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Vaga carne, ou, a paz veste branco

Confesso que o horizonte critico no qual muitas vezes me baseio como critério pode ser resumido pela “invenção de novas formas”, pela expansão de um repertório expressivo de produção de experiência. Com esses olhos, Corra!, de Jordan Peele, pareceria um filme decepcionante. O que faz dele um marco na história do cinema americano, e também um paradigma sobre a experiência negra nos países colonizados, é sua incomum habilidade de organizar o passado, uma porção determinada de já-conhecido, e produzir daí algo talvez sem paralelos. Mais do que trabalhar o já visto, o mérito do longa de estreia de Jordan Peele é melhor descrito pela perspectiva singular que consegue, com muita eficiência, aliar presente e passado. Get Out – no original – vai além da tarefa alegórica e de fato narra duas histórias ao mesmo tempo, para revelá-las uma só: na medida em que seu filme é um estudo sobre a sobrevivência da escravidão na América neoliberal pós-2008, ele estabelece com a premissa da estrutura dramática do sobrevivente um insuspeito paralelo entre moldura do drama e processo histórico subjetivo.

Em um contexto cuja grande questão política parece ser o desafio da agregação não consensual, da concepção de uma coletivização das lutas por uma situação de redução das desigualdades históricas, Peele aparece quase do nada como um exímio construtor de pontes. No seio da indústria do cinema americano, o diretor deixa seu nome marcado como autor cinematográfico a partir de uma caligrafia extremamente consciente de seu próprio repertório, e de seu lugar dentro dele, como estratégico inventor. Uma das camadas que parecem mais evidentes de Corra! é sua função de autocomentário, no sentido de uma narrativa contada pelos olhos de um negro numa casa de brancos – situação de Chris, o protagonista vivido por Daniel Kaluuya, e também de Peele, como cineasta na indústria. O filme opera fundamentalmente sobre as camadas que constituem o olhar: o olhar de 2017; o de 1950; o de 1850; o do branco; o do negro; o do espectador multiplex; o do ativista, entre outros. É por meio destas camadas que teremos a descrição da escravidão e seus desdobramentos, e também este comentário sobre a situação de um diretor negro fazendo um filme politicamente ambicioso, compromissado com a cartilha do entertainment, além de um incisivo comentário sobre o legado ou mesmo sobre a figura de Barack Obama. Uma descrição justa para o centro expressivo do filme talvez resida na tarefa de organização deste olhares, ativando-os todos, sem aplainar suas divergências.

A abertura do filme nos joga numa vizinhança icônica de suburbs americanos, onde um homem negro caminha buscando um endereço desconhecido. Ele está desorientado com ruas que têm o mesmo nome e não favorecem alguém que “vem de fora”. Em um longo plano-sequência, uma carta de intenções já se revela: eficiente produção de expectativa e condução dramática; inversão de elementos tradicionais do cinema de gênero (personagem negro com medo, que aqui não é só o “primeiro a morrer”, numa vizinhança branca); e a indicação de um ambiente onde o corpo negro autônomo é inaceitável.

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Curiosamente, a cena faz um estranho par formal com a abertura de Moonlight (2016), de Barry Jenkins. A diferença do que cada um dos planos-sequência virtuosos produz revela a fissura radical que separa os dois filmes: a firmeza focada na descrição do horror cotidiano em Jordan Peele, e a busca autofágica e autocomplacente por um matiz romântico-arthouse-impotente em Jenkins. São duas formas distintas de abordar a dívida expressiva do olhar negro para e na América. No filme premiado no Oscar 2017, a tentativa progressista concebe justamente a embalagem mais sofisticada para o mais batido imobilismo. Na vertente mais irônica e “barata” em termos de repertório formal, Corra! implode texto e subtexto, criando um dos mais intensos golpes da história do cinema sobre o escravismo como sistema e seus modos de sobrevivência. Neste sentido, é uma grande e rara oportunidade para nós, brasileiros, refletirmos sobre nossa experiência colonial e sua vigorosa sobrevivência também por aqui – para ambos a convivência com a escravidão é rigorosamente violenta e persistente.

Parte do achado dramatúrgico de Peele é que, para um negro do continente americano, a matéria que o filme torna motor do horror é justamente um conjunto de fatos cotidianos. Acabado o filme, tudo vai recomeçar no hall do cinema, com os funcionários terceirizados, com a próxima viatura ou vernissage. A narrativa opera justamente sobre essa cisão que separa o filme ativista do entretenimento eficiente, o cinema negro do cinema branco, a descrição sobre o presente da investigação sobre as plantations e engenhos. “Sair fora” da sala será fatalmente reencenar algo do que acabamos de (re)ver. O feito do diretor é desenvolver-se através dessa habilidade de aliar, sem baixar a intensidade em nenhuma direção, o que caracteriza os grandes feitos da arte, dentro e fora de gêneros específicos. Corroborando com a camada metafílmica, Peele é uma espécie de cérebro negro dentro de um corpo branco, que desfruta de uma “passabilidade” branca (dirigir com autonomia um filme de gênero nos Estados Unidos), que entende perfeitamente que intensidade dramática reside na precisão com que combinamos o passado com a atualidade.

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Não só um artista, o protagonista de Corra! é um documentarista. Na abertura do filme, vemos suas fotos, cenas de rua, e seu apartamento (sem nenhum sinal de escassez, nem de luxos). Há aqui uma leve ironia, na medida em que o establishment branco liberal, em sua bondade domesticadora, abre gentis espaços discursivos para as narrativas negras que sejam da ordem do relato, testemunho, e não da ordem da imaginação deliberada, como atestam acontecimentos recentes em relação à obra da Carolina Maria de Jesus, ou à recepção “documentalizante” dos filmes de André Novais. O direito à ficção é algo ainda a ser conquistado plenamente. Em Corra!, a presa da máquina escravista é um negro que organiza e mostra o que vê, alguém que está no mundo e que, através dessa experiência, inventa modos de expressão, a partir do que encontra. Se a descrição da atualização da mercantilização do corpo negro contemporâneo já é um mérito, aqui chegamos até o passo seguinte: a casa grande quer os olhos do negro para deles usufruir.

Aí chegamos na passagem que descreve a transição do escravo da colônia para o escravo supostamente “pós-colonial”. O primeiro tinha consciência de sua condição, e sua subjetividade, mesmo que constantemente suprimida por diversas técnicas corporais e subjetivas, ainda não tinha se tornado plenamente uma mercadoria de tal rentabilidade. “Preto está na moda” diz um dos senhores da feira de escravos que é centro deslocado para o primeiro ato do filme. Está na moda em Hollywood, inclusive, assim como o ativismo – desde que não pense e aja sobre os processos que estruturam sua marginalização historicamente. A “branculência” neoliberal 2.0 quer tudo, e não parece haver melhor apresentação para este estado de coisas do que um galerista cego, que conhece o trabalho de Chris, revelando este parentesco entre economia ultraliberal e as instituições artísticas tradicionais. Hudson (Stephen Root), o cego, aquele que não veria “diferenças de cor”, não quer só a musculatura de Jesse Owens ou as ereções de Kid Bengala; ele quer ver “através dos olhos” de Chris.

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Não por acaso, a forma do encarceramento de Chris é um sala de TV tradicional de família branca dos baby boomers do pós-guerra americano, onde as formas do novo capitalismo começaram a ser gestadas, junto com este novo e eficiente aparelho de imagem e transmissão de doçura. O “sunken place”, prisão subjetiva que a hipnose dos brancos usa para imobilizar os negros, é um lugar escuro com uma tela ao longe. Em mais esta metáfora bastante direta, observamos que o encarceramento para “dentro de si” é uma platéia. O escravo do século XXI é um espectador de si, com a indignação impotente típica de quem não transforma percepção em ato ou formulação, sujeito à permanente trans-plantation de cérebros.

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Dentro da indústria, Peele aceita o duelo de doar seus olhos, na esperança de não perdê-los para sempre. Se depender da já citada cena que justifica todo o filme (sugerindo um gesto sabotador em relação à estrutura da catarse do gênero) – a do bingo/mercado de escravos – Corra! consegue a proeza de materializar o cotidiano negro médio como matéria de horror na forma das micro-agressões do dia-a-dia. Desde a forçação de barra de usar gírias de gueto, e todo o tipo de tosco teatro social relacionado, até o acesso irrestrito ao corpo negro, pegando no cabelo e nos membros exatamente como um objeto, como material com acesso liberado – tudo isso revela tal assustadora duplicidade. O tom semi-farsesco adotado aqui nutre esse parentesco entre o mais prosaico e o completamente inacreditável, que caracteriza a permanência diária dos procedimentos da escravidão, em especial nos contextos de “docilidade”. Tal distinção é um gesto decisivo. Por mais que a polícia introduza a série de açoites, o grande feito dramático é a justíssima descrição da aliança entre escravocracia e ambientes de polidez, fala mansa (Catherine Keener, a mãe da namorada branca, sendo a grande agente deste tom), civilidade, essa atmosfera de pacificação. Na missão poética das alianças de Peele, narra-se o matiz do escravismo liberal 2.0. Ele é exercido sob um eficiente véu de correção, de uma certeza de estar do lado certo da história – e esta talvez seja sua principal marca, este desejo de des-implicação, de des-responsabilização, “quero sair fora” disso, pensam os “brancos conscientes” que “não querem ser racistas”. O refrão “meu pai teria votado no Obama a terceira vez se pudesse” é a face mais escancarada do status quo liberal da branquitude como processo de poder e coerção multiforme. Seria demasiado simples caracterizar essas pessoas na sala de jantar como fervorosos republicanos proto-fascistas (“esses bárbaros”, diriam os equilibrados). Uma descrição precisa do escravismo como máquina política do século XXI precisa dos significantes de “sofisticação”, “cosmopolitismo” e “tolerância”. Aquele que viaja para Bali para “conhecer a cultura do outro” é quem ainda não engoliu o pódio de Jesse Owens nos anos 1930, que não suporta a “irracional” ideia de um fumante em sua presença. Poderíamos chamar de “sutilência” sua maneira passivo-agressiva de inventar normalidade, de agir e exercer poder sobre esses músculos escuros que eles ao mesmo tempo destroem e idealizam (o liberal é tarado por “campeões” e “superioridades”), maneira, essa, eficiente em sua agenda e invisível pela força do hábito. A paz veste branco. Toda negra que saiu do gueto já foi a esta festa.

A cena do leilão de Chris é central no filme justamente pela força comum e simultânea de texto e subtexto (até se confundirem um no outro). Esta tensão depende dos significantes de apaziguamento para ser exercida. É sob estas tintas que se constroem as duas verdadeiras presenças diretas do horror no filme, que são os escravos/empregados. O que assusta na constituição de sua estranheza é justamente a forma de sua docilidade e gentileza. Sua monstruosidade está na exposição da forma dos sorrisos esvaziados e na lentidão over de seus gestos. O seqüestro subjetivo da pessoa escravizada, aqui materializado nos personagens que tiveram seus cérebros trocados pelos de velhos brancos, produz gentileza, é uma fábrica infalível de paz. As nuances de interpretação e decupagem dos personagens de Georgina (Betty Gabriel) e Walter (Marcus Henderson) são onde o filme confirma mais evidentemente seu apuro. O negro drama está materializado nos seus corpos dessubjetivados, esperando por ativação, por alguma faísca que os desperte, mas cuja resistência é justamente nunca soarem “normais”. A personagem do “abobalhado” é uma figura constituinte desta grande narrativa, uma elemento clássico da caracterização do olhar branco sobre seus empregados. A sub-humanidade é uma possibilidade de se situar fora da norma, e pode então ser revertida em “contrabando” expressivo.

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A ligação entre zumbis, negritude e escravidão data pelo menos do início dos anos 1940, com A Morta Viva, de Jacques Tourneur. Peele retoma esta história corrigindo a incompreensão que leva a concepção do personagem do zumbi como uma má interpretação do estado de alteração daquele que transita em outros estados de consciência, em rituais religiosos. Aqui, estes zumbis, estas presenças alheias, se permitem incorporar, receber a si mesmas de volta, baixar em si próprios, como santos. Trata-se de restituição de si, mas sem desejar retornar ao estágio anterior, pois isto consistiria em nostalgia – ferramenta do imaginário psico-subjetivo neoliberal. Em seu persistente retrabalho sobre tradições, Corra! busca redesenhar este conjunto de significantes em sua fábula neoabolicionista. A fantasia e o horror são o chão deste trabalho de reimaginação do mundo e das formas de conhecê-lo – reinvenção também de algumas convenções do gênero horror.

No caminho de uma redistribuição do olhar, o trabalho de Chris coloca o equipamento da câmera como ferramenta dramática ativa. O corpo e objetiva materializam esta mediação que literalmente salva o herói, quando usada. Não havia negro nenhum para fotografar o assassinato de Emmet Hill, como houve para Rodney King, ou para os dois executados na Fazenda Botafogo, no Rio de Janeiro, neste ano. Todo movimento de resistência e sobrevivência negra hoje não pode prescindir das câmeras. É a imagem fotográfica e a comunicação com seu amigo Rod (Lil Hel Rowery) que desmantela a plantation contemporânea, essa aliança que altera o antigo jogo.

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A função de “alívio cômico” da presença de Rod, sua maneira de falar e mover-se que o caracterizariam como um negro “não sofisticado” (não apaziguado, se preferir), justificam a operação do filme em dar-lhe justamente o papel daquele que consegue intuir o esquema, compreendê-lo e solucioná-lo, apesar da descrença geral. Chris, por si só, é aquele que não quer acreditar – um refrão do filme são as diversas cenas em que os personagens negros são encorajados a não acreditarem em si, constituindo um certo estado autoparanóide. Chris tem a intuição certa, que se consuma no final, quando ele é perseguido na casa dos pais de sua namorada por uma espingarda carregada. Rod tem consciência histórica e intuição, isto é, pensamento sem linguagem, sem formulação pré codificada. É justamente isso que a fábula aponta e que a escravidão sempre mirou: apagar o passado, a história, desestimular os laços, as organizações e associações, desencorajando o pensamento autônomo dos negros. Tais técnicas nunca pararam de vigorar e só se sofisticam em instituições supostamente novas.

A presença do passado povoa toda a armação do filme. Desde a contagem infantil “um Mississipi, dois Mississipis” – estado-símbolo do genocídio negro do país – até mesmo o algodão – mercadoria central nas plantations – que salva Chris da hipnose, chegando à escolha por uma moldura de gênero, são estratégias neste sentido. Lidar com gênero é necessariamente organizar o conhecido, de uma maneira inventiva, para produzir reação consciente e inconsciente. O horror social como subgênero é justamente aquele que se dedica às experiências de violação que se constituem a partir da ação de grupos de indivíduos, do ser humano em sociedade anônima. Daí a importância de fazer um deslocamento para conceber o mais importante filme americano sobre a escravidão. A estratégia é deslocar-se do tempo certo. Aqui no caso, é esquivar-se do desejo arthouse, e recompreender todo o legado de Carpenter, Romero, Craven e também de Michaux, Van Peebles, Lee e Burnett, na exploração do horror da normalidade e a normalidade do horror.

Em seu ensaio rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência! (2016), Jota Mombaça diz:

“Escrevo agora para os brancos – para os homens brancos assim como para todas as gentes brancas – cuja brancura é menos uma cor, e mais um modo de perceber a si e organizar a vida, uma inscrição particularmente privilegiada na história do poder e uma forma de presença no mundo: nós vamos nos infiltrar em seus sonhos e perturbar seu equilíbrio. (…) Nomear a norma é o primeiro passo rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência, porque a norma é o que não se nomeia, e nisso consiste seu privilégio.”

Corra! quer, à sua maneira, em seu contexto específico “nomear a norma”. Tanto das convenções do cinema, do cotidiano e das formas de persistência da escravidão. Para isso, decide infiltrar a indústria, criar um produto que se provou lucrativo, para justamente “falar para os brancos” coisa que quase nenhum diretor negro conseguiu em grande escala antes. O flash de Peele/Chris, retomado de Janela Indiscreta (1954) como arma, pode vir a acordar alguém, que talvez venha a apossar-se de si mesmo, e daí desequilibrar a norma. Mas para desequilibrá-la é no mínimo muito útil ter pleno conhecimento e domínio dela (e de si). Esta é a estratégia da poética de Jordan Peele.

Para isso, o diretor escolheu encarar as ambiguidades de se localizar dentro dessa máquina publicitária para fazer um libelo sobre os mecanismos de destruição subjetiva como prática histórica, e travar uma disputa cara a cara com o poder, sem apaziguamento ou pacificação… partir para o confronto, abraçar a tensão e os estados do pathos como ferramenta anti-consciência-elegância-liberal. Correr o risco de suicídio (como fez Walter) parece ao menos uma opção autônoma, ao contrário da esquiva neoliberalizante da autopreservação eterna e parasitária, viciada no mesmo, nos seu velhos magnatas e CEOs enTEDiantes, vampiros de tudo que for vital.

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A aparição final da viatura é o atestado dessa dupla condição. A polícia salva o herói, mas não sem antes significar a mais profunda ameaça – um negro na estrada à noite, cercado de cadáveres, é uma situação que só tem um fim. É essa variação o verdadeiro trabalho expressivo aqui: revelar a cisão do ponto de vista para trabalhar na fina linha que o desenha, expondo a perspectiva variante que constitui a experiência racial, histórica e cinematográfica, exploradas em sua potência de invenção disruptiva.


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