O Ciúme (La Jalousie), de Philippe Garrel (França, 2013)

outubro 4, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

lajalousie

A ruína do desencontro
por Fábio Andrade

La Jalousie começa com um plano tão sintético quanto arrebatador. Do arrebatamento: Clothilde (Rebecca Convenant) tem os olhos lacrimejantes perdidos além da câmera, e a boca trêmula, terrivelmente trêmula, como se ainda abalada por um terremoto emocional que passara segundos antes e que Philippe Garrel opta que permaneça privado, sem testemunhas (e aquele que aqui faz chorar não será digno da mesma compaixão quando for a sua vez de cair em prantos, em um dos momentos de montagem mais fortes do filme). Sobre o momento anterior, basta o pedido embargado, entregue, desarmado: “eu não posso ir junto com você?”. Não, não pode, e por isso mesmo La Jalousie terá de relegar Clothilde à coadjuvância de uma história que não pôde ser contada, pois foi antes interrompida. O que resta desse brevíssimo protagonismo não é Clothilde, mas sim uma filha (Olga Milshtein) que espia o desmoronamento do casamento dos pais pelo buraco da fechadura e se reserva o direito legítimo à crueldade infantil de perguntar para a mãe, durante o café da manhã: “quem se desapaixonou primeiro, você ou papai?”.

Da síntese: o abandono que resulta do desencontro e um contraplano órfão de um plano. Se em O Vento da Noite (1999) a decupagem de Garrel antecipava as ações, colocando a câmera em seu lugar a esperar pela chegada da cena, La Jalousie é todo composto de vestígios de rostos e planos que passaram e que deixam a impressão de que talvez tenha sido pela última vez. Nos punhos de Louis Garrel mantidos em quadro no intervalo entre se levantar e se sentar novamente em um sofá, nos inúmeros umbrais de portas que ali permanecem após a passagem dos personagens, na filha que permanece como fruto de um casamento que já não existe, se escondem não só as evidências de um Garrel insuspeitadamente bressoniano, mas também os vestígios de um mundo cujo desencaixe interno permanente parece ser a causa de sua própria ruína. Como em O Nascimento do Amor (1993)como em todo filme de Garrel? – o filme resultante é a simples harmonização das dissonâncias que impossibilitam qualquer harmonia.

Philippe Garrel é um diretor intrigante, pois seus filmes parecem ao mesmo tempo avançar em linha reta e voltar ao ninho de origem, como se todos os caminhos levassem sempre ao mesmo trauma (embora os passos continuassem apontando pra frente, talvez por ausência de opções). Assim como o plano inicial aqui postula todo um filme, a impressão é a de que cada filme de Garrel postula toda uma obra, e o que os difere é o resultado lógico da inclusão do filme anterior na equação: há tanto de Um Verão Escaldante (2011) em La Jalousie quanto de Le Révélateur (1968), e parte da beleza do filme está em reunir (sem reconciliar) as ditas “duas fases” do cinema de Garrel: a dos filmes mais radicalmente em espiral (Le Révélateur; A Cicatriz Interior, de 1972) com a mais recente fase “romanesca” (A Fronteira da Alvorada, de 2008, ou Amantes Constantes, de 2005).

Em entrevista na mais recente edição da Film Comment, Garrel fala da importância de Godard e Truffaut em sua obra, e La Jalousie é especialmente ilustrativo de como o seu cinema permite a convivência de gênios tão distantes. A transparência flutuante de Truffaut (que aqui por vezes parece, não sem estranheza, se avizinhar dos filmes de Hong Sang-soo) é colocada em choque com as disjunções opacas (como um espelho é opaco) de Godard, em uma nova manifestação do desencontro permanente e incontornável que alicerça seus filmes – e o trabalho de trilha-sonora aqui é especialmente eloquente nesse sentido, expondo a leveza (levemente desconcertada) das melodias de Jean-Louis Aubert ao peso ontológico e cru do universo de Garrel (mais importante: e vice-versa). A opacidade é questão de transparência, pois é justamente desse jogo de opostos que seus filmes são feitos (sobre o que exatamente é Le Révélateur senão sobre o choque do preto com o branco, desde seu primeiríssimo plano?) e a crise do relacionamento aqui não é distante; ela é a crise do próprio filme (a crise do homem).

A crise é um estado constante no cinema de Garrel, mas aqui essa disjunção ganha uma dobra inédita: o desencontro da bala com o peito. O detalhe pode parecer simplesmente anedótico, mas para um cineasta de personagens eternamente ilhados na experiência do sublime, a volta à terra, ao mundo, à concretude da vida, é uma mudança radical de posição (e qual a dimensão da ironia de um suicídio frustrado ser seguido pela singela canção de título “Ouvre ton couer” – ou “abra o seu coração”?). A convivência nesse preto e branco irrenconcilíavel é tão irônica quanto viva neste novo filme, que se permite mergulhar cegamente em momentos de notável inclinação à comédia romântica, mas que em nenhum momento se esquecem que a comédia é fruto e alimento da tragédia.

Em uma das mais belas cenas de La Jalousie, Robert Bazil diz à amiga Claudia (Anna Mouglalis) e a seu novo namorado, Louis (Garrel), que teve duas oportunidades de morrer naturalmente, mas que esse direito lhe foi artificialmente negado pelas pessoas que salvaram sua vida. A cena é de notável vivacidade – vivacidade semelhante à que o filme encontra sempre que retorna a Charlotte (por vezes, La Jalousie parece infiltrado pelo ponto de vista de um filme de Hayao Miyazaki, com toda a estranheza que a aproximação de fato suscita), ou encontrava na cena que Garrel fez com o filho e o pai (cuja história pessoal teria inspirado este novo filme) em Amantes Constantes – embora ela sirva apenas para reafirmar, entre sorrisos e gracejos, a tragédia de se permanecer vivo. Esse mesmo destino é reservado a Louis, igualmente órfão de um passado, de um futuro e da autonomia em seu próprio presente.

Se, ao menos desde Amantes Constantes, os filmes de Garrel rumam todos ao (ou partem do) momento de inevitável e deliberado rompimento com o mundo dos vivos, em La Jalousie uma luz se apaga para que outra possa se acender, do lado de cá da sala de cinema. Desta vez não é apenas o espectador que deve fidelidade ao herói (trágico); o herói permanecerá ao lado do espectador. É preciso voltar a encarar o mundo (o nosso mundo) – e o mundo, por mais difícil que seja acreditar, não é somente uma pessoa; o mundo é um monte de coisas, um monte de outras coisas – sabendo que não se desquebra o que já foi quebrado, que não se des-sente o que já foi sentido, e que um doce roubado jamais pode ser devolvido. Essa certeza de que a vida continua talvez seja a conclusão mais triste já filmada por Philippe Garrel.

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