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Crônicas de um proletariado

A Máquina Infernal se inicia com a palavra “divisa”. Trata-se de uma simples cartela com indicação geográfica: “divisa entre São Bernardo do Campo e Diadema”. O filme, no entanto, ganha sua consistência ao explorar divisas mais instáveis e profundas: entre o orgânico e o maquínico, o material e o imaterial, o presente e o extemporâneo, o corpo do ator e o corpo da testemunha, o vivo e o morto. No interior de uma fábrica aparentemente em ruínas, trabalhadores seguem uma rotina um tanto perdida entre dia e noite, sem limites evidentes de final de semana ou férias. Entre a eficácia e a iminência do desmonte, as máquinas produzem uma sinfonia ruidosa que só pode ser acompanhada por uma coreografia de gestos disformes e imprevisíveis. Uma trilha sonora com signos claros da década de 1980 se confunde com a sonoridade contemporânea dos aparelhos de celular. Marcadores de celebrações anuais, como Natal e Carnaval, indicam um tempo difícil de situar, como se essa temporalidade pairasse sobre o curso da história ao modo de uma peça solta, descarrilada.

A divisa mais contundente que o filme parece explorar é a passagem entre o modo de produção industrial, mobilizado por espaços concretos, corpos e objetos, e o atual estágio de um capitalismo cada vez mais imaterial, mobilizado por trocas semióticas e subjetividades algoritmizadas. Nesse mundo que se consolida com sujeitos sem pele, em negociação a partir de telas, os corpos orgânicos dos trabalhadores parecem compartilhar do mesmo destino das máquinas mecânicas: virar sucata. O Brasil, contudo, apresenta um emaranhado temporal complexo, no qual os projetos de futuro convivem com os assombros do passado, de modo que a sucata nunca se esvai completamente da paisagem.

Wilson Grey em Crônica de um Industrial (1978), de Luiz Rosemberg Filho

Em Crônica de um Industrial (Luiz Rosemberg Filho, 1978), um político, encarnado pelo luminoso Wilson Grey, avisa ao industrial que “a falência purifica”. Com o tom seguro dos perversos, explica que logo as pequenas indústrias dariam lugar às grandes, “purificando” o país do atraso e da pobreza. Ele discorre assegurado na forma narrativa do progresso, que implicaria em uma ordem natural de sucessão das etapas. No entanto, não é por acaso que o filme de Rosemberg se faz justo em forma de crônica, não de narrativa épica. É como se em sua própria estrutura o filme já denunciasse a falência não do mais fraco, mas da estrutura de racionalidade que prevê sua supressão de modo fatídico e linear. A divisa geográfica que Francis Vogner dos Reis filma no presente, entre São Bernardo do Campo e Diadema, atesta essa temporalidade impura: os novos empreendimentos imobiliários que pretendem abrigar os trabalhadores virtuais do capitalismo cognitivo convivem com os resíduos dos parques industriais onde ainda transitam os antigos operários com suas marcas da exploração possivelmente impressas nas peles e posturas (não por acaso, o filme insiste na exposição das cicatrizes).

A Máquina Infernal (2021), de Francis Vogner dos Reis

Em A Máquina Infernal, há um momento em que um trabalhador (Renan Rovida) tenta articular o grupo para encaminhar a luta, motor da história. No entanto, sua fala empostada e seus gestos performáticos sobrevivem apenas como condensação de um instante suspenso sem combustível para engrenar qualquer consequência. O filme de Vogner também não consegue se edificar enquanto narrativa. Nem as máquinas, nem os operários, alcançam qualquer fluxo orgânico. Sem muita diferenciação, corpos e máquinas vivem a intensidade de rompantes, fragilizando qualquer impressão de estabilidade que possa se consolidar em um encadeamento progressivo de causas e efeitos. O filme se solidifica na profundidade material do tempo presente: esse em que os operários, quando impossibilitados de conduzir (ou impedir) a narrativa ideal do progresso, experimentam nos gestos e nas feridas. A experiência material do aqui e agora perfura a suposição de linearidade da história e se abre à instabilidade temporal das sensações. A crônica sensorial enfatiza o tempo improdutivo (e ingovernável) do desejo. Nas trocas de olhares, toques, explosões e retenções dos corpos insubordinados, seja dos atores profissionais ou dos antigos trabalhadores de fábricas da região, como os pais do diretor que aparecem em cenas rápidas, sobrevivem os buracos de tempo e expectativas não reguladas pelo relógio.

No final do filme, a trabalhadora protagonista é demitida porque as máquinas já não quebram mais. Seu corpo torna-se, enfim, dispensável. No entanto, como a narrativa não progride, terminamos sem saber se sua carne será implodida junto com as máquinas obsoletas. Deitada em uma cama hospitalar, entre a vida e a morte, essa mulher respira no hiato que já não pode se consolidar em forma narrativa, restam os caminhos não lineares do oxigênio que entra e sai sob a poeira das explosões.

As crônicas desses esparsos proletários são a exposição da falha do projeto industrial como passagem para uma inserção total nos novos modos de produção capitalista. O resto morto–vivo da expectativa de “purificação”. Sem lugar – demasiadamente orgânico e demasiadamente fantasmagórico – o proletariado assombra o presente como se emergisse da espessa nuvem de uma outra temporalidade. Com o espanto de um irreconciliável anacronismo, A Máquina Infernal nos dá a ver esses vestígios de sangues e roldanas, de expectativas falidas da luta de classes, de um futuro que já não encontra suas engrenagens. Mas talvez ali, entre a concretude de uma mão mecânica e a instabilidade de um beijo, exista um registro fugidio dessa divisa ainda latente: entre o que já faliu e o sopro de vida que ainda pode se destinar à insubmissão; entre o tempo da dominação e o tempo comum compartilhado entre os corpos e seus desejos possíveis apesar de tudo.

Se, no Brasil, a falência não levou à “purificação”, como esperavam os mandantes, os corpos dos antigos operários que sobrevivem –– invisíveis sob as telas do capitalismo imaterial –– ainda podem gritar, cair e quem sabe, levar em suas explosões algumas das estruturas perversas de manutenção da exploração que fluem tão límpidas do chão das fábricas aos cliques dos aplicativos à céu aberto. Com A Máquina Infernal, ouvimos de novo a explosão de Branco Sai, Preto Fica (Adirley Queirós, 2014), as caveiras ruidosas de Era Uma Vez Brasília (Adirley Queirós, 2017) e tantas outras faíscas que o cinema brasileiro registrou na considerável filmografia – direta ou indiretamente – relacionada às greves do ABC.

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É curioso que nesta mesma mostra competitiva outro curta investigue o mundo fabril do ABC paulista. Mais ainda, que também o faça ao modo da crônica. Chão de Fábrica, de Nina Kopko, em vez de tentar narrar um grande arco temporal da luta operária, se atém à longa duração de diálogos que se dão no escasso tempo de descanso das trabalhadoras: no horário de almoço ou ao se trocarem no banheiro feminino. A diretora se interessa pelos mínimos detalhes da vida cotidiana. Sua atenção se concentra justo nas camadas de tempo em que as operárias podem fazer escolhas: quando são, acima de tudo, mulheres com seus desejos, vaidades e dores particulares.

Chão de Fábrica, de Nina Kopko

Especulo dois sintomas a partir desse interesse renovado por um mundo do trabalho em vias de transições radicais. Talvez a árdua dificuldade de figuração do trabalhador contemporâneo, nos dispersos regimes 24/7 que se espraiam por todos os espaços e se diluem com o cotidiano, leve os cineastas interessados no universo do trabalho a se aterem à antiga figura do operário, com seus uniformes e visibilidade bem marcada. A dificuldade de tomada de consciência de classe e organização das lutas nesses contextos laborais cada vez mais dispersos e difíceis de codificar talvez leve, também, a olhar para o passado não como quem busca um caminho a ser trilhado (possível de ser traduzido por uma forma narrativa), mas como quem vê lampejos de força e disrupção em todos os gestos insurgentes – mesmo aqueles que culminaram em sucessivos fracassos.

Enquanto o filme de Vogner é econômico nas palavras e investe no campo das sensações, Nina Kopko tem nos diálogos seu eixo dramatúrgico principal. Por um lado, a força literária permite uma grande amplificação das experiências e descrições da vida mesmo a partir de uma única locação – o banheiro feminino de uma fábrica. Por outro lado, há o risco de sobredeterminar as trajetórias e identidades a partir de explicações possivelmente redondas demais, repelindo um pouco a potência imaginativa da espectadora. O curta, contudo, é eloquente ao revelar, mesmo com reduzido número de personagens e pouco espaço de tempo, uma multiplicidade considerável das diferentes vivências que as mulheres operárias daquele período podem apresentar.

Sobre os uniformes, diversos signos amplificam a performatividade das mulheres filmadas: presilhas nos cabelos, sandálias delicadas e pequenos adereços mostram a resistência da singularidade de cada uma. Dentre esses elementos, destaca-se o esmalte vermelho. Acho lindo, bem como acredito no uso chique e potente de todos os clichês do feminino: salto, renda, batom. No entanto, no momento em que os feminismos e o empoderamento tornam-se moedas valiosas no mercado capitalista das representações, me pergunto se, para não nos reduzirmos à mercadoria, não é mais interessante resistir à iconização da figura da mulher. Nesse sentido, me tocam especialmente os signos menos diretamente codificáveis e quase invisíveis. A mãe fortíssima e tocante representada por Helena Albergaria nos surpreende ao revelar o dente de seu filho que guarda dentro do sutiã. No final, não vemos, mas somos informados de que uma de suas colegas passará a fazer o mesmo, anos depois, quando sua filha estiver crescida. Precisamos imaginar, não só a figura do dente, mas a sensação de tê-lo junto à pele de um peito. Trata-se de um gesto cinematográfico que não só resiste à simplificação do que pode ser a experiência feminina, ao não apresentá-la de modo icônico e imediatamente codificável, como quase que nos convida, pela imaginação imposta pela recusa à representação, a nos aproximarmos dela. Para mim, é ao estabelecer essas distâncias e opacidades que o filme, sem perder o seu rico potencial de comunicação, ganha sua força e continua a reverberar.


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