garrel

Palavras, palavras, palavras…

Em geral, os gestos mais facilmente reconhecidos como essencialmente cinematográficos envolvem grandes afirmações em termos de uso do aparato cinematográfico, tecnicamente falando: aquele filme feito em um único virtuoso plano sequência; aquela montagem elíptica radical; aquele plano que capta uma enorme paisagem; aquele movimento “nunca visto” da câmera. A ideia fácil de uma essencialidade cinematográfica se manifestaria em todo tipo de “originalidade” (atenção às aspas, por favor!) que imediatamente recebe o grito reconhecível da plateia: “isso sim é cinema!” (inclusive, algo que ouvimos bastante sobre determinadas obras na TV).

Essa, porém, é uma das mais velhas (talvez a única?) discussões sobre o cinema: qual seria sua natureza, afinal? No entanto, é válido chamar a atenção do que, por trás dessas afirmações um tanto simplórias, existe de afirmação por negação: o foco exclusivo nos seres humanos filmados, e principalmente o uso radical da palavra falada como força criadora não seriam essencialmente cinematográficos – são coisas do teatro, da TV, da literatura, talvez mesmo do rádio. Nesse sentido, chama a atenção como o cinema de alguém como Philippe Garrel, com toda sua trajetória ligada à inquietação cinematográfica, tem se tornado cada vez mais um cinema da palavra – e que L’Amant d’un Jour tenha quatro roteiristas (sendo um deles Jean-Claude Carriére, que se torna um colaborador constante de Garrel) é certamente um sinal da importância da escritura dos diálogos.

De fato, se as recentes “peças de câmara” de Garrel (esse novo filme é admitidamente a terceira parte de uma trilogia, depois de O Ciúme e À Sombra de uma Mulher) têm algo de similar com o teatro, é menos a forma de serem postos em cena (o simples uso do scope e do preto-e-branco já são afirmações visuais bem fortes), e mais na sensação de que o seu texto pode ser lido e estudado na forma impressa, por exemplo, como se houvesse uma “assinatura dramática” (cheia de rubricas, claro) bem firme na forma das palavras serem usadas como material orgânico, físico mesmo. Não é nenhuma surpresa descobrirmos como Garrel trabalhou esse material ao longo de literalmente dezenas de semanas de ensaios de mesa com os atores.

Se é verdade que esses seus últimos três filmes são pensados como uma trilogia, inegavelmente existem aspectos novos ou radicalizações que L’Amant d’un Jour traz para o jogo. Entre as novidades, há uma forma de filmar o sexo (ou, como Garrel faz questão de destacar, o orgasmo, especificamente) e o nu feminino que não apareciam nos seus filmes anteriores. Já entre as radicalizações, a maneira de fazer com que as mulheres sejam o motor de todo o drama, cabendo ao homem apenas reagir e (muitas vezes) se conformar com sua posição secundária nos trajetos dos afetos.

Sim, porque é um filme acima de tudo sobre os afetos, sobre como os corpos se aproximam e se distanciam, e como os encontros parecem fadados sempre ao choque inevitável entre sentimentos de mundo de cada indivíduo, de uma maneira que as pessoas até podem (e não conseguem evitar de) se aproximar, mas tendem sempre a se afastar em algum momento. É um filme duro, como sempre em Garrel (e, como de hábito, o suicídio, ou pelo menos a possibilidade dele, faz uma visita à narrativa), mas curiosamente há algo mais solar aqui, talvez pela juventude das protagonistas e a afirmação do desejo de uma delas como força motriz que não será nunca “domada” (ainda que essa liberdade resulte sofrida).

Enquanto o filme de Garrel esteve sendo exibido na Quinzena dos Realizadores, na Competição Noah Baumbach nos lembrou com seu novo filme, The Meyerowitz’ Stories, como, dos cineastas da nova geração, talvez ele seja o que mais se aproxima da vertente do que podemos chamar de “cinema da palavra” mais explorada por Woody Allen em determinados momentos da sua carreira. Mas se Baumbach herda de Allen o prazer de um certo “naturalismo antinatural” na forma de trabalhar com seus atores e escrever para eles os diálogos, não se pode dizer que ele tenha a mesma capacidade de dirigir os grandes atores que tem na mão, e fazer com que eles brilhem tão somente até o ponto onde ajudam a sua narrativa a se montar. Tanto Dustin Hoffman como Emma Thompson, por exemplo, parecem totalmente perdidos na sua própria brincadeira de “super-atuar”, impedindo o que poderia ser uma comédia tristíssima de laços quebrados e paternidade ruída sair, por um lado, de um nível bem raso de cinismo (acerca do mundo artístico, principalmente) e, por outro, de um histrionismo exibicionista. Curiosamente são Adam Sandler e, principalmente, Ben Stiller os que mais tentam brigar contra esse registro, mas mesmo eles estão bastante irregulares. Como resultado, The Meyerowitz’ Stories termina vivendo de soluços de interesse muito mais que de uma verdade própria que construa – e, nesse sentido, vai ficar muito bem sendo visto sem a devida atenção nas telas menores de computadores e TVs, talvez com o formato serializado servindo bem melhor a essa história e universo, aliás. Aqui sim são palavras demais, jogadas ao vento.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinemaformado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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