Paixão e Virtude, de Ricardo Miranda (Brasil, 2014)

fevereiro 1, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Paulo Santos Lima

PaixaoeVirutude

A palavra da imagem
por Paulo Santos Lima

Transpor é, às vezes, saltar ao esmo. No cinema, essa travessia que parte do original para atracar na tela, ou, mais no específico literário, do texto à imagem, é uma grande tensão – profunda no processo de adaptação, mas ausente no resultado final, quando já superficial, em estado pronto e “congelado” na encenação finalizada. Há, contudo, no porto final da imagem projetada, exemplos nos quais a tensão permanece, ou o tortuoso e complexo processo de transfiguração mantém ranhuras e faíscas nesse estágio último. Posto isso, chegamos em Paixão e Virtude, segundo longa de uma trilogia de Ricardo Miranda que prediz sobre a escravidão que ainda continuaria hoje, segundo o próprio cineasta comentou na apresentação do filme na Mostra de Cinema de Tiradentes. O que importa não é a presença literal da questão, mas sim a escravidão que submete o cinema a um modo mais restrito de acesso a ele, de relação possível entre espectador e filme. Assim como no anterior da trilogia, Djalioh (2011), Ricardo Miranda parte de um texto de Gustav Flaubert e, em vez de criar uma imagem-espelho do representável literário, ele reverencia o texto, os diálogos, a potência descritiva, essa energia que a palavra escrita ou falada emana sobre e a respeito do mundo. O comentário de Jean-Claude a respeito de Djalioh, em seu blog, define bem o jogo: “(…) o filme cria um espaço cinematográfico para instalar o texto narrativo, ou, em outras palavras, trata-se de encenar o texto”.

Disse também Bernardet, “Djalioh não é uma adaptação”. Não mesmo. E talvez nem seja um rompimento dos tais grilhões que regram como retirar do texto uma imagem. Bem outra, a intenção é transpor o texto à cena, mantendo sua energia narrativa. É uma posição a ser defendida e aceita, mas não de confronto com o adaptar ou com formas mais conservadoras de adaptação. Não é uma reação ao subjugo da “boa norma”, e sim seguir por outro caminho e para outra instância – os caminhos da liberdade. Há outros exemplos. Julio Bressane lida com a grande escritura. Manoel de Oliveira aposta na palavra falada (cinema falado). Pedro Costa trabalha o sedimento que surge da história e da fala. Dois que costumam ser relacionados a Ricardo Miranda: Jean-Marie Straub é atento ao narrador e à história (duração) que surge da própria leitura e Marguerite Duras faz do textual literário um empréstimo dramático e intimista aos personagens. Mas o específico do cinema de Miranda é construir a cena para o texto literário e a narração. Narração que implica no(s) narrador(es), eles próprios tendo de alternar a representação do personagem e a fala, que pende entre diálogo e descrição – entre diálogo-personagem e descrição-universo diegético do personagem.

Assim como Djalioh, Paixão e Virtude é a extração de um texto homônimo de um jovem Flaubert de 16 anos, desconhecido e nunca traduzido para o português. Talvez o discurso indireto livre, grande marca do autor, não imperasse em seus primeiros escritos, mas o filme é a transposição cinematográfica do discurso  indireto livre em ação. O procedimento implica em empréstimos do cinema, como o ator em cena, o som, objetos representativos como taças de vinho e véus, a aposta nos cortes, a angulação – tudo que implica em arquitetura e geometria, como é comum na mise en scène cinematográfica. Ao evidenciar (o cinema sempre expõe algo) as camadas que o narrador moderno abre na narrativa literária, Paixão e Virtude entra na já mencionada tensão – uma tensão que está na encenação, mas, sobretudo, na relação espectador e enunciado, ou seja, uma tensão gerada pela enunciação.

O filme conta a história do amor intenso e clandestino entre Ernesto (Paulo Azevedo e Barbara Vida), um químico, e Mazza (Rose Abdallah), uma mulher casada. Os créditos não estão errados, pois são mesmo um ator e uma atriz que compõem Ernesto (assim como o marido de Mazza, Octávio III e Mariana Fausto). Um adendo importa é o comentário que Ismail Xavier fez após a exibição, sugerindo que os créditos finais do longa não indicassem elenco e seus respectivos papeis. Porque, de fato, o jogo é mais livre, mais inesperado e mais aberto a uma experiência de narração literária moderna – talvez numa leve confusão semelhante a quando essa modernização surgiu na literatura do século XIX.

Cinematográfico, o início é uma tela negra ao som de batalhas, tiros e guerras, que se abre ao plano frontal e próximo de uma vagina. É quase um prólogo (de um diretor de cinema, e não um autor literário) sobre o que norteia o filme: a paixão e o amor giram em torno desse centro do mundo chamado sexo. A partir disso, o elenco desdobra-se entre encarnar seus personagens (atuar) e recitar as falas escritas no livro (narrar): Paulo Azevedo conversa com Rose Abdallah e olha para a câmera para descrever algum detalhe, voltando-se novamente a ela e prosseguindo com o ameno e sedutor papo à mesa. Dois atores, uma mesa com duas taças de vinho e uma vegetação ao fundo. O minimalismo explicita a voz-texto e desvela também os corpos e as fricções subterrâneas que eles sofrem por causa da paixão. É um cinema muito físico mas que, por um ímpeto de gênio do cineasta, delega os atores a objetos – objetos de carne e alma.

Barbara Vida, como Ernesto, é o desdobramento usual da descrição empreendida pelo narrador moderno, que entra e sai dos personagens, ora comentando ou confundindo-se com a correnteza do enredo. É ela quem indica a sofisticada encenação, que passa longe de um tableau e esquadrinha o universo dos personagens como espaço de drama, desejos jamais completamente saciados, angústias, amor louco etc., tudo isso em desdobradas profundidades de campo (basta ver o quadro de Balthus, pintor-referência a Ricardo Miranda neste filme e que sintetiza a geometria espacial presente boa parte do tempo). Há outros narradores afins, mas é o Ernesto de Barbara Vida quem melhor sinaliza a condição inescapável dos atores serem usinas de transmissão da narração. Não é uma metalinguagem, mas a questão do filme… um filme sobre o texto narrado, mais especificamente pelo discurso indireto livre. Os personagens, aqui neste Paixão e Virtude, são o próprio texto, e por isso o elenco terá de ser esse texto. A única atriz livre desse jogo de cena (de texto?) é Helena Ignez, magnífica no papel de Gustave Flaubert, única a andar livre em espaços abertos, recitando o texto de Flaubert em sorriso e luz. O movimento (há muito movimento neste filme, inclusive de corpos esfregando-se em sexo) é mais outra reiteração do aprisionamento que recai sobre personagens e seres.

balthus la chambre

La Chambre (1952), Balthus

Essa profusão de elementos, do seleto time de atores a uma replicação quase fantasmagórica dos personagens, assim como o diálogo com a pintura, com os métodos de preparação de elenco (que aqui depura ao essencial a função de um ator em cena, que é transmitir uma verdade, no caso a de um texto, senão ser esse próprio texto) e com o elementar do cinema que está no olhar incisivo da câmera. Tudo isso confirma um abraço de expressões artísticas (a expressão do homem, humana?), mas o específico de transportar o literário ao solo do cinema, e fazê-lo por meios essencialmente cinematográficos, diz muito sobre o que é revelador neste Paixão e Virtude: a integridade das artes, em sua natureza e seus fins, sob quaisquer circunstâncias. Uma integridade que pode ser chamada de amor e beleza.

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