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Na órbita dos cínicos

Raramente curadores são protagonistas. Seja em filmes, peças, novelas ou romances, um eventual protagonismo dessas poderosas personas da cultura contemporânea tende a ocorrer pelas coxias, entre os bastidores, distante dos holofotes. Em The Square – A Arte da Discórdia acompanha-se uma sequência de enganos que circundam Christian (Claes Bang), curador de um prestigioso museu em Estocolmo, na Suécia, capital dessa monarquia já acostumada a ser o cenário de flashes mundo afora num dos principais festejos ocidentais de cada ano, o Nobel. Mais do que retratar Christian, esse curador, The Square dedica-se a olhar todo seu entorno, como a plateia mais seleta que frequenta o museu, os assessores de imprensa, publicitários, debatedores, artistas e mesmo o público, por assim dizer, “comum”, que está distante de todo esse cortejo, fora dos vértices desse tão peculiar quadradinho.

Christian possui vários dos trejeitos externos que reconheceríamos num típico curador europeu. Veste-se bem, é antenado aos principais conceitos estético-políticos vigentes, possui um amplo espectro de contatos sociais, encena com destreza para uma plateia afoita por personalidades notáveis, sedenta por cocktails e, charmoso, embora um tanto oco e inseguro, domina os conceitos necessários para apresentar uma exposição ainda enigmática, ainda indecifrável. Se The Square realmente se propusesse a flertar com estética (e curadoria), teríamos, com Christian, uma sólida argamassa para esse caminho dramático. Não é, no entanto, o que ocorre. Logo numa das primeiras sequências Christian é enganado e envolvido num assalto que também é uma performance. Perde seu celular e crê que adicionaram, na cesta do furto, as abotoadeiras herdadas do avô. Mais do que desesperado e violento, trata-se de um assalto um tanto cômico, despretensioso, mas que se revela maroto nas suas artimanhas: poderia ser um espetáculo, ou uma mera diversão à porta do museu. É tão risível quanto grave, tão amoral quanto sedutor.

Uma performance fugidia e dissimulada, portanto, encadeia o principal plot de The Square. Aos poucos, ocorrem tensões e consequências mais bizarras na inusitada estratégia que Christian traça com seu assessor para recuperar seus bens. O restante do filme, ao menos no desenlace das suas cenas, reverbera em consequências similares: estranhos ruídos na transa entre Christian e Anne (Elisabeth Moss), desejos de vingança de uma criança árabe a clamar por justiça e bom senso – aliás, a única personagem realmente sincera e aguerrida que o filme assim retrata –, consequências as mais desastrosas da campanha de “viralização” de um vídeo liderada pelos publicitários contratados pelo museu. Mais do que uma obra crítica e acusatória, The Square alinha-se à estrutura de uma certa comédia de erros, na qual os acontecimentos surgem e se desenlaçam um tanto ao acaso, como se nem mesmo um personagem, um ator social ou um tema fossem os responsáveis. Como o assalto inicial, a sua estratégia é ardilosa, pode enganar e, sorrateiramente, não revelar o seu engano. O tom cômico tampouco conduz a um estranhamento. O engano, portanto – nada ledo, nada leviano – e a irresponsabilidade – como um índice de uma patologia social que se diz política – emergem, ao longo do filme, como dois dos principais motes enlevados pelo enredo. Se levássemos a sério, por outro lado, o próprio intento da exposição “The Square” faríamos uma crítica superficial de sujeitos sórdidos ainda relutantes a aderirem ao altruísmo apregoado pelo mote da curadoria. Ao escamotear as suas artimanhas, ao tornar tudo acaso e irresponsabilidade desenfreada, o filme compartilha das mesmas mesquinharias que pretensamente denuncia.

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Num olhar mais ligeiro, pode-se supor que The Square retrata um paroxismo da já antiga sociedade do espetáculo, a qual opta pela imagem ao invés dos fenômenos sociais que estão diante da retina. Em The Square a sociedade do espetáculo seria retratada como se encontrasse num beco sem saída e o mundo da arte abrigasse um dos seus principais sintomas, já que gravita-se mais num cosmos imagético do que efetivo. Nos seus melhores momentos, no entanto, The Square encena algo distinto e aponta para o fiasco de todos os motes de performances e de agressividade que circundam a hipocrisia inerente à sociedade do espetáculo. Na sequência do jantar de gala diante de um performer a exibir grunhidos símios, sem contenção nem propósito para a sua agressividade, o paroxismo desemboca num impasse: como conter esse monstro simbólico que foi criado pelas principais instituições de arte? Como aplaudir um espetáculo vazio e reivindicar autonomia diante de um sistema de produção, circulação e debate totalmente contaminado por tantas mesquinharias? É claro que a cena sugere uma dualidade entre civilização e barbárie ou como ambos, projetos e pulsões, estariam hoje mais entrelaçados e indissociáveis do que se supõe. The Square, de maneira sintomática, não aponta, não indica e sequer sugere respostas ou mesmo responsáveis por esses impasses. Não consegue criticar o que retrata, não gera feixes de estranhamento, pois está imbuído da mesma falência da crítica que pulsa entre os seus personagens. O tal quadrado revela-se uma ilha de cinismo cercada de cinismo por todos os lados. Exceto pelos mendigos (e a criança árabe), distantes desse jogo social contemporâneo, estão todos, por assim dizer, enfurnados dentro do mesmo quadrado, contaminados por essa constante venda da mesma falência simbólica que a tantos coliga.

Mas, afinal, o que seria o cinismo? Como ele realmente impacta o nosso atual cenário estético e político? Na sua Crítica da Razão Cínica, Peter Sloterdijk aponta, numa reflexão pioneira, para a emergência de um novo tipo de cinismo moderno e contemporâneo, no qual não há mais tanto espaço para uma sátira, uma ironia como vezos críticos a problematizarem mentiras, falsas compreensões ou ideologias. Compreender hoje esse cinismo conduz a uma bifurcação. Há, de um lado, o cinismo clássico e antigo, na filiação ocidental, que remete a Diógenes, com suas fezes no teatro e sua masturbação em público. Anárquico, destruidor e disposto ao choque político e à provocação, esse cinismo possui algum afã de desmascarar problemas, de tornar uma depravação socialmente visível e, em certos casos, resvala numa notável potência estética. Vilão ou heróico, é um cinismo amoral, mas potente. Sloterdijk, por outro lado, constata algo radicalmente oposto: o cinismo tornou-se ele mesmo um dos principais contornos das máscaras sociais contemporâneas, um modo de sociabilidade, um código de ação com relação a fins que é permeado por trejeitos cínicos, nos quais a revelação, o esclarecimento (e mesmo a racionalidade, essa palavra hoje tão démodé) não fazem mais parte do jogo, mas, ao contrário, tornam a mentira mascarada de inteligência como uma forma de sociabilidade que se infestou em instituições clássicas como o sistema cardinal, o militar, a medicina, a política, obviamente, a educação e mesmo campo da arte e da estética É um cinismo essencialmente tático. Para Sloterdijk, esse emergente e alastrado cinismo, como um vírus, foi resultado de uma longa adaptação histórica dessas instituições clássicas da sociedade ocidental que precisam dissimular uma verdade que já não mais acreditam para não escancararem como sucumbiram ao encantamento e à lógica do capital. Não há mais escrúpulos, seja dentro ou seja fora das quinas e dos noventas graus que enquadram as tantas táticas cínicas.

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Há, no filme, uma sequência que bem elucida os dilemas dessa sociabilidade cínica. Trata-se da coletiva de imprensa, onde o jogo de cena não busca uma explicação para o que ocorreu, mas apenas aponta para um desleixo ocasional do curador. Em determinado momento um jornalista pede a palavra, pede por um sopro de racionalidade. Mas o cinismo do museu, fazendo coro a tantas outras instituições contemporâneas, solicita a complacência, a cumplicidade e o silêncio do curador e da platéia que estão ali a testemunhar aquela coletiva embalada por cinismo. Dissimulado por um encadeamento de acasos e de irresponsabilidades, o tênue sopro crítico que exala de The Square é, também, genuinamente cínico. Essa crítica, contudo, recai no mesmo jogo, na mesma força gravitacional que denuncia. Ao não ter força para gerar esclarecimentos, orbita emaranhada entre as mais grudadas máscaras de cinismo.

A título de comparação, vale lembrar de dois filmes. O primeiro é A Grande Beleza (2013), de Paolo Sorrentino. Embora o filme retrate diversos aspectos cínicos da sociedade midiática italiana atual, o escritor e protagonista Jep (Toni Servillo) passeia como um dândi acima daquelas dissimulações que julga como decrépitas. De toda forma, seu cinismo, no filme, seria mais próximo aos feixes anárquicos de Diógenes. Os Idiotas (1998), de Lars Von Trier, é, como um segundo exemplo, um filme no qual o cinismo inicial da trama e de parte dos personagens pouco a pouco desmascara-se como ironia, como possibilidade de afastamento e de estranhamento dos limites do cosmos performático vivido pelos personagens. Gostemos ou não de ambos os filmes, eles parecem, hoje, tão distantes de The Square como são todas as galáxias vizinhas.

Ao desenlace da trama, embalado por um esforço de sublinhar dramas e má consciências, revela-se, no retrato de Christian, um simplório pai de família, separado, a passear pelo shopping com as filhas. A comprar, a entreter-se. Nem mesmo uma sequência de esclarecimento e arrependimento é suficiente. O personagem curador não consegue escapar do mote performático, de tão entranhado que nele está. Se em alguns segundos vê-se o rosto de Christian distante da máscara de curador, não é o mesmo que ocorre com a própria máscara curatorial, a qual precisa de tantas explicações (e expiações) cínicas, como ocorre na coletivas descrita, para manter o teatro dos cínicos refestelando-se no quadradinho das artes e do museu. Filme ambivalente, The Square escorrega e mesmo despenca ao sucumbir no mesmo canto que tentou criticar. Talvez seja um sintoma de época, no qual o cinismo, seu círculo vicioso e sua órbita, hoje (quase) inescapável, sobretudo para os profissionais que lidam com símbolos e sensações, já esteja tão naturalizado, tão arraigado que dificilmente permita fendas, brechas, escapes. Falta ar, ao final de The Square, falta respiro e essa ausência, paradoxalmente, foge à intenção do filme, que, pálido, inspira e exala esse mesmo oxigênio. Ao resignar-se diante do que pretensamente denuncia, The Square expira um frágil fôlego, cambaleia e se alquebra diante das suas melhores intenções.


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