cruel que vitimiza os seus desejos e tenta suprimi-los, aprisiona-los, obrigando-nos a aceitar o destino de não poderem estar onde desejam, ou se tornarem fugitivos fora-da-lei, numa dinâmica que se aproxima muito mais das figuras decadentes típicas dos trabalhos anteriores dos Safdies, a viciada Arielle Holmes e os moradores das ruas de Nova Iorque retratados de modo mais realista em Só Deus Sabe, por exemplo. A sequência em que Connie vai finalmente preso é ilustrativa: observada à distância em um plano geral, trata-se de uma fuga desesperada e patética, que termina em um tropeço que beira o banal.

Bom Comportamento é um filme sobre prisões. É onde termina Connie, enquadrado pelas grades no banco de trás de um carro de polícia, assistindo o suicídio acidental do ex-companheiro. Ou Nick, perambulando de um lado para o outro em uma instituição de tratamento psicológico infantilizada e sem propósito. É uma prisão externa e não interna. A prisão institucional estabelece os parâmetros da normalidade e aprisiona os que não se encaixam dentro delas. Nick é vítima do rótulo da doença mental. E Connie é um fora-da-lei porque está disposto a passar por cima de absolutamente todas as arestas possíveis para retirar o irmão desta condição que lhe foi imputada, ainda que isto envolva assaltar um banco. Protagonismo, no universo dos irmãos Safdie, significa a disposição de ir até às últimas consequências, transgredir o convencional, desrespeitando o que é tido como padrão, o que castra, fere e impede o desejo (seja qual for este desejo). O que, no fim das contas, não significa muito mais do que ser um bandido.

Mas também não há nenhum mergulho na questão estrutural dos reformatórios ou das prisões, e tampouco nos problemas neurológicos de Nick que o conduziriam àquele estado. Estamos distantes do genealogismo foucaultiano. Mal conhecemos o seu médico ou a sua avó, que são as duas figuras responsáveis por ele estar lá. Ao invés disto, o terceiro longa-metragem dos Safdie se concentra quase que exclusivamente em Connie. Não em suas motivações, que nos são dadas inequivocamente desde os primeiros momentos do filme; embora Bom Comportamento seja um filme feito praticamente de primeiros planos, o rosto aqui não adquire nenhuma conotação dramática maior. Não há psicologismos. O que há é uma vocação para olhar a ação, contínua e ininterrupta, quase obsessiva, buscando resolver em um só golpe a situação individual, e a sinergia particular que emerge desta busca eufórica às cegas. Não há exatamente realismo, mas um sentimento de urgência impregnando cada um dos planos trêmulos.

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O longa-metragem se estende, em ritmo frenético e alucinante, através da procura de Connie pela resolução dos problemas do irmão. Mas ele não constrói objetivos e desenha a trilha e o método para resolvê-lo, conduzindo o espectador a um clímax e uma resolução. Pelo contrário, ele estabelece um ritmo unívoco de tensão que não desce em momento algum, permanecendo desde o princípio no patamar das alturas, construindo cada vez mais um labirinto sem saídas a partir desta mesma e violenta vontade de ação. Isto porque cada resolução é, no universo dos Safdie, ainda uma nova forma de se encontrar fugitivo de um mundo impiedoso, pronto para castrá-lo. Quem resolve agir; ou seja, quem resolve levar o seu desejo a cabo, deve aceitar o destino de não poder nunca descansar, evocando, em certo sentido, a danação do casal de Amarga Esperança (1948), de Nicholas Ray. A elegia final de Oneohtrix Point Never com os versos “the pure always act for love / the damned always act for love” [o(s) puro(s) sempre age(m) por amor / o(s) condenado(s) sempre age(m) por amor] , sintetiza o desejo maior de Bom Comportamento que é igualar, em termos de potência, o ato do herói hollywoodiano ao de um alcoólatra junkie zé-ninguém cuja vida parece despropositada, encaminhando-se a lugar nenhum. É também convergir o motivo de ação do personagem do cinema hollywoodiano pós-moderno ao do classicismo: o instinto da ação é o amor em ambos os casos.

Bom Comportamento tem a capacidade única de nos segurar na sinergia infernal que propõe do início ao fim, sem abdicar do propósito mais amplo que o motiva, feito recentemente só equiparável talvez ao sentimentalismo exacerbado de A Troca (2008), de Clint Eastwood. O labirinto que vai aos poucos se desenhando, sem a previsibilidade inócua de tantos filmes que, ao saberem-se apontando para portas trancafiadas, já deixam de início se levar pelo marasmo da inevitabilidade, é aqui um exemplar raro. Bom Comportamento acaba por ser uma interessantíssima reflexão sobre ação e reação no cinema norte-americano de hoje em dia. É também um olhar sobre a sociedade americana e o paradoxal mecanismo de duas forças quase opostas que agem sobre a subjetividade individual. De um lado, aquela inscrita nas sempre ressonantes palavras do Scarface (1932) de Hawks – “o mundo é seu” – que balizaram os filmes de gângster e que estimulam a ação ultra-individual, a força inquebrantável do desejo singular que não enxerga limites plausíveis. De outro, a lógica do controle social extremo, onde todas estas mesmas subjetividades são demolidas, esfaceladas, reduzidas a nada. Em prol, também, da edificação de nada ou quase nada.


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