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A política da atenção

Na conferência A Política da Arte, o filósofo Jacques Rancière conta uma narrativa de emancipação operária publicada em um jornal militante durante a Revolução Francesa: “Sentindo-se em casa enquanto ainda não terminou o piso do cômodo em que trabalha, ele desfruta da tarefa; se a janela se abre para um jardim ou domina um horizonte pitoresco, por um instante ele repousa seus braços e plana em ideias para a espaçosa perspectiva, gozando dela melhor do que os proprietários das casas vizinhas”. Essa breve chance de olhar pela janela e de aproveitar a casa, em vez de apenas construí-la, era cálculo embutido na margem de erro da relação patrão-empregado, esmiuçada no clássico da antropologia A Representação do Eu na Vida Cotidiana (1959), de Erving Goffman. A observação de Rancière, porém, reforça a possibilidade de ricochete: e se o operário decidir naquele momento que não cruzará a janela de volta?

Horas de Museu, de Jem Cohen, não se passa na França no final do século XVIII, mas sim em um museu, o Kunsthistorisches de Viena, nos dias de hoje. De lá para cá, a economia industrial se expandiu para a economia de atenção, que monitora não só os braços e as pernas do operário, mas principalmente seu tempo. Johann (Bobby Sommer) encarna idealmente esse novo proletariado: seu trabalho é estar presente, de olhos abertos e corpo disponível, para o caso de algo acontecer. Sua matéria-prima é o tempo de sua própria atenção.

Mas Johann vigia um museu, espaço que tem como vocação estabelecer um outro estado de atenção e observação. “O efeito-museu […] é uma maneira de olhar”, (Svetlana Alpers, A Way of Seeing), e ali, nos longos intervalos (expressivamente, o filme se passa no inverno) entre uma visita guiada, um grupo de estudantes e um visitante que se aproxima demais dos objetos interditos ao toque, o vigia se vê cercado de diversas janelas, como a que se abria para o trabalhador civil no periódico operário: esculturas, objetos e, especialmente, os quadros de Bruegel, o Velho, cuja multiplicidade de pontos focais – um garoto sob a árvore, um doente estirado na maca, a bunda de um cavalo – favorece a revisita, reservando sempre novas descobertas. Essas brechas, falhas intermitentes no sistema, estão representadas pela intervenção da tela negra, reforçando a desconexão entre o trabalho no museu e a vida na cidade. A política é posta dormente na descontinuidade desses cortes.

Até que Johann se pega observando Anne (Mary Margaret O’Hara), canadense que foi a Viena acompanhar os últimos dias da prima num hospital, e que mata seu tempo no museu. Circunstâncias diferentes – para Johann, a necessidade de sobrevivência; para Anne, a consideração para com a morte – levam os dois a compartilhar uma mesma espera, o frescor do olhar estrangeiro se combina com a observação detida e repetida que multiplica o mundo em uma fascinante coleção de detalhes, e o museu se expande para a cidade, revelando o extraordinário no comum: um cego caminhando por calçadas congeladas; um pôster rasgado; um casaco vermelho; um lago subterrâneo de águas cristalinas que se esparramam pela escuridão.

Embora o filme traga uma sequência memorável que discute abertamente os dilemas do capitalismo, toda essa bagagem político-econômica pode parecer pouco condizente com o tom menor de Horas de Museu. Jem Cohen – eterno punk da cena de Washington, D.C., que chegou ao audiovisual documentando músicos como Fugazi e Patti Smith, e trilhou carreira notável nos videoclipes antes de migrar decisivamente para o cinema e as artes visuais – mantém os rasgos de raiva e revolta abafados sob os ternos, com uma resignação não conciliada que suplanta os gritos da juventude. Mas eles estão lá, como janelas que esperam para ser abertas, ou quadros que escondem seus mais ricos detalhes sem alardeá-los nos títulos. Ao filme, cabe criar um estado também de atenção, uma forma de olhar, que transcende a experiência da projeção à própria vivência cotidiana, fora do cinema. Mistura de ficção, documentário e filme-ensaio, Horas de Museu é um poderoso sussurro sobre o caráter vivo, transformador e potencialmente subversivo da experiência artística.


No dia 19 de Novembro às 19h, a Sessão Cinética exibe Horas de Museu (Museum Hours), de Jem Cohen (Áustria/EUA, 2012) no Instituto Moreira Salles – Rio de Janeiro. A sessão será seguida de debate com os críticos da revista.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Horas de Museu será exibido em DCP, formato em que foi finalizado.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS-RJ e no site ingresso.com.


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