Horas de Museu (Museum Hours), de Jem Cohen (Áustria/EUA, 2012); História Natural (Natural History), de James Benning (Áustria, 2014)
janeiro 25, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Paulo Santos Lima
* Cobertura da 9a Mostra Cine BH
Arrombadores de cofre
Paulo Santos Lima
Cofre, segurança de uma posse. Museu, exposição de uma posse. Museu, um cofre. O uso pode alterar as fundações, mas não abalá-las. O que Jem Cohen e James Benning fazem, com seus História Natural e Horas de Museu, é uma reeducação do olhar, de relação com o que é ofertado à nossa vista. Até pelo espaço de dois anos entre um filme e outro, a curadoria do CineBH certamente os colocou nesta mesma 9a edição por alguma intenção parental (e não me parece ser pela coincidência geográfica de os dois longas passarem em museus vienenses). Horas de Museu é uma ficção com traços documentais, pois o observacional é fundamental para trazer o ambiente onde se desenrola a relação de amizade entre Johann, segurança no Museu de História da Arte de Viena, e uma canadense, Anne, em visita a uma parente em coma. História Natural é um documentário que parece ficção (ficção científica), visitando o Museu de História Natural de Viena. Na verdade, são filmes diferentes, e com propósitos até um pouco distintos, mas a visita que ambos fazem a essa “caixa blindada” conhecida como museu é uma forte imersão. A de Horas de Museu parece mais contracultural. Em História Natural, a imersão é científica. Os longas de Jem Cohen e James Benning fitam as coisas para ver além delas, antes e depois delas.
Horas de Museu, filme de 2012 dirigido por Jem Cohen aos 50 anos de idade. É o primeiro longa de ficção deste documentarista afegão/norte-americano que há anos está em andanças pelo mundo e que também está bastante entrosado com a cena norte-americana da costa leste (a novaiorquina), de inspiração mais cosmopolita. Johann, o segurança do museu, tem inclinação ao observacional, dos quadros ao público que ali passa. Ex-produtor musical e marceneiro, sujeito dos anos 1960, embebido pela inquietude e liberalização daqueles anos, Johann conta com sua experiência e sua sensibilidade para perceber o seu entorno: os quadros, sobretudo os de Bruegel, que ele gosta porque “sempre dá para descobrir algo novo” (nada mais contracultural), e as pessoas que passam ali na sala que ele cuida. A voz off é uma espécie de “visita orientada” para o espectador, mas a fala de Johann extrapola o espaço do museu e o filme nos leva para as ruas de Viena, para a atenção a algum anônimo, um edifício, pássaros e árvores. Quando conhece Anne, a solitária estrangeira, Johann é um desconhecido que lhe será um guia, depois se tornando amigo dela. Esses encontros entre seres que revolucionam toda uma relação com o mundo, toda uma percepção, é a chave de Horas de Museu. O que Johann anuncia nos primeiros segundos do filme, em off contando sobre seu estar no museu – que é seu estar no mundo – vai ganhando mais corpo e resultado prático, concreto, cinematográfico (porque visível) nos passeios dele com a amiga Anne.
Não há interesse do personagem ou do filme em solucionar um enigma, em preencher uma lacuna de informação. O cinema observacional, mesmo com a adição de registros como narração e cartelas, não deixa de ser, como experiência cinematográfica, uma relação com a superfície e com o instante, sem antecedentes ou perspectivas. Em Horas de Museu, esse observacional é um pouco mais fissurado, porque é uma ficção, mas está intacta a premissa de que nada será extraído de dentro da superfície. As conversas entre Johann e Anne trazem algumas sugestões, mas nem mesmo eles saberão tudo, e nem mais que o espectador. A postura “lisérgica” de Johann, em sair do chão e viajar além-objetos, mesmo ancorada numa lógica mais intelectual, jamais encontrará uma verdade sobre as pinturas, as pessoas que as observam, o que se passa na cabeça do garçom do restaurante ou do pintor que pincelou um estranho semblante numa figura na tela. O que se extrai é mais uma constatação do comum, do que há de prosaico na experiência histórica, não desprezando o passado ou a memória, mas compreendendo uma volatilidade e uma modulação das quais não podemos escapar. Parece a ideia de vida em movimento, aquela que Horas de Verão, de Olivier Assayas, coloca como inevitável, e em tom melancólico, senão cínico, mas o filme de Jem Cohen é outra coisa: não é banalização ou relativismo, e sim uma ideia de movimento, de encontro por conta do movimento (de corpos, de olhares, da vida), de uma mobilidade que nos permite sair da posição estabelecida com as coisas.
As idas ao mercado de pulgas feitas pelo filme, ou pela fala em off de Johann ou por Anne in loco, são capitulares. Num momento, Johann comenta sobre os papiros do Egito Antigo, sitiados numa protegida vitrine do museu, e o filme dá andamento à fala do personagem e segue até uns materiais impressos (e anônimos), amarfanhados e tal, no mercado de pulgas. Não é igualar obras de arte dum museu e objetos diversos de uma feira livre; é relacionar umas às outras, justamente para se encontrar algum lastro em cada uma delas… talvez para encontrar um outro passado para os papiros egípcios, um passado mais “real” ou, sabe-se lá, mais condizente com sua função original. Lembra Alain Resnais, não só mas sobretudo o de As Estátuas Também Morrem (1953), codirigido com Chris Marker, que provocava ao retirar uma aura imposta a certos objetos africanos ancestrais que foram “salvos” em museus. Referência óbvia, lembra também, do mesmo Resnais, Toda a Memória do Mundo, talvez a maior referência a Horas de Museu, porque esse documentário de 1956 opera entre o táctil apreensível da Biblioteca Nacional da França, sua arquitetura, a superfície dos livros etc., mas sugere uma natureza além daquilo, mais abstrata, volátil e ampla, que é o conteúdo dos livros, a história e o tempo decorrido por trás de todo aquele colosso estático. Horas de Museu respeita o museu como espaço possível de conhecimento como revolução e descoberta, mas coloca em xeque a força simbólica de suas paredes (sua estrutura e a mobilidade que impõe e seu interior), porque o que é importa é a viagem, o pé na estrada.
História Natural, filme de 2014 dirigido por James Benning aos quase 72 anos de idade. O longa de Jem Cohen convidava a uma experiência mais espiritual e particular, num discurso em tom de prosa e absorto pela música, pela voz, pelo contato com o mundo e pelo fluxo temporal que é, sempre, anterior e soberano a nós. James Benning também nega o sedimentado, o já sabido, e acredita em algo além da superfície, mas sua gramática é, como em quase toda sua obra (vide Small Roads, 2011), a de uma reeducação do olhar. Interessante que Benning e um pouco este seu História Natural tenham muito a ver com o Alain Resnais de Je T’Aime Je T’Aime (1968) e Meu Tio da América (1980), pois há um certo registro “científico”, inclusive contando com a aparência de laboratório para dialogar contra as verdades prontas. Mas Benning, aqui, é mais “de Exatas” que Resnais, e História Natural exige uma outra postura, mais disciplinada e rija, do espectador.
O observacional, em Benning e em História Natural, é um recrutamento. As únicas falas nos 77 minutos de filme são duas ou três frases, ininteligíveis, soltadas pelos funcionários do museu em plano mais de fundo. O Museu de História Natural não terá um plano aberto, que mostre-o no mundo, e menos ainda uma mise en scène que ilustre seu funcionamento cósmico. Repetindo, o intento de Benning é a imersão, a atenção ao detalhe e a algo que escape da percepção do espectador, uma informação além, um antecedente, uma identificação que não a das etiquetas que determinam o que são os seres vivos guardados neste museu. São 54 longas tomadas (em 77 minutos, ou seja, numa média de 1,5 minuto cada) em câmera fixa, a minoria mostrando ambientes do museu entre corredores e salas sobretudo de áreas fechadas ao público, e a maioria detida em amostragens de insetos ou peixes, espécimes de mamíferos ou répteis empalhados etc. O tripé impera absoluto aqui, filmando espaços e coisas sobretudo estáticos, e o espectador passa por tal reforma a ponto de, depois de certo tempo, um plano de 20 segundos o de um Domino de Tony Scott. Abbas Kiarostami também cutucou a malemolência do espectador, forçando-o a ajeitar melhor o corpo (e os olhos!) em Five (2003), mas ali havia, na relação com o cinema cosmopolita de Ozu, uma afinidade ao movimento. Benning promove uma maratona – uma maratona estática.
A dispersão quase sempre é interessante à política do mal, e mesmo um museu, supostamente o espaço da ilustração e do ganho crítico, pode nos pautar a uma determinada experiência com o que ele vende como “conhecimento”. A ideia de posse, esta do museu e, pior, de quem o freqüenta, cai por terra quando, já há 2 minutos olhando um único plano estático, o espectador se vê fazendo um caminho similar ao proposto pelo filme de Jem Cohen e reflete sobre o que há para ser revelado sobre uns coelhos empalhados e largados numa prateleira do museu, ou alguns insetos exóticos conservados in vitro. Um único plano fechado, mostrado no tempo certo, revela e indaga sobre todo um universo: qual o propósito do Museu de História Natural de Viena e por que podemos catalogar e controlar as formas de vida da Terra? Há ainda a imagem de um símio, e o tempo da tomada nos lançará precedentes e suposições extraordinárias sobre esse primata em vida, sobre ele estar nos olhando e, ademais, estarmos finalmente diante de um espelho (um espelho enorme, do tamanho da tela de cinema) em tempo suficiente para encontrarmos um fio da história, um começo de tudo.
James Benning radicaliza a experiência observacional a tal ponto que acaba revolucionando essa tradição documental, potencializando-a para fins maiores, mais abstratos – inclusive semelhantes à prosa livre lançada em Horas de Museu. Já rolava em Small Roads essa de oferecer ao espectador a rara chance de alfabetização do olhar, de poder ver (perceber) uma matéria capturável naqueles longos e lindos planos de 47 estradas norte-americanas filmadas por Benning, também norte-americano (de Milwaukee). Mais sintético e delimitado, História Natural é uma radicalização no cinema de Benning, num recrutamento mais duro. Talvez não houvesse outro meio de imergir tão profundamente no estreito espaço de uma única imagem, numa única tela de cinema, inclusive numa exigência disciplinar que objetiva a rebeldia, que exige todo um processo entre o castigo e a liberdade.
Afetivo e lúdico, Horas de Museu seria diagonalmente avesso ao severo e estóico História Natural, não fosse a coincidência de seus cineastas, dois rebeldes, em rejeitar a zona de conforto e um conhecer institucionalizado. Sair do cofre é tão árduo quanto encontrar respiro num de seus lados blindados em concreto ou aço.
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