Não é fácil realizar um festival de cinema num cenário tão turbulento quanto o do Brasil hoje, ainda mais quando o financiamento para cultura (incluindo de forma bem direita os festivais) está sob questão. Era difícil não pensar nisso cada vez que passávamos pela entrada dos cinemas e víamos com destaque nos cartazes “o Ministério da Cidadania, Governo do Paraná e Copel apresentam…”. A simples mudança do ministério responsável, um lembrete bem direto sobre o momento presente. O perfil do Olhar de Cinema nessa oitava edição foi o de dobrar a aposta numa postura aguerrida. Algo visível em muitas escolhas curatoriais a começar pela retrospectiva que propunha um diálogo entre o chileno Raul Ruiz e realizadores brasileiros que filmaram no exterior durante a ditadura militar, as escolhas da sessão de clássicos igualmente apontavam para um perfil que misturava homenagem com o desejo de deslocar o cânone e uma preferência por títulos mais confrontadores dos realizadores, uma seleção considerável de filmes que encaravam questões políticas de frente e um aumento exponencial da presença do cinema brasileiro, incluindo uma nova sessão – Olhares Brasil – dedicada a filmes brasileiros relevantes que já vinham circulando no país (as sessões competitivas incluem somente filmes inéditos por aqui). Esta postura como um todo reforçou o sentimento de que o evento acontece numa redoma dentro da cidade de Curitiba, no qual o circuito do festival servia como pequeno corredor de resistência.
Este gesto de intervenção também torna esta edição do Olhar de Cinema um bom termômetro de como o cinema brasileiro produzido recentemente negocia muito dessas mesmas questões. O Olhar me permitiu uma visão bastante transversal sobre a produção independente recente cobrindo o documentário militante, a ficção de gênero, o retrato afetuoso e o confrontador, a esfera privada e a pública. Em comum em quase todos eles um mundo pouco balanceado e uma quase ausência de certezas. A título deste artigo vou me concentrar nos dez filmes brasileiros novos que assisti no festival (quase todos com as exceções do Bimi Shu Ykaya e A Rosa Azul de Novalis, inéditos no país) e deixar de lado alguns filmes muito potentes exibidos no festival que eu já conhecia como Ilha, de Ary Rosa e Glenda Nicácio, e Sedução da Carne, do Júlio Bressane.
O Olhar de Cinema apresentou três filmes brasileiros na sua seção competitiva, Diz a Ela que Me Viu Chorar, de Maíra Bühler (o grande vencedor do festival), Chão, de Camila Freitas (prêmio do público), e Casa, de Leticia Simões (prêmio da crítica). Diz a Ela… e Chão são documentários de observação lidando de forma bem direta com questões de política pública (tratamento de dependentes químicos no primeiro, a reforma agrária no segundo) enquanto Casa, parte do íntimo das relações familiares da diretora para lidar com um quadro histórico. Os paralelos entre os dois primeiros são bastante ricos. Ambos são filmes que entraram em produção anos atrás (Bühler filmou o hotel para dependentes que lhe serve de cenário entre 2015-2016 e Freitas seu acampamento de sem terras entre 2015-2018) e são diretamente atingidos pelos eventos políticos a ponto dos seus arcos dramáticos serem previstos nas expectativas que o espectador traz sobre eles. Não é acidente que ambos os filmes concluam com letreiros sob fundos pretos bastante fúnebres que descrevem uma sensível piora e aumento de insegurança para seus personagens. São filmes cujas imagens sugerem possibilidades, um sentimento de comunidade, e cujas trajetórias são de tragar seus personagens na crise. Narrativas de desesperança.
Por outro lado, são filmes com atitudes estéticas bem opostas para além da aposta de forjar uma cumplicidade com as suas personagens. Diz a Ela… aposta numa lógica de documentário observacional com seu tradicional distanciamento do objeto e procura por algum equilíbrio enquanto Chão nunca esconde sua aposta política clara na intervenção direta, por vezes sendo quase um institucional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. São dois filmes políticos que tomam partido, mas Bühler acredita que o gesto de ligar a câmera naqueles personagens por si só é dotado de força política, enquanto Freitas aposta numa aproximação que mistura filme e movimento. Essas diferenças de abordagem são fascinantes porque a força política de ambos os filmes é ligada ao seu desejo de produzir um contra-campo às imagens oficiais dos seus objetos, a política de tratamento dos dependentes da prefeitura paulistana durante o governo Fernando Haddad e o MST, ambos tão frequentemente maltratados na imprensa e numa lógica do senso comum. Essa ideia é tematizada de forma bem direta em Chão cujo clímax envolve uma pós-invasão e a cobertura da imprensa dela, com inclusive uma ponta do famigerado ex-ministro da agricultura Blairo Maggi bastante feliz na forma como articula a confusão no imaginário brasileiro entre política pública e propriedade privada quando se trata a questão agrária.
É curioso observar como Chão é um filme previsto na ideia da autossuficiência do acampamento, e na crença das possibilidades da agricultura da pequena propriedade, mas não escapa de certo assistencialismo nas suas imagens benevolentes. O estado ausente substituído pelo movimento e a presença do cineasta comprometido ali para registra-lo. É quase uma ilustração de uma dessas matérias sobre como o trabalho do MST é inovador e vai muito além da questão das invasões que de tempos em tempos surgem na mídia alternativa mais próxima à esquerda. A questão agraria não avança no Brasil, e seu cinema segue estagnado junto: é fácil de imaginar Chão como um filme sobre as ligas camponesas nos anos 1960. As diferenças políticas, porém, são notáveis: no Brasil de 2019 o conflito se dá no duelo de narrativas e, portanto, Chão foge como pode do confronto direto. Para encontrar uma nova narrativa para o MST é essencial que o confronto seja engolido pela elipse da montagem. A intimidade da câmera com acampamento e as imagens da vida lá precisam se impor sobre a ação de intervenção. Um desejo por uma política de pequenos gestos humanos.
Em Diz a Ela…, temos a observação da intervenção direta do Estado sobre alguns dos seus cidadãos mais vulneráveis. O filme parte disso para um movimento bem particular de abstrair a presença deste próprio estado. Pouco vemos os agentes públicos que são mantidos por Bühler e sua equipe no fora de campo. O filme por vezes parece mais preocupado com o espaço em si, na acolhida que aquelas paredes oferecem a suas personagens. Temos várias cenas que lidam com as frustrações dos moradores e outras nas quais confrontos por vezes violentos acontecem sem nenhuma intervenção. A ênfase toda do filme se fecha sobre as personagens que optou por acompanhar. Boa parte do filme transcorre nos quartos dos moradores e o desejo de explorar a intimidade que a equipe conquistou com aquelas pessoas. Há momentos de muita força dramatúrgica e outros nos quais é impossível não pensar nas questões de consentimento e opções da montagem do que mostrar ou não. Diz a Ela… é um filme sobre amparo e seu último ato é um mergulho melancólico e desesperador na insegurança. Parte da contundência do filme está na maneira como ele faz este movimento do amparo ao desamparo, de como ele se fecha numa contagem regressiva. O extracampo se impõe e a pergunta do destino daquelas pessoas devolvidas às ruas é inevitável.
A forma como dialoga-se constantemente com o fora de campo aproxima estes filmes de um terceiro documentário exibido no festival, Indianara, de Aude Chevalier-Beaumel e Marcello Barbosa, filme-retrato sobre a ativista Indianara Siqueira filmado entre 2017 e 2018. Novamente o foco é na existência íntima da sua personagem central e a narrativa negocia o confronto dela com eventos públicos bastante conhecidos, sobretudo na segunda metade quando o filme acompanha Siqueira diante de uma série de desastres (o assassinato de sua amiga Marielle Franco, a expulsão do PSOL, o fim do espaço para LGBTs desamparados que ela cuidava, os resultados das eleições). Os realizadores acreditam na força de resistência diante da derrota de sua protagonista. Se Chão e Diz a Ela… negociam imagens de derrotas melancólicas, Indianara deseja construir uma imagem de persistência na adversidade. O filme se fecha não com o fim da ocupação, mas com o começo de outra. Há no filme uma relação bem particular com o fora de campo já que a câmera dos realizadores nunca abandona Siqueira e ela está em conflito constante com este mundo exterior. Esta adesão leva a algumas fragilidades: como o filme tem pouco interesse em lidar com as forças que agem nele, pouco se sabe sobre as disputas da Casa Nem com o Coletivo Nuvem e os motivos que levaram o PSOL a ceder às pressões e expulsá-la (“você sabe por que o PSOL expulsou ela?”, um crítico amigo me perguntou após a sua sessão). Não se trata de esperar que o filme seja crítico à sua protagonista, mas ao abrir mão do contraditório, foge-se também novamente do conflito do qual se encena somente as consequências. Há um possível material riquíssimo aqui sobre tudo que torna uma ativista dos direitos dos transexuais com ênfase nas lutas das classes populares e das trabalhadoras sexuais um corpo estranho e incomodo para os movimentos mainstream LGBT e feminista que o filme por vezes encerra em pouco mais do que “forças ocultas”.
Assim como Chão e Diz a Ela…, Indianara faz uma aposta clara no convívio e intimidade como forma de chegar a imagens políticas. Boa parte da sua força reside nas suas imagens de foro íntimo e privilegiado. O filme se divide em dois espaços, a casa na qual Indianara Siqueira vive com o marido e a Casa Nem onde ela oferece alguma segurança e amparo para transexuais necessitadas. As cenas na Casa Nem são o que o filme tem de melhor (são também os únicos momentos em que o filme às vezes abandona o foco completo em Siqueira), na maneira em que se estabelece o cotidiano e hábitos das suas moradoras seja quando as acompanha se preparando para sair à noite, seja na angústia dos resultados eleitorais. Em todos estes filmes existe a crença de que o político passa por buscar imagens suprimidas do imaginário popular.
São também filmes tomados por indagações sobre a imagem justa de um cinema ativista, seja na segurança do observacional de Diz a Ela…, seja na aderência de Chão e Indianara. Estas questões são ao mesmo tempo centrais e ignoradas em Espero Tua (Re)volta de Eliza Capai. O filme se diferencia dos demais já na escolha do tema, as ocupações escolares de secundaristas em São Paulo, um raro momento de relativa vitória do campo progressista na vida pública brasileira da última meia década. O filme se foca em um pequeno grupo de secundaristas que acompanha e também permite serem narradores da própria história. A diretora Capai busca o que acredita ser uma linguagem despojada pronta para consumo de um público jovem próximo dos seus personagens.
Espero Tua (Re)volta – o título por si só um discurso direto para seu público alvo – radicaliza alguns dos princípios desses filmes ativistas: a adesão aos seus personagens e o desejo de intervenção sobre a situação, um confronto constante com o fora-de-campo. Se todos estes quatro documentários tratam a indiferença e ignorância da sociedade brasileira presente como adversária direta, é curioso observar que este filme é o que leva a briga para além do caráter simbólico das imagens e narrativas, nomeia o inimigo (Geraldo Alckmin e Alexandre Moraes são mostrados repetidas vezes) e encena o confronto. Indianara ensaia isso, mas a resistência ali segue muito mais na recusa do apagamento diante das forças transfóbicas.
Esta energia e disposição juvenil fazem parte da força de Espero Tua (Re)volta, mas também reforçam suas qualidades mais pueris. As tentativas ocasionais de lidar com história e política são bastante limitadas com leituras frágeis. É um filme de chamado à ação, no qual o que importa é o gesto. O filme parece crer, por exemplo, que entregar a narração aos secundaristas por si só eliminaria o papel dos realizadores como intermediários do discurso. É irônico diante do filme ter de melhor justamente a forma como acompanha esses jovens aprendendo na prática a lidar com as forças políticas – algo que se constrói pelo trabalho de montagem que propõe uma pedagogia da intervenção política – que isso mesmo possa ser ignorado num desejo mal-ajambrado de discurso direto. A dificuldade de pensar as próprias imagens e seus significados cobra seu preço na meia hora final depois que Alckmin recua na reorganização das escolas públicas e, após a vitória na reivindicação imediata, Capai precisa traçar o caminho do movimento dali até os mais incertos tempos atuais. Na hora de representar a dúvida e o contra-ataque conservador, o filme não sabe bem para onde ir. Suas imagens são atreladas a uma ideia de resistência para o qual a melancolia das últimas cenas não se encaixa. Há um impasse de representação que não deixa de ser interessante. Se Diz a Ela… se encerra num apagamento de existências devolvidas ao abandono, e Chão e Indianara a existências como forma de resistência, em Espero Tua (Re)volta, o que sobra é justamente o chamado do título, um terceiro ato ainda por se construir.
A ideia das imagens por si só como forma de resistência também dá as caras em Bimi Shu Ikaya, de Isaka Huni Kuin, Siã Huni Kuin e Zezinho Yube. Como em boa parte da produção de realizadores indígenas, a política começa já no circular dessas imagens, mas não se deve reduzir de forma condescendente o filme a somente isso. A tensão inicial pressupõe questões bem contemporâneas: Bimi, avó de um dos cineastas sobre o qual o filme todo circula, ascende à posição de liderança na tribo, papel que geralmente cabe aos homens. Há sugestão de tensão nas primeiras imagens, mas Bimi impõe sua força e a tribo segue seu caminho, rituais e hábitos antes que a temática dos brancos se imponha. Há outra tensão, porém, que segue ao longo do filme todo que é a da sua própria existência. A câmera é personagem em Bimi Shu Ikaya, tem um peso e é negociada o tempo todo. As imagens dos três realizadores captam rostos, gestos, ritos, a natureza no entorno da aldeia. Há um trabalho de registro e a força da presença da floresta é notável, mas há também o desejo de chegar nessas imagens. Os demais documentários exibidos no Olhar de Cinema têm uma característica bastante reativa, mostram cineastas na defensiva, mas não Bimi Shu Ikaya que é sempre um filme propositivo. Busca-se chegar nas imagens e a política delas é inseparável do processo. “Este filme que vocês querem fazer” Bimi comenta com certa desconfiança logo que o filme começa como a anunciar que se joga a luz sobre si mesmo, e a ação se encerra acompanhando os realizadores após o trabalho cumprido. Se um filme como Chão trabalha sobre a lógica de imagens funcionais de uma tribo distante para consumo de plateias de eventos como o Olhar, em Bimi Shu Ikaya, a força e o prazer se encontram na realização.
Há um outro olhar muito recorrente na seleção brasileira do Olhar de Cinema, filmes que existem numa negociação tensa de projetos autorais muito fechados e o significado deles num espaço político bem diferente da sua concepção. Filmes que, melhores ou piores, arriscam caducar para se manterem fiéis às suas concepções. A Cor Branca, de Afonso Nunes, Casa, de Letícia Simões, e A Rosa Azul de Novalis, de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro, são todos filmes em que o confronto com o entorno se dá por forma bastante fechada e sem concessões.
Em A Cor Branca são muitos os elementos que produzem ruídos de extracampo. Já na segunda cena acompanhamos uma consulta de uma idosa num posto de saúde no qual o médico fora do quadro fala com um forte sotaque espanhol. Na outra ponta, acompanhamos a personagem principal no seu trabalho numa pedreira. No meio campo entre as duas personagens, um terceiro que é liberado da prisão com uma tornozeleira eletrônica. Logo compreendemos acompanhar o cotidiano de uma família fragmentada. Mais Médicos, o destino da população carcerária, o desenvolvimentismo radical e seus recentes desastres ambientais… A Cor Branca é um filme carregado de imagens das contradições do dilmismo. A própria estética de Nunes traz à mente filmes de referência recentes do jovem cinema mineiro: Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans, e a produção da Filmes de Plástico, as quais poderíamos associar de forma bem direta a este momento.
É curioso observar como posto estes elementos em cena, a postura de Nunes é no sentido de se retrair. Desses exemplares do cinema mineiro, A Cor Branca extrai sobretudo um gosto pelo descritivo. Os ressentimentos do lar, a rotina do trabalho, o percurso entre eles serão os elementos dominantes. O prazer da fabulação, tão essencial à graça desses filmes, é substituído aqui por uma aposta na opacidade. A Cor Branca é um filme-laboratório fechado no gesto da observação. Nisso não deixa de lembrar Diz a Ela…: a distância entre realizadores e personagens por vezes se torna o seu principal mote. Mas se no filme de Maira Bühler essa procura de uma distância íntima justa é parte da busca por uma contundência, em A Cor Branca ela é um projeto. Os momentos de força são aqueles que lidam com o trabalho na mineradora onde o olhar semidocumental minucioso se justifica. Quando retorna ao íntimo, reina a inoperância. Um filme-sintoma que tenta operar na superfície, mas que permanece sobrecarregado demais para fazê-lo. Que seu circuito fechado pressupõe uma prisão do cinema observacional brasileiro é sua maior contribuição.
O confronto é direto em A Rosa Azul de Novalis. As suas credenciais autorais são mais óbvias, não só o codiretor Gustavo Vinagre é um dos nomes mais estabelecidos do jovem cinema brasileiro, mas os dispositivos os quais lançam mão sugerem uma sequência temática do seu longa-metragem anterior Lembro Mais dos Corvos. Novamente se propõe um encontro com uma figura marginal ligada ao universo LGBT que performa sua própria experiência e sua presença como figura de resistência num jogo de intimidade e encenação. Existem muitas diferenças entre Julia Katherine, a personagem de Lembro Mais…, e Marcelo Diorio de A Rosa Azul…, a começar por uma maior segurança social. Os momentos mais promissores de A Rosa Azul de Novalis são quando Vinagre e Carneiro buscam tirar Diorio da sua posição de conforto e lhe questionam justamente sobre a condição econômica, com o filme retornando de tempo em tempo a questão do trabalho e sua ausência, mas logo abandonando-o pelo exercício performático da personagem.
O filme versa sobre o cu como objeto de resistência política, o sexo anal a devorar a família brasileira conservadora. Diorio discorre sobre a própria família, suas contradições e hipocrisias, sobre os homens ativos com quem manteve casos. O personagem dá sempre uma demonstração de consciência e certeza do próprio poder e trabalha com inteligência a partir da figura do passivo efeminado fraco no imaginário homofóbico. Estamos novamente nessa batalha constante com o fora-de-campo, dessa vez enunciado de forma bastante direta. Haverá no filme mais encenações do que em Lembro Mais dos Corvos, mas a disposição de ator de Diorio sai da linguagem corporal para o trabalho de construção visual do filme com uma pobreza de imaginação constante (a sequência do velório do irmão é especialmente canhestra). O filme busca suas filiações artísticas nas figuras que seu personagem evoca como Hilda Hilst e Georges Bataille. O desejo como mediador dessa emancipação política, o ânus como forma de saída para a entropia da família brasileira, um desejo muito programático a despeito da presença de espírito de Marcelo Diorio. É notável como o filme se localiza num espaço de segurança. Por todos os fetiches que o protagonista descreve, por toda a conversa sobre daddies, petting e sexo explícito encenado, o filme se move com a certeza de que não vai tirar do eixo seu espectador-alvo. Só a vovó de Diorio, que temia que ele virasse um homossexual clichê, poderia se sentir atacada pelo filme e não é ela que vai ser pega numa sessão do Olhar de Cinema. Algo maior que isso pode prejudicar a performance do filme. O desviante aqui é fetiche e mercadoria. Enuncia-se um tesão que as imagens amortizam. Um pouco como nas cenas de sexo de Nova Dubai, que Vinagre realizara alguns anos antes, a promessa política se dissipa na transformação do sexo em mera coisificação (no anterior do cruising sobre a classe trabalhadora, aqui das formas alternativas de desejo como peça política). Vinagre e Carneiro reduzem o sexo anal político de Diorio a um totem de valor de uso não muito diferente daquele bancário que o personagem descreve lhe penetrar em certo momento. A política é resistência, mas também está sempre pronta para ser explorada pelo seu valor cultural.
A Rosa Azul de Novalis e A Cor Branca são ambos filmes que sugerem tanto um conflito quanto um desencontro com o tempo presente, suas imagens prometendo um retorno a tempos pré-impeachment. Esse retorno é ainda mais radical em Casa, um filme que por vezes sugere pertencer aos anos finais da hegemonia do lulismo. Trata-se de um documentário íntimo, voltado para a história familiar da diretora. Dessa premissa bastante conhecida, Letícia Simões traça a história da relação entre três mulheres: a própria diretora, a mãe Heliana e a avó Carmelita. O filme se movimenta o tempo todo entre as esferas íntima e histórica, com uma desenvoltura ausente nos outros filmes da seleção. O embate que nos outros filmes se dá sempre com um fora-de-quadro é trazido aqui para dentro da ação, briga-se com toda uma história do Brasil e sua marginalização de negros e mulheres, mas também com as marcas que isso deixa em cada uma das três protagonistas. Leticia Simões inclusive retraça a sua árvore genealógica até a tataravó e refaz o caminho das mulheres da família, da escravidão até a jovem cineasta a realizar o filme que vemos.
Há um jantar de Natal (este evento familiar por natureza) desastroso que impressiona pela disposição de exposição de Simões para com os ressentimentos entre elas. Heliana é uma das personagens mais fortes do cinema brasileiro recente, muito aberta sobre as suas dificuldades (ela é bipolar e sofre de depressão) e sempre disposta a manter o confronto. De certa forma, o filme é um digladiar entre o olhar afetivo de Letícia Simões e a postura dura da sua mãe. Não por acidente muito da tensão entre elas vem do desejo da filha de que a mãe perdoe e trate melhor a avó (“você não sabe o que Carmelita me fez passar”, Heliana se justifica). A família permanece sempre essa questão como nas frustrações de Heliana com a ausência de netos ou nas dificuldades que a diretora tem com uma mãe distante. É um lugar de retorno seguro, mas também um território de traumas. O título Casa sugere esta volta aconchegante ao lar, mas o filme tem dificuldades de existir nesse registro. As cenas de encenação do retorno à casa, da visita nostálgica de felicidade passada, são bem frágeis com um olhar afetivo poético que nunca alcança os resultados desejados. O duelo filha e mãe existe num espaço igualmente desigual. Letícia quer aparar as arestas das fraturas familiares, enquanto Heliana segue irredutível. A diretora, é claro, tem o controle do filme e Casa não esconde o seu desejo de caminhar para um final de conciliação. A sequência final, muito encenada, entre mãe e filha garante seus desejos. É paradoxal que um dos filmes que mais incorporam rupturas e tensões seja também, de todos os brasileiros da seleção do Olhar de Cinema, aquele (junto de Bimi Shu Ykaya, o outro filme no qual a realização é parte essencial do próprio discurso) que mais recusa a incerteza ao seu final. Se quase todos os filmes brasileiros se movem em direção a um abismo ou, ao menos, a um pós-filme nebuloso, cabe aqui a sugestão de novas possibilidades.
A contaminação pela incerteza aproxima muito as duas melhores ficções exibidas no festival: A Noite Amarela, de Ramon Porto Mota, e Enquanto Estamos Aqui, de Clarissa Campolina e Luiz Pretti. São ambos filmes de gênero com filiações bem claras: o primeiro, um filme de horror de jovens indo para a casa de praia e desaparecendo um a um; o outro, um filme diário/ensaio de trama romântica epistolar. São filmes que dão sequência a projetos pessoais bem coerentes e, de certa forma, são os filmes que esperaríamos de seus realizadores. Só que são ambos são tomados por um sentimento de mal-estar muito forte que apenas parcialmente pertence a suas narrativas.
Em A Noite Amarela, temos um grupo de jovens a passar um fim de semana na casa de praia, logo após o término do colegial, às voltas com algum tipo de monstro que nunca vemos e lhes recolhe um a um. Enquanto Estamos Aqui (título que faria sentido para ambos os filmes) mostra um brasileiro que vive ilegal há muitos anos em Nova Iorque e encontra uma mulher libanesa que recém se mudou para lá. De um lado o slasher metafisico, do outro o romance passageiro. Em comum, o mesmo sentimento de incerteza. O temor que os une é o futuro nebuloso. A passagem para a idade adulta, a dúvida sobre as possibilidades de permanência da conexão conquistada.
São dois filmes com um desejo forte de ficção. Se algo distancia Enquanto Estamos Aqui dos filmes com os quais abertamente se filia, de cineastas como Chantal Akerman, Jem Cohen e Jonas Mekas, é a maneira como abraça uma pegada ficcional. Por outro lado, apesar da estrutura epistolar com múltiplos narradores, cartas e mensagens, o miolo do filme é dominado pela voz off de Grace Passô que numa terceira pessoa poética media o encontro daquelas duas pessoas. A Noite Amarela faz uma aposta bem incomum na abstração. O temor permanece nebuloso, envolto em sombras, sempre do lado de fora do quadro, seguindo muito das regras esperadas do gênero – depois que a primeira jovem desaparece, por exemplo, o grupo se divide em pares, que se dividem em figuras solitárias pronta para desaparecerem. Desde as primeiras imagens, os jovens parecem marcados para o sacrifício por algum deus subterrâneo que vive ali a beira mar. A abstração, porém, corta essas mesmas expectativas: estamos num terreno próximo a Pulse, de Kiyoshi Kurosawa, com a solidão substituída pela incerteza.
Esse sentimento de transitório que é presente em ambos os filmes se traduz em um horror existencial. Os filmes operam numa narrativa em direção ao abismo não muito diferente dos documentários que abriram esse texto. Mas se lá se jogava o tempo todo com as informações que o espectador traz com ele para as sessões, nessas ficções trabalha-se com uma pregnância alegórica que torna impossível não se pensar o tempo todo no Brasil, mesmo que em Enquanto Estamos Aqui justamente se encene o exílio. No debate após A Noite Amarela, o diretor Ramon Porto Mota comentou que após co-realizar O Nó do Diabo, com seu cunho histórico-político, partiu para o filme novo com espírito diferente, tentando justamente se distanciar de tudo isso, trabalhando questões mais particulares e pedindo filiação ao cinema de Walter Hugo Khouri. Mas nas palavras do cineasta “não tem jeito, termina-se no Brasil”. O amor do casal e a chegada da idade adulta dos jovens são lançados contra um pântano conflituoso. Há uma agonia bem exposta nos dois filmes, a conexão interrompida de Enquanto Estamos Aqui, com seu amor que parece sempre em risco constante, e a contundência da constatação terrível do que é virar adulto no Brasil nessa virada de década em A Noite Amarela.
Enquanto Estamos Aqui é composto de imagens-diário que reforçam seu caráter transitório, imagens curtas de quem sabe que a estadia está próxima de acabar. Estamos em Nova Iorque, este espaço tão explorado pelo cinema e as artes, com uma melancolia outonal que nem sempre se articula com leveza (algo que também pode ser dito sobre a atmosfera opressora de A Noite Amarela, que tem um cacoete típico do cinema contemporâneo de festival fantástico de estender a mesma nota dramática ao longo da sua duração). Imagens roubadas quase por ser desfazer. News From Home (1977), de Chantal Akerman, é um ponto de referência inevitável, mas a angústia que Campolina e Pretti retiram dali é de outra ordem. O filme faz uma ponte inevitável com algumas das narrativas de exílio da retrospectiva que aconteceu no festival. O exílio naqueles filmes era político, enquanto aqui é econômico. Em filmes como Memórias de um Estrangulador de Loiras ou nos filmes de Raul Ruiz, presentes na mostra retrospectiva desta edição do festival, este afastamento do país é necessário e complicado, marcado por uma relação tempestuosa tanto sobre a terra natal quanto sobre a Europa. O desespero e amargura naqueles filmes é, por vezes, mais pronunciado, enquanto estamos num território mais prático aqui num misto de expectativa e insegurança sobre a vida nos EUA, mas aos poucos o filme desafoga numa impossibilidade que traz as mesmas questões à baila. Estamos aqui no momento, mas sabemos que não podemos ficar. Vive-se no enquanto. Wilson, o brasileiro, se sabe ilegal, e a narrativa traz o seu sentimento de paranoia, um não-pertencimento ao espaço que ocupa. O filme não está nem no Brasil, nem nos Estados Unidos: cabe a angústia de Wilson e seu amor por Lemis, uma existência nômade.
A Noite Amarela se passa na casa de praia e o filme se filia de forma muito direta a certo cinema de balneário brasileiro. Não aquele em que a praia é o lugar de chegada e libertação, mas aquele em que é o espaço de passagem, território dessa instituição “família de classe média brasileira” dos anos da ditadura militar. A casa de praia sempre foi no cinema brasileiro a jequice do milagre econômico de Médici virada de cabeça para baixo, uma demonstração de poder oco. A classe média esbanja a posse, mas morre na praia. Casas de praia nesses filmes tendem a ser espaço decadentes, algo cafonas, o drama que se encena lá tende a ser apocalíptico, sobretudo quando, como aqui, estamos no terreno do filme fantástico. O filme traz à mente obras esquecidas como Ninfas Diabólicas (1978), de John Doo, ou A Força dos Sentidos (1978) e Excitação (1976), de Jean Garrett. A praia aqui é o território não da catarse, não da ascensão a um novo lugar, mas do purgatório, de um julgamento final. Em A Noite Amarela se vai à praia para chegar no fim das coisas. É um espaço de dissolução.
Uma última similaridade entre os dois filmes é como fazem movimentos muito conscientes de retorno, que trazem com eles uma precisão de relato que as opções do filme até ali evitavam. Em A Noite Amarela, o filme é tragado por um flashback do grupo de jovens numa noite em Campina Grande, que empresta uma especificidade e autenticidade para a angústia que acompanhamos até ali. Opera-se contra o abstrato: se o monstro é a incerteza, o que se tem de certo é uma existência desesperadora e seu desejo de fuga. Já em Enquanto Estamos Aqui, o romance é quebrado quando Wilson precisa voltar ao Brasil para lidar com a morte do pai. O bloco que se passa no Brasil, descrito pela comunicação do casal em suspenso, é de dureza e ausência de possibilidades. Se até ali o romance se construía sobre uma lógica de tempo futuro incerto, aqui o futuro nem se anuncia. Em ambos os filmes, o retorno ao lar é também um movimento do purgatório ao inferno, mesmo que deva ser pontuado, no caso de A Noite Amarela, que a sequência se fecha num gesto de resistência de claro caráter de wish-fulfillment que complica o registro e lança-o também na direção da fantasia.
Enquanto Estamos Aqui se encerra com um epílogo que pontua um desejo de reencontro, enquanto A Noite Amarela vai até o fim na sua narrativa de desaparecimento. Há uma constante neste grupo de filmes como um todo que, com poucas exceções, é tomado pelo luto e pela derrota. A inoperância e imobilidade são constantes no filme político brasileiro recente (pode-se pensar em Era uma Vez Brasília, de Adirley Queirós, ou Os Sonâmbulos, de Tiago Mata Machado, para ficar em exemplos potentes). Busca-se com frequência encenar se não a derrota, um olhar atônito. Este olhar perplexo é ainda mais amargo nos filmes exibidos nesta edição do festival curitibano. O desejo do Olhar de Cinema de existir na contracorrente é, muitas vezes, frustrado pelos filmes que caminham para o abismo. O desejo de intervenção da curadoria fica claro na temática dos filmes, mas enquanto, por exemplo, na retrospectiva dos filmes exilados existe uma divisão entre obras que recolhem as feridas e aquelas de intervenção direta, entre os filmes novos a diferença entre resistência e abismo é tênue. A saída fica por conta da própria superfície das imagens. Neste momento em que o cinema brasileiro se sente ameaçado, o seu gesto mais político é o da existência.
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