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O mundo vai acabar, longa vida ao mundo

Chegando na metade do Festival, é um bom momento para prestar um esclarecimento ao leitor(a) que esteja acompanhando nossa cobertura por aqui, e que até agora só viu citados 3 filmes da competição, quando já foram exibidos dez: não, a gente não se vê na obrigação de assistir e cobrir todos os filmes da competição. Isso, basicamente porque o recorte proposto pela competição é tão arbitrário quanto qualquer outro, e se pautar por ele significa deixar de ver vários outros caminhos nas seções paralelas (uma vez que em torno de 10 a 12 longas novos são ofertados por dia nas diferentes seções do Festival). Esse recorte precisa ser seguido por toda uma máquina de imprensa e publicidade que se move ao redor do Festival, da qual a Cinética não faz parte. Então, nos permitimos, até como gesto político, afirmar que os novos filmes de Ferrara, Garrel, Denis, Varda ou alguns dos primeiros filmes na Semana da Crítica nos apontam cinemas mais potentes e de interesse do que aquilo que está em exposição na competição –inclusive, filmes bem mais difíceis de se ver em futuras oportunidades.

Mas, se em anos anteriores isso ajuda entender porque deixamos de ver 3 ou 4 filmes da competição, existe um segundo motivo neste ano que deixa explicar como deixamos de ver 7 de 10 filmes. Seja porque eram os filmes que estavam prontos, seja porque afirmam um olhar de fato do diretor artístico da competição, Thierry Fremaux (eu arriscaria que é um pouco das duas coisas), a competição até agora foi marcada por cineastas que têm por características marcantes buscar um “cinema do choque”, um “cinema da polêmica”, um “cinema da crueldade”. É uma opção como qualquer outra, a princípio, mas a acumulação nesses primeiros dias de novos filmes de Kornel Mundruczó, Andrei Zvyagintsev, Ruben Ostlund, Yorgos Lanthimos, Michael Haneke (talvez o “padrinho informal” de todos os outros) se torna praticamente uma epidemia. Claro, cada filme é um filme, mas existe um olhar de mundo e de cinema comum aos cineastas (se não houvesse, Cannes não se pautaria tanto – nem pautaria o resto do sistema do cinema “não-comercial” – pela lógica hiperpresente do “autor de cinema”). E esse olhar, da forma como tem sido articulado por cada um desses cineastas citados, me interessa muito pouco acompanhar, tendo já visto uma série de filmes de cada um deles. De novo, é um gesto político, pois se uma das ferramentas mais comuns desses cineastas, com suas diferenças, é vampirizar os “temas do momento” como forma de afirmar que “é preciso ver esses filmes”, nós respondemos que não, não é preciso. Quem quiser ver e “polemizar” (a marca de toda uma forma de ação midiática contemporânea), claro, fique à vontade. Aqui, porém, eles ficam para depois, para algum outro dia.

A questão que se impõe, sempre, é: não seria essa, antes de tudo, uma limitação do crítico? A resposta mais óbvia é: claro que sim, mas saber conhecer nossas limitações é sempre muito importante. Mas, para além das simpatias pessoais, esse cinema que busca tão somente afirmar seguidamente que o ser humano não tem saída e que a sociedade é pouco mais do que um jogo sádico de marionetes parece intrinsecamente limitado. Não porque essa não seja uma visão de mundo válida, longe disso. Mas simplesmente porque, como construção de cinema, é preciso ir um pouco além – é preciso conseguir que esse discurso se articule numa forma que permita algo mais que não seja essa conclusão já dada no primeiro plano. É isso que demonstram muito bem dois filmes exibidos no Festival nesses dias – ambos japoneses.

Oh Lucy (2017), Atsuko Hirayanagi
Oh Lucy (2017), Atsuko Hirayanagi

Por exemplo, a cena inicial de Oh Lucy (primeiro longa da realizadora Atsuko Hirayanagi, que entre seus curtas tem um com o mesmo título, já exibido em Cannes) mostra uma personagem feminina que tem sua tentativa de suicídio no metrô de Tóquio interrompida porque um homem se joga na frente do trem antes dela. Ou seja, essa cena de uma enorme ironia e dureza não é exatamente um começo de uma cineasta que enxerga um mundo “azulzinho”. Só que a trajetória dessa mulher ao longo do filme (e o suicídio voltará a ser questão) nos mantém constantemente interessados porque, ainda que se construa um mundo essencialmente formado por pessoas ligadas a trabalhos nos quais não acreditam e/ou apegados a ressentimentos antigos nas suas relações pessoais, não param de buscar saídas para esse sentimento duro de mundo. Nessa busca, o simples fato de seres humanos, por mais falhos que sejam, se encontrarem e se tocarem (e o abraço é um gesto essencial na narrativa do filme), colocando-se em movimentos que, mesmo resultando em mais mágoas e erros do que acertos e finais felizes (uma cena em particular, na beira de um precipício frente ao mar da Califórnia, exemplifica esse movimento de forma precisa), são aquilo que dão real sentido ao trajeto de cada um. Sem precisar de nenhuma ingenuidade sobre quão duro pode ser o mundo, em Oh Lucy o que sobressai é sempre o esforço de tentar achar um lugar nele – sucedendo ou não.

Por mais interessante que seja o filme de Hiranayagi, a mais potente resposta ao cinema do cinismo citado acima é, sem dúvida, a nova obra do grande cineasta japonês Kiyoshi Kurosawa, Sanpo suru shinryakusha (Before We Vanish). Adaptado de uma peça de teatro muito bem sucedida no Japão, o filme se relaciona claramente com um certo cinema de ficção científica americana dos anos 1950, porém de forma particular. É como uma releitura de Invasores de Corpos (1956), mas com uma forma de se relacionar com a ideia dos alienígenas que tomam os corpos das pessoas sob uma perspectiva muito menos física do fenômeno, e mais a partir do conceito de incorporação. De fato, se lembramos como aquele cinema americano sempre foi visto como uma espécie de parábola sobre o momento histórico em que a sensação de insegurança e quebra de normalidade era latente, aqui Kurosawa usa o mesmo sentimento contemporâneo de mundo, de bastante incerteza, para levar adiante a sua pesquisa sempre radical (seja qual for o formato de cinema e de gênero que trabalhe) sobre, para usar a expressão famosa, “o que se esconde no coração dos homens”. Assim, ainda que haja momentos eventuais de força visual mais expressiva, a aproximação de Kurosawa com a ideia de ficção científica lembra em alguns sentidos o trabalho de M. Night Shyamalan na forma como parece sempre usar o gênero como forma de entrar num outro registro, numa outra chave, mas operar dentro dela com as regras de algo bem distinto – o filme é muito mais um drama (e, ainda que eventualmente apenas, até uma comédia) de situação, de relacionamentos.

Before We Vanish (2017), Kiyoshi Kurosawa
Before We Vanish (2017), Kiyoshi Kurosawa

Assim como nos casos citados no começo desse texto, o material que Kurosawa tem na mão propõe uma visão, se não apocalíptica, no mínimo bastante cética sobre como se organiza nossa sociedade contemporânea, seja na sua vertente profissional/capitalista, seja no campo das relações humanas e familiares. No entanto, embora toda a construção do filme seja no sentido de se colocar de forma muito crítica sobre boa parte dos nossos rituais e paradigmas como sociedade, todo o seu movimento de construção dramática vai buscar pensar o que é possível imaginar como quebras potentes nessa estrutura, que deve ser vista e retratada como tudo menos natural e estanque (nesse sentido é bastante genial a ideia de como os alienígenas “apreendem” os conceitos das pessoas – tirando-os literalmente da cabeça da pessoa, dando origem a “novos humanos”, fora das normas).

Ou seja, Kurosawa certamente não acha que o “ser humano é bom antes de tudo”, nem nada nesse nível de ingenuidade. Ele apenas entende que para falar algo de relevante sobre a sociedade atual é preciso ir além do “é, ela não está nada boa”, e para fazer isso é preciso conseguir tentar enxergar as engrenagens em funcionamento, propondo outras maneiras de olhar para elas, mesmo que pessimistas. Quando o cinema só quer chamar a atenção para seus autores/demiurgos enquanto eles se aproveitam do mesmo sistema que fingem criticar, e usam de ferramentas manipuladoras, no fundo bastante simplórias, para causar o mesmo tipo de reação irada/distanciada de qualquer programa de TV popularesco, ele é só mais do mesmo. Já quando o cinema consegue falar do seu tempo, ajudando a iluminar o entendimento sobre ele, aí então não tem como ele não ser relevante.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinemaformado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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