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A supressão do movimento

 

Embora seja tema central de dois longas-metragens exibidos durante o 10º Olhar de Cinema, Rolê – A história dos rolezinhos (Vladimir Seixas, 2021) e Nós (Letícia Simões, 2021), a ideia de movimento não encontra materialidade nos filmes, em seus modos de elaboração das imagens e sons. De maneira contraditória, a desobediência e a impermanência do mover-se foram suprimidas pelas escolhas formais que os compõem.

Enquadrando o rolê

Manchetes de jornais, noticiários e imagens de arquivo revelam, em Rolê – A história dos rolezinhos, o fenômeno dos rolezinhos ocorrido no começo dos anos 2010 no Brasil. Em shoppings de diversas regiões, localizados majoritariamente nos bairros mais ricos das cidades, grupos de jovens negros e negras reuniam-se nesses espaços público-privados para afrontar o racismo institucionalizado e reividincar seu direito ao lazer. A circulação de imagens de perseguição por seguranças particulares, de cenas de violência ocasionadas pela polícia militar e os discursos de agentes de Estado tornaram explícitos, na época e no filme, os conflitos sustentados pela racialidade.

Apesar de antever em seu título uma aproximação com a historicidade dos rolezinhos, Vladimir Seixas opta por usar os eventos apenas como ponto de partida, dando maior atenção para a repercussão, na vida de três personagens que participaram dos rolezinhos: Thayná Trindade, Priscila Rezende e Jefferson Luis. O ponto de encontro entre as três ativistas em Rolê… se dá pelo destaque de suas presenças nos movimentos das juventudes negras: Thayná, pelo caso de racismo sofrido dentro de uma loja do shopping; Priscila, pela realização da performance Bombril, onde ela e um grupo de mulheres negras areavam panelas de alumínio com os próprios cabelos crespos; Jefferson, por ter se tornado uma das figuras mobilizadora dos rolezinhos.

Um circuito intenso de imagens, produzidas pelas câmeras inquietas dos rolezeiros, concebeu testemunhos importantes para essa série de ações coletivas que marca a história sócio-política recente do país. No filme, no entanto, o uso desse material de arquivo, é pouco valorizado, sendo utilizado, na maior parte do tempo, como algo ilustrativo, timidamente articulado à narrativa. A concentração nas entrevistas, posteriores à ação, documenta seus desdobramentos, mas deixa de lado a intensa movimentação em ato que essas câmeras testemunhas captavam. Esses depoimentos aparecem, muitas vezes, por meio de uma câmera frontal distanciada, onde os personagens encenam um diálogo que se deseja rotineiro, mas que se mostra visivelmente dirigido. Tal escolha gera certo incômodo, uma vez que parece haver o desejo de tornar a câmera “invisível”, com certo tom de imparcialidade, algo controverso para um tema em que tomar partido media as relações de força entre aqueles que se manifestam nas ruas dos shoppings e aqueles que deslegitimam essas mobilizações.

Essa sensação se reforça, ainda, pela estética televisiva da obra de Vladimir Seixas, que se assemelha a obras como Falas da Terra (Rede Globo, 2021) e Sementes: Mulheres Pretas no Poder (Éthel Oliveira e Júlia Mariano, 2020). O enquadramento controversamente “educado” da desobediência proposta pela dinâmica dos rolezinhos cria uma coreografia publicitária e informativa que são opostas às energias indisciplinadas que emanam dessas articulações, ainda que o filme seja um importante documento histórico para nos aproximarmos desses movimentos.

Apesar de racializar de maneira assertiva a discussão em torno dos rolezinhos e de conectá-los aos levantes ocorridos durante a pandemia de COVID-19, após o assassinato de João Alberto Freitas dentro de um dos supermercados da Rede Carrefour, a nuance rebelde fica a cargo das imagens finais das manifestações contra o genocídio da população negra e a música Olho de Tigre, do rapper Djonga. Mas a real é que o fogo e o movimento insurgente da juventude preta nada ou pouco se adentra à forma do filme e ao modo como materializa seu discurso.

A repetição do mover-se

Em Nós, uma das imagens mais utilizadas para conferir a sensação de movimento é filmar planos em trânsito, percorrer rodovias e estradas. O filme investe numa metáfora óbvia para nos convidar a ouvir as histórias e percepções dos diferentes sentidos do mover-se, apresentados por Karim Ainouz, Enver Melis, Tsead Brinja, Eva Kess, Nitcheva Ossana e Pêdra Costa. Com uma montagem porosa à narração de suas entrevistadas, cria-se uma permanência da estrutura fílmica. Dividida marcadamente a partir do depoimento de cada participante, essa composição o torna previsível e repetitivo, deixando de lado a radicalidade da impermanência de viver em movência.

A própria diretora aparece como narradora do dispositivo fílmico e intervém com depoimentos sobre o seu modo de ser estrangeira e de ser pertencente ao seu território de origem. A partilha de cada personagem, inclusive a de Letícia Simões ao dirigir, possui dimensões existenciais fortes, com enunciações poéticas instigantes, que evocam um lugar reflexivo para as espectadoras. No entanto, há uma resistência a inventar modos de produzir mudanças no ritmo, na cor e na exibição das imagens escolhidas para elaborar o mosaico que media nossa relação com as entrevistadas.

A permanência de seu formato repetitivo confere aparente integração entre as vivências e os espaços evocados pelos depoentes, criando um corpo coletivo que se faz em plena heterogeneidade do grupo de pessoas presente em Nós: línguas diferentes, países diferentes, gêneros diferentes. O ambiente formal estático cria um cenário de contemplação que também contrasta com a inquietude apresentada por essas cidadãs do mundo. No entanto, enquanto uma das pessoas nos convida a “conhecer uma cidade pelo corpo”, o corpo do próprio filme parece fugir de seu assunto-tema.

Operar (contra o) no movimento

Enquanto alguns desses corpos vagam em chãos estrangeiros, outros passeiam pelos shoppings localizados em terras brasileiras. A sensação ou o desejo pelo (des)pertencimento movem os sentidos e as ações de pessoas que ocupam as dezenas de lugares por onde derivam. De um lado, o deslocamento para se desenraizar do espaço de onde partiu. Do outro, a circulação para tornar-se parte das espacialidades que ousaram dizer-lhes que eram proibidas. Apesar das circularidades e (contra)deslocamentos, Nós e Rolê… não acolhem a energia do mover-se. Escolher estruturas fílmicas que contrastam com o assunto do filme não é um problema, exceto quando a forma parece aquietar ou reduzir o volume de sua própria matéria. E é justamente nesse ponto que tanto Rolê… quanto Nós operam: contra a volubilidade e vulnerabilidade de circular, de estar em movimento.


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