In the Shadow of Women (L’ombre des Femmes), de Philippe Garrel (França/Suíça, 2015)

janeiro 25, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

* Cobertura do 53o New York Film Festival

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Jogo de sombras
por Fabio Andrade

Uma característica que tem se mantido razoavelmente constante no cinema de Philippe Garrel é sua predileção por instalar o filme em um gap, um intervalo entre as experiências distintas de duas pessoas em um mesmo relacionamento. Em filmes tãp diferentes quanto O Nascimento do Amor (1993), A Cicatriz Interior (1972) e o recente O Ciúme (2013)Garrel tem canalizado muito de sua energia criativa nas aparentemente infindáveis possibilidades desse desencontro. A razão para tamanha fertilidade é por o solo desta terra de ninguém ser o princípio do drama: um personagem quer algo de outro personagem, que por sua vez quer uma outra coisa diferente. Esse desenho primário cria solidez estrutural suficiente para permitir que a câmera de Garrel os siga e observe suas reações a esta minúscula semente de conflito. Se nós importarmos o suficiente com eles (e eu me importo), isso basta.

As cenas derivadas desse princípio básico são ou afetadas por este intervalo ou terminam ampliando-o, separando ainda mais os personagens em seu desejo comum (ou falso senso de obrigação) de ficar juntos. Se guiado por expectativa (outro elemento chave do drama), este desejo pode ser o coração tanto do entusiasmo da vida como da ruína do amor: estar junto é se sujeitar ao que não se pode conhecer ou controlar; é esta a beleza e é esta a desgraça. A beleza a desgraça: dois lados de uma mesma moeda que os filmes de Garrel seguem inspecionando, investigando e aprendendo/ensinando cada vez mais sobre, mas que ainda assim parece guardar tanto mistério, tanto a ser experimentado e descoberto após o acender das luzes do cinema.

O habitual intervalo de percepção evidente na maior parte de seus filmes é trazido à superfície de diversas maneiras neste novo filme, a começar pelo duplo sentido de seu título. Se a narração onisciente (sem falar no coro Grego sempre incorporado pela câmera e pela montagem) debocha insistentemente de Pierre (Stanislas Merhar) por ele acreditar que estar “à sombra das mulheres” é ser impiedosamente atormentado pela volubilidade de seus desejos, aderindo a uma tendência crescente de auto-vitimização masculina na vida contemporânea, é porque esta mesma sombra se faz presente de maneira mais geral e decisiva em outro aspecto da interação humana: um relacionamento se dá não somente entre as perspectivas cristalinas que duas (ou mais) pessoas têm umas das outras, mas também entre suas sombras, a parte de suas vidas e da forma como elas apreendem este mesmo relacionamento que permanecerá fatalmente inalcançável, obscura, vulnerável porém inconhecível.

Não é acaso que In the Shadow of Women parta da mais concreta manifestação dessa sensação: a infidelidade. Pierre se apaixona por Elisabeth (Lena Paugam), mas mantém o caso em segredo de sua parceira de vida e trabalho, Manon (Clotilde Courau). Embora os três mal compartilhem tempo de tela, a natureza triangular do relacionamento é constantemente reforçada pela narração em voz over (por Louis Garrel) e pela própria câmera, aludindo frequentemente a este terceiro vértice que permanece fora de quadro, à sombra. A separação das vidas duplas levadas pelas personagens é sabotada pela brilhante montagem do filme, que evita estabelecer transições para aumentar o impacto de seus faux-raccords, recriando continuidade em ações que o protagonista se esforça por manter separadas, reatando relações que ele espera sustentar sem que uma saiba da outra. O amor é o reino dos afetos, e os afetos jamais trafegam por estradas de mão única.

Se o extraordinário O Ciúme já trazia uma aproximação desconcertante entre Garrel e o cinema de Hong Sang-soo, as relações triangulares de In the Shadow of Women levam esta improvável conexão alguns passos adiante, chegando a encontrar humor no processo – sentimento que normalmente não se associa ao mais torturado auteur vivo do cinema francês.  O diretor incorpora a técnica de Hong de tecer a trama como uma análise combinatória, minimizando a auto-consciência do dispositivo, mas mantendo sua ironia. E se o espectador é o terceiro vértice entre esses muitos pares de gente, é questão de tempo até percebermos que não sabemos de toda a história: Manon também tem um caso extraconjugal, e esta simples informação reforma e reconfigura as relações em que o filme se escora. “Estou descobrindo você. A forma como você fala com os homens”, diz Pierre, depois de descobrir que tem sido traído. “Eu sempre fui assim”, ela responde. “Mas eu não via”, ele diz. E nós também não.

Garrel usa esse princípio do drama como uma coleção de áreas obscuras, de áreas de sombra, para complicar ainda mais os preceitos de visibilidade e fora de campo no cinema – e, com isso, o papel do espectador moderno. A aderência à narração onisciente se põe em contraste à parcialidade da visão, espelhando as relações entre os personagens na relação do próprio filme com o espectador. A percepção de que a falta de veracidade no material documental filmado por Pierre e Manon é a lição cínica que os personagens têm de aprender (e aprendem?), mas também funciona como um endereçamento ao espectador. Sim, In the Shadow of Women é uma farsa, e embora esta palavra não encaixe com facilidade no cinema de Garrel, a imagem mental de que o diretor saiu à rua com sapatos que poderiam passar por seus, mas são de fato de outra pessoa, termina sendo uma das sensações mais apropriadas com a qual podemos sair do cinema. Se o final feliz de O Ciúme parecia ser a maior das tragédias de todo o cinema de Garrel, o cinismo que desponta à sombra deste novo filme ironicamente nos convida a, talvez pela primeira vez, ficar feliz por ele.

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