Lições de História (Geschichtsunterricht), de Jean-Marie Straub & Danièlle Huillet (Alemanha/Itália, 1972)

setembro 1, 2016 em Dalila Martins, Em Vista

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Brecht, Straub-Huillet e os extremos da representação
por Dalila Camargo Martins

O filme Lições de História (1972), de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, é uma adaptação do romance inacabado Os Negócios do Senhor Júlio César, redigido por Bertolt Brecht entre 1937 e 1939, durante o exílio na Dinamarca, e publicado postumamente. O experimento histórico-satírico do dramaturgo consiste na narrativa da investigação frustrada de um jovem biógrafo acerca do verdadeiro Júlio César, “um modelo incomparável para todos os ditadores futuros”. Constitui-se por quatro excertos: I. A Carreira de um Rapaz Notável, II. O Nosso Chefe C., III. Administração Clássica de uma Província e IV. O Monstro de Três Cabeças. Os volumes de número ímpar funcionam como a cornija da trama, descrevendo os encontros do biógrafo com o banqueiro Mummlius Spicer para barganhar os diários de Raro, secretário de César, além da intervenção do jurista Afrânio Carbo, da entrevista com um camponês ex-legionário e das asserções do poeta Vástio Alder. Já os de número par apresentam as notas do diário adquirido, uma miscelânea das opiniões de Raro acerca da miséria de Roma, dos problemas financeiros do cotidiano de César e também de seus próprios assuntos amorosos relacionados ao desemprego sistêmico devido à implementação de mão-de-obra escrava altamente habilidosa.

À primeira vista, poderia-se constatar um percurso teleológico rumo à conscientização histórica, pautado em três estágios: primeiro, a suposição de que a história resulta das ações de indivíduos, o que validaria uma abordagem biográfica; segundo, a refutação desta suposição pelo confronto com fatos que contradizem a univocidade do herói; terceiro, a concepção materialista que ordenaria tais contradições de modo a revelar que a história se determina economicamente. Este seria o aprendizado almejado. Entretanto, o protagonista-narrador não completa o percurso, destila ceticismo com desgosto e permanece absorto em pensamentos ao final, sem se aproveitar da pluralidade de vozes para expandir seu horizonte, chegando mesmo à desaparição quando da anexação dos diários de Raro, sem nenhum comentário, como numa colagem modernista, abrupta e perplexa. O modo como o interesse de classes eclode é incidental, todavia crônico. E nada sobra do regime de identificação, pois o leitor não tem alguém a quem seguir em direção a uma conclusão; não há síntese, mas esfacelamento apaziguador. Pode-se até especular sobre as razões dessa narrativa dissoluta, justificando a interrupção do projeto literário pelo nebuloso contexto político enfrentado ao longo dos anos 1930, a adesão massiva ao nazismo, que fez Brecht perder sua audiência ideal e se tornar cada vez mais isolado e pessimista. Contudo, o ponto crucial é que tal distanciamento foi intervertido em forma, elaborado esteticamente. Assim, a grande questão de Os Negócios do Sr. Júlio César não consiste rigorosamente em minar a alegoria do imperador, personificada na liderança de Hitler, em prol de uma representação não falaciosa, comunista, senão em estranhar os mecanismos de consolidação deste tipo de culto e imaginário, demonstrando sua falência. E se desfecha uma pergunta no seio de uma evidência, nada se pode dar por garantido: esta é a primazia do real em plena atividade.

Apesar das estratégias de desmitificação e análise utilizadas por Brecht, muito se assume que o leitor tem como parâmetro unificador o viés autoral. Ou seja, persiste uma convicção de que haveria, sim, um impulso mimético satisfeito pelo romance, ainda que extrinsecamente. Como se Os Negócios do Sr. Júlio César não fosse um experimento solto e corrosivo, mas uma tese dada de antemão esperando para ser acatada. Em Lições de História, Straub-Huillet focam justamente nos efeitos surtidos no protagonista-narrador por esse tipo de “silenciamento” e, em consequência, na experiência em que o espectador então se inicia. Fazem-no por meio da coincidência entre hiato e ponto de vista fílmico. Isto é, a peculiar condição de superfluidade do protagonista-narrador se torna um dispositivo para mostrar quão liberadora uma narrativa pode ser, ultrapassando até mesmo os limites definidos por seus autores. E a forma nuclear que Straub-Huillet escolheram para tanto foi o posicionamento do biógrafo como personagem extemporâneo em relação aos demais. O jovem, vestido como no início dos anos 1970, período no qual se produziu o filme, vai ter com os quatro contemporâneos de César, todos em trajes da Antiguidade. Estas reuniões são separadas por três longos planos dele dirigindo pelas ruas de uma Roma também dos anos 1970, com a câmera instalada no banco de trás de um pequeno carro, acima da linha de sua cintura.

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Apenas devido à reiteração de tais planos-sequências se reconhece o jovem biógrafo como eixo do filme. Ele é o corpo que atravessa a narrativa e guia o espectador, conectando os espaços-tempos distintos. No entanto, quase nunca se pronuncia. A pedido de Spicer, conta o que sabe acerca do episódio de César a bordo de um navio pirata como refém, para logo ser corrigido. Interpela o banqueiro uma única vez mais. E indaga brevemente o camponês ex-legionário. De resto, observa e escuta sem reação precisa, por vezes austera. Ao se portar diante de Carbo, fica oblíquo à câmera, calado, passando ao fora-de-campo na mudança para o plano médio. Então, quando Alder se manifesta, sua presença invisível se torna mera convenção. Portanto, o papel de protagonista-narrador é reforçado só enquanto dirige. Mas mesmo aí o mecanismo de identificação tradicional é subvertido. A câmera no banco de trás enquadra o motorista à esquerda, de costas. O rosto se reflete parcialmente no espelho retrovisor, separado do corpo que executa a ação. Ainda que se vire para melhor dar marcha ré, a luz baixa torna discernível somente sua silhueta. O que se impõe à visão é um bairro proletário na periferia de Roma, através das duas janelas laterais, do vidro acima do painel e do teto solar aberto. Estabelece-se um vínculo entre dinâmica e estase: a câmera fixa registra uma imagem que parece se mover por causa da motricidade do lugar de onde ela opera. Refere-se, assim, por simulação, ao princípio cinematográfico, à técnica que cria a impressão de movimento pela sucessão de stills. E a postura do protagonista-narrador duplica a percepção do espectador, ambos sentados, percorrendo uma vista com atenção-distração. Eis, então, um curto-circuito que inviabiliza o desenvolvimento de uma trama, nulificando propósitos.

Mas tal vácuo possibilita o surgimento de outras sensações, sensações que não se submetem à lógica normativa de uma história absoluta. Desse modo é que o ponto de vista fílmico coincide com um hiato: a câmera de Lições de História trabalha por descentramentos, forjando uma ambiência de greve que isenta o protagonista-narrador de seus encargos e libera o espectador de uma rede de expectativas. Por exemplo, logo após a caminhada em que se relata o caso dos piratas, já de volta ao jardim de hortênsias, vê-se um banco vazio em que Spicer se sentará prosseguindo sua fala, enquanto o jovem biógrafo, pretenso interlocutor, cruza o espaço com o paletó sobre o ombro e simplesmente sai de quadro. O mesmo ocorre pela montagem, isto é, delineia-se um traço estruturante que tão logo se apaga, estimulando reações imprevisíveis. Talvez o corte que melhor exprima o choque entre ímpeto legendário e colapso da representação é aquele entre o plano no qual Spicer permanece estático por longos segundos sem piscar, numa espécie de devir monumento, e a panorâmica vigorosa de um riacho. Como se o discurso do banqueiro estivesse fadado à perenidade e a torrente de água implodisse o rígido continuum, enxertando ali cinese, vitalismo. Há, ainda, o zoom que hesita ao sublinhar um rochedo litorâneo, presumidamente o habitat de Alder, ondulante por causa do balanço da barca de onde se filma, e assim toma ares de emancipação dentro da narrativa, pois consiste num elemento alheio, deslocado do binômio diegético de objetividade-subjetividade. Esse recurso de fotografia, um tanto incomum na obra de Straub-Huillet, provavelmente por parecer maquinal em demasia, aponta para além ou aquém da obra.

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Portanto, dando andamento ao compasso ensaiado por Brecht, os cineastas minimizam os elementos narrativos, não de modo a soterrá-los por um discurso fora de quadro, senão para salientar suas extremidades. Pode-se, então, afirmar que a montagem engendrada em Lições de História não escamoteia a dissonância entre seus fragmentos. E isso se estende desde a transposição das múltiplas facetas de César existentes no romance até a novidade da proposição de um protagonista-narrador extemporâneo. Ou seja, não somente se aplica a disparidade contida no matriz, mas se inserem também outras camadas de dessemelhança, preservando-se, inclusive, as diferentes naturezas das mídias. Pois o trabalho de Straub-Huillet consiste na aguçada colocação de um texto prévio num espaço-tempo específico por meio de corpos condutores. Eles não praticam adaptações, modelo no qual cada componente se conforma, procedem, ao invés, por estratificação, pela justaposição de materiais provenientes de diversas origens, cuja configuração instantânea de juntas secas contém o risco da erosão. Tal método que deflagra heterogeneidades, não obstante, acaba por tonar manifesto a condição transitória dos próprios originais. Isto é, destaca os diversos estados neles gerados pela exposição incontornável ao tempo.

Os planos de abertura de Lições de História já designam esta volatilidade por compressão. Três mapas de momentos discrepantes da extensão do Império Romano são dispostos em série numa espécie de síncope abreviada. O primeiro tem mais áreas claras, ocupadas, o segundo, menos e o último, quase nenhuma, mas são todos do mesmo estilo e filmados de igual maneira. Assim, quando o ritmo desconjuntado da montagem irrompe entre os três planos, gera-se uma impressão de faux-raccord, significando o arruinamento de Roma. Em seguida, vê-se uma estátua de bronze de Júlio César em contra-plongée desde o pedestal, com a mão esquerda erguida sobre a praça. Sua qualidade pétrea, pairante, alude ao aspecto mitificante, a-histórico, da heroicização. Pode-se dizer que neste preâmbulo, um estrato superficial, alguma interpretação é mais rapidamente alcançada. Ou seja, anuncia-se o argumento capital: a ascensão e o declínio de uma era, concreta e simbolicamente. Conforme o filme se desdobra, porém, o foco se desvia, sugerindo um tipo de liberação menos evidente, irrepresentável, mais profundamente política. Aquela já desejada por Brecht. Então, quando a narrativa se esgota, um último plano desponta, retomando a monumentalidade fundamental do começo: o zoom que pungentemente assinala uma fonte esculpida no formato de um rosto com olhos aflitos, ao som de um trecho da traição de Judas no oratório A Paixão Segundo São Mateus, de Johann Sebastian Bach. Aqui, mesmo que a rocha represe a água, deixando brotar um filete cristalino, enfatiza-se a violência subterrânea. É o segundo zoom do filme. Executa-se com rigor, mas remete à excentricidade malemolente do primeiro. Ao efetuarem polarizações, Straub-Huillet quebram sistemas com suplementação, indicando fissuras essenciais.

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