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O despertar dos vivos

A primeira imagem de choque em O Nó do Diabo é a cabeça de um homem negro explodindo com um tiro de escopeta. O atirador é um homem branco. Logo em seguida, o mesmo matador acerta uma jovem negra pelas costas. Estamos apenas com alguns minutos e o filme já nos lança no turbilhão de assistir àqueles corpos abatidos sob o jugo implacável de um jagunço moderno. A que (e a quem?) valem aquelas imagens num filme brasileiro hoje? Da cultura de um país que historicamente não se resolve (e talvez nunca o faça) com a herança escravista e que mantém anualmente altos índices de assassinato da juventude negra, poderia-se esperar que a ficção tentasse se aproximar desse histórico genocida, tal como faz (para mal e para bem) o cinema norte-americano, o alemão e o italiano com ecos de  Guerra de Secessão, Vietnã, 2ª Guerra e Holocausto. Não é, porém, o que acontece. Quando o cinema brasileiro o faz, é na chave da culpabilização e da má consciência, ou de mecanismos perversos de sedução fetichista, como Daniela Thomas em Vazante, para pegar um caso exemplar e na crista das discussões pós-Festival de Brasília. Na dúvida (ou desinteresse) do que ou de como abordar a escravidão, a ficção brasileira prefere o silêncio. Ou preferia.

Voltando aos choques iniciais de O Nó do Diabo: nenhuma imagem existe fora de seu contexto. A violência dos primeiros minutos de filme é a escolha de representação que dá partida ao périplo mais geral de uma viagem através de um histórico escravista de 200 anos que, de sua origem até aqui, vai culminar na cabeça explodida do homem negro. Como escreve Jacques Rivette no ultracitado “Da abjeção”, texto de 1961: “Digamos que fosse possível que todos os temas nascessem livres e iguais em direito. O que conta é o tom ou a ênfase, a nuance, como quisermos chamar – ou seja, o ponto de vista de um homem, o autor, mal necessário, e a atitude desse homem em relação ao que filma e, consequentemente, em relação ao mundo e a todas as coisas”.  Em O Nó do Diabo, o tom é de horror, tanto o horror “real” (que nos remete ao mundo ao redor, aos registros jornalísticos, aos acontecimentos tornados oficiais dentro da grande história do mundo) quanto o horror “artístico” (o construto de linguagem e convenções que estabelece a narrativa de gênero reconhecida com facilidade). O desafio do filme é equilibrar, na corda bamba, dois imaginários do horror que têm como base a violência contra os negros no Brasil desde… Bem, desde sempre.

O “mal necessário” (na noção de Rivette) de O Nó do Diabo são quatro jovens cineastas que assinam o que o filme delimita como episódios: Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi. Dizemos que o filme delimita os episódios porque, de fato, são narrados cinco contos de 25 minutos, cada um sob uma direção (Ramon Porto Mota dirige o primeiro e o último), separados discretamente por legendas em vermelho que localizam o ano de cada história (2018, 1987, 1921, 1871 e 1818). Originalmente uma série de TV, O Nó do Diabo tem na separação de capítulos um de seus trunfos. O recurso lhe permite alcançar a concisão com que aborda cada segmento e a ideia crescente de que o espectador assiste a um amplo (e às vezes épico) panorama dos horrores escravistas contado em ordem decrescente de cronologia. Inicia-se em 2018 (ano ainda por vir, nebuloso desde já por suas implicações eleitorais ainda em suspense) e termina-se em 1818 (primeira década da chegada da Coroa Portuguesa ao Brasil, num movimento da metrópole em relação à colônia que definiu os dois séculos seguintes). Sem se ater a algum acontecimento determinado da historiografia brasileira sobre escravidão, o filme se limita ao trânsito por um casarão (e arredores) fincado num terreno antes usado para plantação de jurema (planta usada em rituais e cerimônias de matriz africana e indígena) que se tornou cemitério de escravos e posteriormente a morada do clã Vieira, constantemente sacrificando pessoas negras com o passar das décadas.

Assim como a primeira imagem de choque da abertura, os segmentos têm seus contextos relacionados entre si. Manter um episódio isolado de outro – ou até posicioná-los em ordem diferente – poderia alterar o sentido de O Nó do Diabo. Pois se o primeiro segmento mostra o casarão semi-destruído, cercado por comunidades formadas nos morros ao redor e um jagunço a circular com a missão de espantar “invasores”, o quinto segmento tem a casa como refúgio de um grupo quilombola e cenário de uma resistência movida a sangue e corpos mortos que se levantam para lutarem contra o ataque dos verdadeiros zumbis, homens brancos sedentos por carne que querem invadir a propriedade. As três histórias do miolo sustentam o sentimento de que estamos a ver uma narrativa dividida em recortes que amplificam o significado coletivo – e nisso a presença onipresente de Vieira (Fernando Teixeira) em todos os capítulos estabelece um tipo vilanesco à altura do pesadelo que se quer registrar. A cabeça baleada no começo não está separada da moça chicoteada mais adiante, e os fantasmas que atormentam o matador vêm daquele passado delirante do escravo que foge com o bebê morto pelas montanhas do interior paraibano.

Modular o filme pela qualidade de um ou outro segmento é cair no risco de diminuir a estruturação de O Nó do Diabo a um mero exercício de historinhas sendo contadas, quando (inadvertidamente ou não) sua força está no fio único que puxa toda a engrenagem e, mesmo afrouxando num ou noutro momento, não se deixa arrebentar. “Fazer um filme é, portanto, mostrar certas coisas e, ao mesmo tempo, e pela mesma operação, mostrá-las por um certo viés”, aponta Rivette no mesmo “Da abjeção”. As escolhas do quarteto de O Nó de Diabo é bastante evidente: falar de escravidão através do “horror artístico” (expressão do filósofo Nöel Carroll) e, com isso, acessar o tema filtrando-o pelas operações de um referencial cinematográfico que, devidamente codificado, possa atingir as sensibilidades com um misto de cálculo e instinto. “Lidar com gênero é necessariamente organizar o conhecido, de uma maneira inventiva, para produzir reação consciente e inconsciente”, aponta Juliano Gomes, num texto aqui na Cinética sobre Corra!, de Jordan Peele.

O risco maior de alguns mecanismos do horror é eles serem usados na fetichização do que se quer detectar. Uma ida ligeira ao dicionário (Houaiss, no caso) nos define o fetiche: “Qualquer objeto, geralmente peças do vestuário, ou parte do corpo que se acredita apresentar qualidades mágicas ou eróticas”. Sempre há, então, a possibilidade de erotização de uma certa imagem de violência, a que provoca gozo ou satisfação pela simples exploração daquilo que a torna violenta. O estupro de Alex (Monica Bellucci) em Irreversível (2002) segue como um tipo de ápice moderno da fetichização, assim como os mais de três minutos, em plano-sequência, das chibatadas em Patsey (Lupita Nyong’o), numa cena à época celebrada por sua suposta virulência denuncista em 12 Anos de Escravidão (2013). Nos dois casos – e em tantos mais -, o prazer é buscado pela destruição dos corpos, e esse prazer em geral tenta se justificar pela “eficiência” em transmitir o horror mais próximo possível de um sentido de identificação com o espectador. O engodo está nessa tal identificação e na tentativa de compartilhar o sofrimento. Porque, pela imagem, o sofrimento jamais será compartilhado, sob nenhuma instância, tal como ele se deu. Não se fala aqui do “irrepresentável” (conceito amplamente discutido e problematizado), e sim da impossibilidade de se aproximar, pelas vias convencionais ou ditas realistas, da representação. São necessários outros caminhos.

E aí voltamos a Rivette, uma última vez: “Existem coisas que não devem ser abordadas  sem temor e tremor; a morte é, sem dúvida, uma delas. Como, no momento de filmar uma coisa tão misteriosa quanto a morte, não se sentir um impostor?”. Esse conceito de morte pode ser expandido para a destruição dos corpos negros em O Nó do Diabo, que encontra resposta na resistência de alguns dos corpos no filme de não serem destruídos. Ao filmar o horror, os quatro diretores escapam do fetiche ao não tirarem beleza ou excitação das imagens. A garota chicoteada pelo senhor de engenho é filmada à distância, na penumbra, numa cena que mais nos assombra o imaginário do que explicita suas chagas (não existe o sol a pino e os efeitos digitais de sangue no ar como em 12 Anos de Escravidão). A máscara de flandres colocada no rosto de um trabalhador negro remete ao horror a que ela se relaciona e é tratada como tal pela atmosfera quase fúnebre do filme. A dor provocada por essas imagens em quem as assiste não surge de um processo de aproximação ou identificação, de compreensão ou didatismo, e sim da constatação de que aquela dor é permanente, de que ela ultrapassa a alegoria do filme e ocupa o mundo cá fora. Um filme não muda o status quo (alguns, na verdade, até o reforçam), mas um filme como O Nó do Diabo reconfigura as narrativas no intuito de fazer o status quo pelo menos balançar.  

A tomada de narrativa que o filme propõe aos personagens negros se manifesta na discreta mudança de pontos de vista que os segmentos estabelecem a cada história. Se o primeiro capítulo acompanha as fantasmagorias do mercenário branco assombrado pelo passado violento da casa (e os únicos negros em cena são assassinados barbaramente), do segundo capítulo adiante o ponto de vista se desloca cada vez mais aos personagens negros, num movimento constante e crescente de ocupação completa do território da ficção. Isso tem um efeito catártico poderoso, e também uma constatação inerente à escolha do filme por começar em 2018 e terminar em 1818: o protagonismo do negro aumenta, em retrospecto, pela resistência e sobrevivência, tendo sempre que avançar ao desafiar o sistema imposto por uma indústria racista e opressora. “O direito à ficção [negra] é algo ainda a ser conquistado plenamente”, vaticina Juliano Gomes, ainda no texto sobre Corra!.

Basta pensar na relação de O Nó do Diabo com a tradição dos filmes de zumbi, presente no capítulo derradeiro. Antes de George A. Romero aparecer e mudar tudo com A Noite dos Mortos-vivos (1968), as narrativas com zumbis preponderantemente se fincavam na ideia de que os mortos deviam se levantar para servirem aos vivos, e essa ressurreição quase sempre se dava sob o ponto de vista colonial do Ocidente às tradições africanas. Filmes como Zumbi Branco (White Zombie, Victor Halperin, 1932) e A Morta-Viva (I Walked with a Zombie, Jacques Torneur, 1943), para além da importância histórica, reforçaram o exotismo de um Caribe onde pessoas se levantam da tumba para servirem a outras, quase sempre causando todo tipo de transtorno aos “pobres-coitados” ocidentais que por lá se aventuravam. Em O Nó do Diabo, mortos também se levantam, mas desta vez são negros convocados a enfrentar os brancos que querem exterminá-los, nos instantes finais de um filme cuja primeira imagem de choque foi a do homem negro atingido por uma bala.

Recentemente, um outro filme de horror, O Diabo Mora Aqui (Rodrigo Gasparini e Dante Vescio, 2015), arriscou tratar a herança escravista brasileira, mostrando um ex-escravo se levantando do túmulo para dar seguimento à maldição que mantinha preso o espírito de um fazendeiro branco e violento. O filme, porém, se punha devedor demais das convenções mais clichês do gênero, tendo a questão do negro como propulsora de cenas de assombração que não se soltavam de seus referenciais para efetivamente tomar para si o poder da ficção. Que O Nó do Diabo de certa forma inaugure o filme de terror ambientado na escravidão com tamanha expressividade e consciência de sua forma e suas consequências – depois de décadas e décadas de uns poucos filmes que tratam do assunto, ora pelo melodrama de fachada (Sinhá Moça, de Tom Payne, em 1953; Vazante, de Daniela Thomas, em 2017), ora pelo aspecto idealizado de uma aventura da libertação (Cacá Diegues com Ganga Zumba em 1964 e Quilombo em 1984) ou mesmo pelo fetichismo publicitário (Besouro, de João Daniel Tikhomiroff) – aponta um princípio de caminho a ser acompanhado com atenção e interesse.


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