Ventura zumbi

janeiro 25, 2016 em Em Pauta, Rafael C. Parrode

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por Rafael C. Parrode

 

“Nossa vida continuará complicada
Nós continuaremos caindo do terceiro andar
Nós continuaremos sendo cortados pelas máquinas da fábrica
Nós continuaremos com dor de cabeça e dor de pulmão
Continuaremos queimados,
Loucos…
E todo o mofo na parede das casas…
É assim que continuamos e viver e a morrer
Essa é a nossa doença.
Se você não me matar primeiro com uma faca…”

Tito Furtado em cena de Cavalo Dinheiro

“É um lugar no mundo, o nosso mundo; todos nós já vivemos lá. Assim, enquanto se abrem todas as vias pela natureza, ela é estritamente delimitada e até mesmo fechada: sagrada no sentido antigo, separado. Há, ao que parece, antes de iniciar a ação do livro ou o interrogatório do filme, que a morte – uma certa forma de morrer – fez o seu trabalho, introduziu uma inércia mortal. Tudo lá é vazio, falta, em relação às questões da nossa sociedade: falta, no que diz respeito aos acontecimentos que parecem ocorrer lá – refeições, jogos, sentimentos, linguagem, livros que não são escritos, não são lidos, e até mesmo noites que pertencem, em sua intensidade, a uma paixão já extinta.”

Maurice Blanchot, “Destroy”, sobre Détruire Dit-Elle, de Marguerite Duras

Os zumbis se tornaram parte do imaginário ocidental no início do século XX, com a ocupação americana no Haiti. As práticas de vodu e magia negra surgem da tradição e do folclóre dahoman, povo originário do oeste africano e levados séculos antes para o Haiti e outras ilhas caribenhas, para o comércio de escravos após a colonização portuguesa. Entidade quimérica, ambígua, invulnerável, os zumbis eram originariamente dotados de duas formas e interpretações distintas no folclóre vodu: a do corpo semi-vivo, materializado, que renasce dos mortos a partir de alguma feitiçaria ou magia (corpo sem alma); ou a de um espírito que vaga à noite para visitar os vivos (alma sem corpo). É claro, a versão que causa fascinação, suscintando especulações científicas e místicas, diz respeito ao corpo físico morto, enfeitiçado, do zumbi. Os fantasmas, seres plasmáticos, inconstantes, podem facilmente desaparacer, enquanto o corpo materializado, moribundo, infeccioso e escravizado é eterno. É a metáfora da escravidão que ultrapassa a morte.

Para o Ocidente, a figura do zumbi se torna, então, um arquétipo, uma metáfora dos povos colonizados, representação do mal-estar, da malaise tropical, da selvageria e da resignação do terceiro mundo, que deveria ser combatida para que o progresso, a civilização e a modernindade pudessem enfim serem instauradas. A invasão dos zumbis diz respeito à diaspora dos povos desterritorializados pelas guerras civis principalmente na África e no oriente médio. Representa a invasão do outro, daquele que ameaça a propriedade privada, a ordem e o progresso. Nesse processo de aculturação, a figura do zumbi – massificado pela indústria cultural americana, se tornando um dos mais celebres monstros do gênero de horror, primeiro na literatura, e mais tarde no cinema –  serviu a diversos propósitos político ideológicos, em boa parte assumindo o seu caráter mais reacionário, em outras se tornando um elemento incendiário  e subversivo contra o capitalismo e o colonialismo estabelecido. Casos como I Walked With a Zombie (1943) de Jacques Tourneur, e os filmes de George Romero são terrenos onde os zumbis adquirem sua mais terrível e transformadora ambiguidade: em Tourneur, no embate entre racionalismo científico versus superstição e misticismo, onde as respostas não são dadas por nenhuma das vias; em Romero, na humanização do corpo morto e colonizado dos zumbis, promovida paralelamente a distopias apocalípticas anticapitalistas, onde os zumbis seguiram cada vez mais conscientes de seu papel revolucionário e trágico.

 I Walked With a Zombie (1943), Jacques Tourneur

I Walked With a Zombie (1943), Jacques Tourneur

Cavalo Dinheiro de Pedro Costa oferece uma outra perspecticva do corpo político do zumbi. Tanto na construção da personagem de Ventura – moribundo, trêmulo, de silhueta grave, magra – quanto na articulação de diversos elementos do gênero que intensificam a atmosfera sombria que compõe o filme. Pedro Costa, além de atribuir ao zumbi Ventura sua aura mais poética e fantasmática, traz toda uma carga simbólica que ressalta toda a mítica histórica e política do colonialismo, da diáspora dos povos africanos para a Europa e América, da sua opressão e segregação. Em Cavalo Dinheiro, mais especificamente, as memórias de Ventura dizem respeito à opressão militar que começa com a cooptação de imigrantes africanos para integrar o movimento das forças armadas durante a Revolução dos Cravos que visava instaurar a democracia em Portugal no 25 de abril de 1974, até a repressão e caça aos imigrantes ilegais pelas forças policiais e militares dos dias de hoje.

A construção do tempo e do espaço em Cavalo Dinheiro se reveste de uma ambiguidade subversiva, cara tanto aos elementos do terror enquanto gênero (Todorov e os princípios elementares que constituem o fantástico: “Há um fênomedo estranho que se pode explicar de duas maneiras, por meio de causa de tipo natural e sobrenatural; a possibilidade de se hesitar entre os dois criou o fantástico”), quanto à própria visão do mundo contemporâneo, onde presente, passado e futuro se alinham, restituindo suas condições mais brutais e violentas. No primeiro plano do filme, a câmera atravessa um cômodo antigo e passa por uma pintura de o que poderia ser Ventura aos 18 anos, até chegar a a uma espécie de calabouço onde vemos ele já velho, esquálido, atravessar o portão rumo a algum tempo indefinível. Esse movimento sutil mas poderoso dá conta de toda a expressividade de um corpo histórico e político repleto de marcas e traumas profundos.

Narrativamente, Costa se imbrica nas elipses, flashbacks e na voz over, num estado mental e psicológico de Ventura que remetem aos experimentos de perspectiva e ambiguidade de Tourneur em I Walked With a Zombie. Assim como no filme de Tourneur, os diálogos emergem mais como comentários sobre acontecimentos passados, rememorações aqui transformadas em prosa, narrativas verbais daquilo que levou cada personagem àquele lugar, sobre seus entes, suas famílias – há um único flashback no filme de Costa, quando soldados capturam e massacram imigrantes que tentam atravessar a fronteira, momento que leva todos os personagens aquele hospital à deriva; único momento de materialização imagética do horror e da brutalidade que se escondem nas fissuras da memória.

Tal como Jessica, a morta viva, ou o Carrefour guardião do portal para o mundo dos mortos do filme de Tourneur, Ventura também parece imerso num mundo obscuro, regido pelo enigmático e pelo mistério. Não se sabe se ele está internado num hospital em estado terminal, ou se ele é apenas um espírito que vaga por calabouços e ruínas, entre o mundo das memórias, dos vivos e dos mortos, entre passado, presente e futuro. Esse transito entre as fronteiras do humano, caras ao cinema de Tourneur (o homem e o animal; a morte a vida; sanidade e loucura; o selvagem e o civilizado; lei e crime; homem e mulher) parece servir de esteio para que Costa adicione novas camadas a sua narrativa, complexificando ainda mais o que poderia ser apenas uma extensão e conclusão de seu trabalho etnográfico com os imigrantes cabo verdeanos em Portugal, e criando uma obra tragicamente poética, expressionista e sobrenatural, que se destaca dos filmes anteriores pela forma como esse Ventura mítico, aprisionado pela memória e assombrado pelo presente/passado, se liberta do purgatório da história, interrompendo o ciclo de exploração que o reduz a um corpo colonizado e massacrado. Ao mesmo tempo, formalmente o filme se abra de forma ainda mais direta à subejtividade de Ventura, se livrando de algum resquício conceitual que pudesse assombrar outros filmes de Costa.

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O fantasma militarista que vagueia pelos ambientes soturnos de Cavalo Dinheiro carrega um peso histórico também caro a alguns outros filmes de zumbi. Especialmente em Dia dos Mortos (1985) mas também em Terra dos Mortos (2005), ambos de Gorge Romero, onde, num mundo dominado por zumbis, um grupo de cientistas e militares se refugiam em uma base abandonada, tendo de lidar com suas diferenças política e ideológicas que ameaçam suas sobrevivências. Os militares garantiriam a segurança dos médicos enquanto eles deveriam encontrar uma cura que pudesse reverter os efeitos da infecção zumbi. Nesse filme, Romero faz possivelmente sua mais complexa revisão do mito zumbi, iniciada em 1968 com o seminal e incendiário Night of the Leaving Dead, cuja cena final devolve ao mortos vivos toda a sua carga de representação política, subvertendo as interpretações colonialistas disseminadas pela cultura ocidental e reapropriando-a como movimento libertador das massas diante das ameaças imperialistas. Os cientistas (o racionalismo e o pragmatismo do médico em I Walked With a Zombie e em Cavalo Dinheiro) de Dia dos Mortos percebem que a única forma de convivência pacífica seria através da domesticação, do condicionamento mental, enquanto que os militares (a truculência e a violência da escravidão em Tourneur e o exército das forças armadas em Costa) acreditam que a única forma de sobrevivência é o aniquilamento de todos os mortos vivos e de quem mais lhes opor. Os zumbis, por sua vez, começam a perceber seu papel naquele jogo de forças entre racionalismo e truculência, e a partir daí inciam uma tomada de consciência sobre seu lugar no mundo.

A figura do soldado em Cavalo Dinheiro carrega uma aura ainda mais cínica, especialmente na cena em que Ventura, dentro de um elevador, enfrenta o espírito de um soldado aprisionado em uma estátua dourada que tenta lhe dissuadir a se juntar a uma nova revolução, 37 anos depois daquela onde eles se encontraram pela primeira vez. “Eu não consigo mais carregar sacos de cimento” diz Ventura. A cena de exorcismo performada por Ventura traz à tona um confronto político e ideológico, expondo os processos autoritários de controle do poder em Portugal e na Europa. Toda uma violência simbólica direcionada aos imigrantes que deram suas vidas pela revolução e foram privados de compartilhar de suas benesses reaparece nesta sequência: “Você está do lado do povo ou do lado da revolução?”, indaga o fantasma do soldado.

Dia dos Mortos (1974), George Romero

Dia dos Mortos (1985), George Romero

Tanto em Romero quanto em Costa, o corpo dos marginalizados se inscreve como artefato humano, político e histórico e apenas a tomada de consciência pode demover este estado de coisas. Não se trata necessariamente da tomada de consciência revanchista de Bub contra o coronel Rhodes em Dia dos Mortos (talvez a referência a Big Daddy de Terra dos Mortos seria mais apropriada), mas da constatação de que o trauma colonialista só pode ser vencido a partir da morte do opressor. Assim, nesse fluxo, nessas pulsões entre morte e vida, corpo e alma, sujeito e objeto, nesses enlaces com o cinema de gênero, com a narrativa clássica reposicionada e reimaginada diante da magnitude da figura e da história de Ventura (e de todos os povos explorados, subjugados e colonizados) Pedro Costa consegue lidar com todo um imaginário raramente alcançado pelo cinema, onde as imagens produzem tantos ou mais significantes que se pode querer lhes atribuir, envoltos de uma núvem anfibológica, imprecisa, que potencializa seu peso trágico e iluminador. Cavalo Dinheiro é daqueles filmes cujo mistério e a incompletude das imagens lhe emprestam dimensões ainda mais potentes e transformadoras. Para Pedro Costa, não se trata de filmar a morte do corpo de Ventura, mas sim do renascimento de seu espírito, da sua alma que agora vaga livre pelo mundo.

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