Frances Ha, de Noah Baumbach (EUA, 2013)

novembro 24, 2013 em Em Cartaz, Fábio Andrade

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Vida sem destino
por Fábio Andrade

Há algo de revelador que se esconde nas brechas de toda apropriação artística. Quando os italianos reinventaram o Western, a abordagem espetacular das convenções afirmava que a maneira de se retirar o revólver do coldre e a iconicidade natural (Sergio Leone e a dívida fordiana em filmar cenas de Era Uma Vez no Oeste no Monument Valley, mesmo com a quebra de continuidade com os diferentes tons de areia) e cultural (as botas, os chapéus, as pequenas cidades à margem da linha do trem) dos filmes eram mais importantes do que a edificação de valores situada no coração da missão social do gênero. Escreve-se o que quer, lê-se o que convém. O mesmo processo aconteceu, quase concomitantemente, com a Nouvelle Vague, e sua incursão estrangeira pelo cinema norte-americano que roía a História pela bainha das calças. Quem conta sempre acresce um ponto (e tira várias vírgulas).

Frances Ha, de Noah Baumbach, é parte de fenômeno, ao mesmo tempo, idêntico e reverso. Idêntico porque Baumbach toma para si, com clareza e abertura, algumas estratégias de certo cinema moderno francês, sejam elas musicais (e não exatamente sonoras) – com direito a citação direta a Mauvais Sang (1986), de Leos Carax, mas sintomaticamente correndo para o lado oposto –, visuais – o preto e branco com aspiração cinza de Boy Meets Girl (1984), do mesmo Carax – ou narrativas – as triangulações que remetem a Jules & Jim (1962), de Truffaut, e uma estratégia de construções no vazio muito cara aos momentos mais leves da primeira fase de Godard (sobretudo Bande à Part, de 1964). A incorporação desses procedimentos, por si só, traz certo frescor ao cinema de Baumbach e é suficiente para despertar, no público cinéfilo, a simpatia da identificação – raiz de grandes avanços e dos maiores atrasos do mundo contemporâneo. Mas inverso, também, por as apropriações feitas pelo cinema americano serem invariavelmente de natureza oposta dentro do binômio colonizador-colonizado, terminando ou no Maneirismo – a exacerbação deformadora e doentia do olhar de um Brian de Palma, como uma verdadeira máquina de fagocitose – ou na diluição – que encontra exemplos ideais e de variável talento na irregular filmografia de Woody Allen. Sim, Frances Ha é filme de sucesso nada desprezível no Brasil por, no fundo, se parecer muito mais com Manhattan (1979) do que com Viver a Vida (1962), e essa impressão é mais uma constatação ontológica do que um juízo de valor.

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Essa apropriação, ora diluída ora intensificada, dos preceitos de fatia estrategicamente delimitada dentro do melhor cinema moderno francês (não há, por exemplo, espaço para Rivette ou Straub-Huillet em Frances Ha) não é nada nova no cinema norte-americano. Para ficarmos nas últimas décadas, esse mesmo processo está presente, de maneira sistemática, na Nova Hollywood (Scorsese, Hellman, Coppola, De Palma) e reapareceu recentemente e de maneira mais torta na precariedade improvisada da dita geração Mumblecore, cena que reunia, um tanto por acaso, jovens diretores norte-americanos (Joe Swanberg, Andrew Bujalski, Lynn Shelton, Aaron Katz) fazendo filmes que se reconectavam à experiência de um presente alijado dos estúdios, usando para isso pouquíssimos recursos, fortes relações pessoais e um tanto de sorte tecnológica (os próprios diretores do grupo associam diretamente a explosão da produção ao barateamento da DVX-100, câmera de mini DV da Panasonic que permitia filmes baratos que não pareciam por demais amadores).

Frances Ha – produto de um diretor que não vem desse mesmo contexto – se reporta diretamente à produção Mumblecore, inclusive (mas não só) na presença de Greta Gerwig, atriz que surge em meados dos anos 2000 em produções de diretores como Joe Swanberg (LOL, 2006, e Hannah Takes the Stairs, 2007, e Nights and Weekends, do ano seguinte) e os irmãos Duplass (hoje já devidamente acolhidos por Hollywood), e que aqui assume a personagem-título de um filme feito à sua imagem e semelhança – após, no mesmo ano e muito sintomaticamente, passar rapidamente pela coadjuvância de Para Roma com Amor, do próprio Woody Allen, a sombra que circunda e cerca, a todo tempo, este Frances Ha. Daí surge a ponte com o cinema francês: há uma identificação de contextos e inquietações semelhantes entre esses dois momentos bastante distintos no tempo e no espaço. Pois assim como a Nouvelle Vague surgia como reação ao “cinema de qualidade francês”, nos EUA, a facilidade de se fazer um filme na palma das mãos alinhava-se a uma experiência de vida que trazia um novo vocabulário, uma nova inflexão e, sobretudo, uma forma de olhar para o mundo até então marginalizada (ou devidamente embelezada) pela produção dos grandes estúdios. Não se tratava, portanto, somente de uma apropriação de métodos – para não dizer de tiques -, mas de um encontro que se dava no aparente cruzamento de uma mesma constatação entre a então nova geração do cinema americano e aquela nova geração de cineastas franceses, à sua época: em um caminho sem volta rumo ao academicismo, o cinema “velho” já se mostra incapaz de representar o mundo de hoje, as pessoas de hoje, as vidas de hoje. Frances, ao contrário, fala como seu público fala, age como ele age e está tão perdida quanto qualquer fruto da dita geração Y – o que não garante filmes melhores.

Ao atestar a conexão entre o cinema francês moderno e o Mumblecore, Frances Ha faz, ao mesmo tempo, um retrato e uma tentativa de árvore genealógica desse protagonista, surgido de maneira mais programática ali, em meados dos anos 2000, e tantas vezes encarnado pela própria Gerwig. Frances é o resumo mais organizado desse personagem bem intencionado e mal logrado em seu esforço de singularidade que se tornou onipresente no cinema norte-americano recente, como se a doença que tomava Gummo (1997), de Harmony Korine, sem esforço, desde então ganhasse em extensão mas perdesse em intensidade em seu trajeto entre Xenia, Ohio, e Brooklyn, Nova York. “O problema é que eu não faço de verdade o que eu faço”, responde Frances quando lhe perguntam sobre sua profissão, com uma clareza capaz de resumir toda uma filmografia. Frances não faz o que faz, mas sabe bem o que deseja fazer; no fim das contas, esse “novo” protagonista se define pelo que deseja e faz muito pouco que almeje ir além da finitude do gesto. Frances vai a Paris por 48 horas, mas… para quê?

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Há, porém, um conflito entre a vontade individual da personagem e esse destino que já foi traçado antes que ela chegasse ao mundo, nas pilhas e mais pilhas de manuais de roteiro que sustentam o melhor e o pior de Frances Ha. Afinal, a grande fricção do filme se dá no encontro entre essa auto-suficiência dos gestos, das ações e das coisas, essa finalidade sem fim que é própria vida de Frances e que está marcada em cada uma de suas falas (o filme começa justamente com a decisão de manter as coisas como estão, até que gradualmente ela percebe que essa vontade não é compartilhada por todos que a cercam e que estão implicados nesse seu plano de imobilidade), e o desejo de Noah Baumbach em fazê-la cumprir um arco narrativo, sair de um lugar e chegar a outro. Mesmo desigual, esse embate de uma personagem que se quer “matéria-bruta” com as mãos de um “profissional de cinema” como Baumbach – um técnico exímio capaz de “olhar de fora” e redramatizar o que, no Mumblecore, terminava no esforço de desdramatização, em uma nova dobra nesta longa linhagem de reapropriações e domesticações – traz perdas e ganhos.

Entre os ganhos, está uma agilidade habilidosa na construção das gags e que salta sobre os dias com elipses bastante suficientes para uma vida que é, na verdade, toda feita de espera. Afinal, se há momentos seletos de brilho na produção Mumblecore, eles conviviam com uma impressão precisamente definida por Michael Koresky em texto sobre A Garota Explosiva (2009), de Bradley Rust Gray, na Reverse Shot: “Cada cineasta se aventura e conquista diferentes formas narrativas; mas o que eles [a geração Mumblecore] parecem ter realizado coletivamente talvez seja a irrevogável identificação de uma geração não só como perdida, mas também como agonizantemente inexpressiva”. Se as personagens de Frances Ha são marcadas pela dificuldade de pensar e de dar ordem e sentido (narrativa e destino; diegesis e telos) aos acontecimentos, sua sobrevivência depende de certa eletricidade dos gestos, de uma rapidez que se encerra como valor em si (o primeiro dos valores de Calvino em Seis Propostas para o Próximo Milênio), e que a maior parte da produção Mumblecore, que encontrava em seu próprio amadorismo uma espécie de essência, nunca se preocupou em alcançar. Pode parecer irônico, mas o grande valor de Frances Ha está justamente na rapidez com que chega ao fim, na agilidade até certo ponto graciosa (graça que vai se perdendo no terceiro ato) com que ele não se detém em coisa alguma, e já chega a um bar pronto para ir para o próximo. Nessa constante mobilidade, o filme encontra certa leveza que tem mais de ginasta do que de dançarina.

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Mas há, também, os danos. O que frequentemente acontece, para o bem e para o mal, quando o cinema dominante americano reabsorve certas estratégias que lhe são estrangeiras – mesmo quando elas têm esse mesmo cinema americano como fonte primeva de inspiração – é uma separação entre a operação estética e o sentido em seu contexto original, fruto de uma maneira de olhar pro mundo movida por certa inconsequência em relação à História e ao lugar do presente (o que pode ser ótimo, em alguns casos, e péssimo, em outros). Se existe, em Frances Ha, um refinamento no acabamento de uma agilidade de montagem muito cara aos filmes mais leves da Nouvelle Vague, ou de um herdeiro maneirista tardio como Leos Carax (mais em Mauvais Sang do que em seus outros filmes), esse refinamento é, em grande parte, também sua contradição, um deslocamento que falseia uma aparência de ritmo até certo ponto vazia, que não quer muito além do torpor dessa agilidade. Se, de Acossado (1960) a Aos Nossos Amores (1983) o corte elíptico era ferramenta de choque, de instabilidade, aqui ele costura o verso do tecido de maneira tão bem acabada que não se faz sentir.

Seja no procedimento, em si, ou na vontade de trazer para as telas do cinema uma vivência do presente, o que existe nessa reapropriação do cinema francês por Frances Ha é, na verdade, uma inversão de pólos: transformar tudo que era opacidade em transparência; tudo que era descontínuo em continuidade; tudo que era corte em sutura. O problema, como sempre, se dá menos nos procedimentos, e mais no coração que os guia. “E quando Godard, por exemplo, refere que este cinema [o ‘cinema velho’ francês] não mostrava as raparigas ‘tal como a gente as conhecia’, nem fazia os rapazes falarem ‘como a gente fala’, o queixume deve ser entendido como algo substancialmente mais profundo do que um mero aparte anedótico. Bem pelo contrário, é uma das mais liminares expressões desta incapacidade de reconhecimento que, tomada como o mais forte símbolo de união geracional dos protagonistas da Nouvelle Vague, faz nascer, arriscaríamos, tudo ou quase tudo aquilo que nos vai ocupar neste catálogo e durante um mês e meio de cinema: se a Nouvelle Vague tivesse um subtítulo, ‘Em Busca da Verdade’ seria uma das melhores hipóteses” (Luís Miguel Oliveira em texto de abertura do catálogo da mostra Nouvelle Vague, editado pela Cinemateca Portuguesa em 1999).

A verdade, em Frances Ha, não é tão “nobre” quanto seu desejo, pois esta busca não lhe é sequer uma preocupação. Perde-se, com isso, o característico pragmatismo norte-americano, sem vir, em troca, uma predisposição real em transpor seus próprios limites e se tornar outro. O que existe, ao contrário, é um esforço de dourar a pílula, uma tentativa desesperada de negar que esse protagonista contemporâneo – essa garota que fala como todas as outras falam, que consome tudo que as outras consome, que não quer muito mais do que já tem – seja realmente tão simpático e desinteressante quanto ele aparenta ser. Mas, para saltar sobre essa imobilidade voluntária e torná-la digna de um filme, sua vida só pode se realizar plenamente em ficção. É aí que esse esforço em redramatizar o desdramatizado se revela um gesto bastante opressivo: Frances não encontra seu lugar no mundo; ela é assimilada por ele. Mais cruel: assimilada em um golpe de conto de fadas, cumprindo um arco dramático porque é isso que os personagens fazem para se tornarem personagens, e ganhando a corruptela que dá título ao filme por um acidente prático que mutila um sobrenome que o filme parece nunca ter se preocupado em saber qual era.

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Nesse sentido, é flagrante a dificuldade e o esforço do filme em conferir um sentido para sua vida, desembocando, de repente, em uma apresentação de dança de sua autoria e produção, sem que a personagem jamais indicasse sequer vontade de sair da cama. Frances, ao contrário, vive uma vida de merda (nos diz o filme), mas não parece totalmente insatisfeita com essa vida (nos diz ela própria) – ao menos, não a ponto de realmente se esforçar para mudá-la. Esse é um desejo que o filme tem para ela – desejo (de mudança, de renovação) realizado com tamanho desconforto, enfiado goela abaixo pelo diretor, que chama atenção para uma fatalidade terrível: Frances, personagem melhor que seus adoradores e que seus detratores, esta reencarnação um pouco (mas só pouco) menos irritante da personagem de Natalie Portman no terrível Garden State (2004) e um pouco (mas só um pouco) mais digna que a de Michelle Williams em Take this Waltz (2011), é de existência tão frágil que não consegue sequer se impor à vontade do filme. Nas mãos de Noah Baumbach, esse novo protagonista é digno de uma tentativa de salvação, por mais artificial e mágica que ela nos pareça; nos filmes de Andrew Bujalski, Joe Swanberg ou Aaron Katz, esses personagens parecem fatalmente condenados à sua própria imobilidade. Mas tanto lá quanto cá, Frances nunca teve chance.

A questão, portanto, não está na constatação do óbvio, mas na pergunta que ela gera: o que Frances Ha descobre em seu tour pelo cinema francês? O que decorre, estética e politicamente, desta operação? Não se revisita a História sem o desejo de reescrevê-la, mesmo que seja apenas passando a caneta sobre as letras que já estavam lá e careciam de novo grifo. Se havia, naquele primeiro momento da Nouvelle Vague, uma onipresente deambulação decorrente da ausência de sentido da própria vida, essa deambulação estava bastante distante do turismo que vemos aqui, e também da jornada existencial de auto-conhecimento que vemos em um (bom) filme como The Puffy Chair (2005, Mark & Jay Duplass), por exemplo. Pois se a constatação de um descompasso com o mundo (no caso de Frances, literal – trata-se, afinal, de uma dançarina) é semelhante, a atitude diante desse descompasso é completamente diferente. Frances irá, no fim das contas, cumprir a rotina conservadora (e aqui falsa, demasiado falsa) do triunfo pessoal do mais tradicional american dream; Belmondo, de uma forma ou de outra, sempre morre no final.

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