1.
À primeira vista, Paterson parece um filme dedicado a simplesmente contar uma história, mesmo que de sua maneira levemente peculiar. Há, aqui, suficiente aderência dramatúrgica para não alienar uma plateia recentemente reconquistada pelo diretor, muito embora a catequese tenha sido fruto de um de seus piores filmes – Only Lovers Left Alive (2013). Nesta nova ficção (simultaneamente, o diretor lançou também o documentário Gimme Danger), essas estratégias narrativas tradicionais são colocadas na vitrine, como iscas sedutoras a um espectador que o filme sabe bem quem é, e que, por sua vez, sabe bem o que busca (ou melhor: pelo que está disposto a pagar): há diversas histórias de amor em curso; uma ordenação marcadamente causal dos eventos; um ponto de vista claramente ancorado em um protagonista; uma meta-ironia que se tornou pré-requisito para o espectador contemporâneo; e uma curiosa entrega a um sentimentalismo edificante que por vezes desconcerta em sua frontalidade autoconsciente, mas justo por isso responde às ansiedades de um mundo carente por preenchimento espiritual, mesmo quando falso.
Paterson (Adam Driver), o personagem principal do filme, é um motorista de ônibus em uma cidade do interior de Nova Jérsei que, nos tempos vagos e sinais fechados, verbaliza a poesia que ele encontra em seu dia a dia, rabiscando-a em cadernos que ele guarda longe dos olhos do mundo. Ele mora em uma casa sem muitos luxos, mas com espaço suficiente para sua namorada Laura (Golshifteh Farahani), que passa seu tempo inventando novos hábitos que dificilmente resistirão ao final do dia, e seu cão, que faz o papel de observador silencioso, impondo estrutura àquele cotidiano circular. Ao talento questionável de Paterson, impõe-se uma rotina calmamente massacrante que impede que ele se torne o novo William Carlos Williams – grande poeta que dedicou àquela mesma cidade a obra de sua vida: um longo poema nunca terminado, dividido em cinco livros, também intitulado Paterson – em sintonia com um sentimento que perpassa outros filmes do diretor e que é martelado pelos retratos de ilustres na parede do bar: o que pode um artista diante do próprio atraso, da chegada anticlimática a um mundo onde outras pessoas já disseram tudo antes, melhor do que eu?
Por trás da superfície, porém, há algo levemente perturbador na artificialidade com que essa rotina narrada é apresentado; algo que desafia permanentemente a possibilidade de uma “história” que não seja intimamente auto-reflexiva. Esse benefício da dúvida não tarda a se confirmar: basta o primeiro fósforo riscado para iluminar cantos pouco mais recônditos no pavio curto da memória e conduzir o espectador a The Limits of Control (2009), filme-tese desde seu título, que, a despeito da recepção hostil, segue como o melhor trabalho do diretor nos últimos quinze anos – e que também tem uma caixa de fósforos como objeto central.
No filme de 2009, a personagem de Isaach de Bankolé, o arquetípico Lone Man, é um matador que sai em missão tendo como única orientação um conjunto de pistas abstratas, abertas às mais diversas interpretações – traço que contraria o princípio a que almeja sua profissão. Esse processo espelha a própria fruição de The Limits of Control enquanto obra de gênero irregular, que carrega certa aparência de convenção, mas se nega a fechar a conta de um glutonismo auto-satisfeito. Não diferente de o que faz O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues, com o gênero de aventura, o filme de mistério precisa se atualizar como um filme-mistério. Com isso, ele se torna reflexo de sua própria reflexão, e faz-se a ferramenta que transmite ao espectador um descontrole inevitável no aparente controle evocado pela fotografia de Chris Doyle, pelos enquadramentos extremamente rigorosos, pela alusão constante aos cubos brancos que se tornaram os museus e as galerias de arte, e pela estrutura falsamente rocambolesca da trama.
Esse contraste levanta perguntas que transbordam o próprio filme: quais os limites do controle não só de um artista, mas também de um espectador sobre uma obra de arte? O conhecido conceito de obra aberta, de Umberto Eco, do qual The Limits of Control se aproxima, garantiria maior ou menor controle para esse mesmo espectador? Qual é, afinal, sua vocação: decifrar um quebra-cabeças ou vivenciar um enigma?
Em Paterson, muito pelo contrário: tudo aqui se mostra abertamente controlado, a despeito de seu personagem principal estar em busca de fortuitos acidentes que lhe saltem à visão. Para criar essa sensação, o filme partirá da mais básica definição de poesia para construir sua mise-en-scène de observações, escutas e trânsitos circulares, desafiando, de certa maneira, sua aparência narrativa. Segundo a Wikipedia (em sua versão em inglês), “poesia é uma forma de literatura que usa as qualidades rítmicas e estéticas da linguagem – como a fonoestilística, o simbolismo sonoro e a métrica – para evocar significados que adicionam ou substituem a significação ostensiva do prosaico”. A definição se aplica perfeitamente ao filme de Jarmusch, com a diferença de que, aqui, a “significação ostensiva do prosaico” (no sentido de “comum” mas também de “relativo a prosa”, a narrativa – como enumerado no primeiro parágrafo) é forte demais para que a poesia se imponha ao cotidiano.
Da simetria das roupas de Laura, e da pintura monocromática que ela aplica à casa, à rotina regrada e previsível das corridas de ônibus, passando pelos muitos gêmeos e pares que habitam a cidade, e pelo cachorro que, sem que seu dono saiba, derruba a caixa de correio todos os dias, o filme é todo feito de rimas e ecos, de fato, com a diferença de que elas não escondem as marcas da mão de um mastermind a controlar, detalhadamente, todos aqueles aparentes acidentes, ao ponto de eles não poderem ser mais acidentais. Esse espelhamento caricato carrega consigo a vantagem do humor: as pequenas diferenças que se impõem às repetições e o inusitado das situações escolhidas (as cenas no bar da esquina de casa; o encontro com a menina poeta; as aventuras culinárias de sua namorada) dão ao filme uma leveza que é, no fundo, bastante enganadora, pois desprovida de maior sentido, de significação real.
O riso, aqui, não é exatamente o bálsamo peristáltico que expurga a angústia do reconhecimento. Ele é motivado pelo desconforto que Tzvetan Todorov usa como definição para o fantástico: será isso o mundo real, ou será algo diferente dele? “O fantástico ocupa a duração dessa incerteza. Assim que escolhermos uma das opções, saímos do fantástico para um dos gêneros vizinhos: o estranho ou o maravilhoso”, escreveu, em Introdução à Literatura Fantástica (1968). Paterson tenta, de ponta a outra, equilibrar essa incerteza, usando a potência relacional das convenções para garantir a permanência do espectador naquele estado de questionamento. No processo, encontra uma imagem bastante expressiva: um jogo de xadrez em que só se pode ganhar ou perder de si próprio.
A instabilidade da construção abismática já se mostra presente no espelhamento textual com o título: Paterson é o nome do filme, mas também o do protagonista, o do livro que ele lamenta ser incapaz de escrever (lembrando que Paterson, o livro, era uma tentativa deliberada de se desvincular de toda uma tradição poética e de inventar uma linguagem que ainda não tinha sido estabelecida), e o da cidade – lugar real, apresentado no limite do sobrenatural – onde o filme se passa. Essa sequência de igualdades efetiva o desejo original de William Carlos Williams ao traçar seu épico do homem comum: “um homem é de fato uma cidade e para o poeta não existem ideias que não estejam nas próprias coisas (…). O poeta pensa com o seu poema; nele está o seu pensamento, e isso, por si, é sua profundidade. O pensamento é Paterson, e só pode ser descoberto lá”, escreveu em sua autobiografia. O filme é o homem que é a cidade que é o pensamento, pois um filme também – até mais do que um poema – só pode pensar com as coisas, com as presenças e ausências impressas visualmente na tela do cinema.
Como herdeiro tardio do Modernismo, Jarmusch naturalmente não deixa que o jogo pare por aí, prolongando-o para fora da tela: Paterson é vivido por Adam Driver, ator que carrega em seu sobrenome a profissão de seu personagem – um motorista de ônibus – em uma das muitas camadas em que o filme se refere a um fora (um outro poeta; um outro Paterson) de autenticidade inatingível, mas desejada. Os elementos gêmeos, as duplas, as repetições e as métricas apontam todas para um controle exterior que domina o filme de fora para dentro, sem que os personagens percebam, em uma espécie de meta-ironia dramática que não vislumbra saídas: no triunfo inevitável da prosa sobre a poesia, Paterson opta por fazer uma tese sobre a derrota.
A dimensão prosaica mantém a fidelidade ao pacto dos acontecimentos, mas de certa forma sua ausência de sentido diegético e aleatoriedade deliberada (é o filme de Jarmusch que mais se aproxima do cinema dos irmãos Coen) indicam que o significado real do filme existe, também, fora dele: seu fracasso é sua mais contundente declaração. Isso não minimiza o fracasso – de certa forma, torna o filme seu refém – mas lhe dá uma direção, um ponto final para o qual a obra em si ruma, e que é sua razão de existência.
O problema é justamente esse: para Paterson expressar o que expressa, ele precisa fracassar, tornar-se acessório, trajeto em serviço de um além que não necessariamente enaltece a viagem. O filme é um pensamento que, diferente da cidade de William Carlos Williams, só existe fora de lá, fora das coisas, fora de si próprio. Mas, ao fim, o pensamento existe, e só pode existir por conta do filme – ao menos para aqueles que sobreviverem às tormentas de sua duração. A força de Paterson, este filme-pensamento, está justamente na impossibilidade de ele ser um filme. Ainda sim, é um filme; daí o nó.
Por trás do feelgood, os “limites do controle” apontam para um estrangulamento do artista como fruto do mundo, e também para um estrangulamento das possibilidades de intervenção e transformação que ele tem sobre este mundo. Paterson não é só um filme sobre Paterson, o personagem – o tal filme que acompanhamos, com interesse que varia de acordo com o gosto do espectador, pois a moeda aqui é a velha e vil satisfação – mas também, e até mais enfaticamente, um filme sobre a imobilidade do artista (Paterson, mas também Jarmusch) diante de um determinismo asfixiante que rejeita, ou mesmo impossibilita, a transformação, a surpresa, o descontrole.
É um filme-tese, mais até do que The Limits of Control, com a diferença de que a tese, aqui, já não é sobre a potência de um descontrole que se ativa enquanto significado no contato com o espectador, mas sim sobre um suposto fracasso ou ineficácia dessa mesma confiança, subjugada ao gosto do dia. Como filmar poesia depois dos vídeos caseiros de YouTube que, como parodia o diretor, jogam palavras sobre imagens de cachoeiras em slow motion que poderiam estar no fundo de tela de um videokê? E o que fazer quando as cachoeiras, as mesmas que tanto inspiraram William Carlos Williams no movimento fundador de seu próprio Paterson, já secaram enquanto fontes possíveis de inspiração, vulgarizadas como imagens fáceis, que nada têm a dizer?
Há certo cinismo na pura exposição da ciência dos limites, um tanto ressentida pelo fracasso da experiência altruísta de The Limits of Control, que reduz a poesia a truísmos desencantados sobre os escombros de uma ex-civilização (e o sucesso de Laura na feirinha local, com a vulgaridade dos cupcakes de quem nunca soube cozinhar, é a assinatura neste atestado de óbito). Neste mundo sufocado, a poesia, no fim das contas, parece só ser possível no acidente: um ônibus que estraga e muda o rumo da rotina; um cachorro a comer cadernos de poesia não publicada, cujo sentido seu autor sempre tentou controlar ao não se deixar ler; um encontro tardio, sintomaticamente ecoando o final de Beijos Roubados (1968), com uma alteridade levada àquela cachoeira pelos mesmos motivos que você.
Quando a auto-reflexividade da estética já foi plenamente absorvida pela estrutura urbana e a submissão a formas invisíveis de controle (Foucault) que já sequer fingem se esconder já foi naturalizada como via de existência, Paterson parece dizer que a única coisa que resta é expor esse sistema em uma mise en abyme a céu aberto. Embora o gesto esteja aquém do que o cinema de Jim Jarmusch até pouco tempo demonstrava, ainda que irregularmente, ser capaz de fazer, há, na moleza azulada deste muxoxo cinematográfico, uma certa justeza na medição dos fracassos de seu próprio tempo. Ao poeta, ficam guardados os louros murchos desta nova possibilidade de “sucesso”.
2.
A poesia, porém, deseja mais, e, aos poetas que não foram, a História guarda o exemplo dos poetas que são. Logo no começo de A Quiet Passion, novo filme de Terence Davies, uma família assiste a um espetáculo de ópera em um camarote de um teatro, em algum momento do século XIX. A câmera faz um movimento de grua, indo da cantora, no centro do palco, para esta família específica, acima do nível do palco, individualizando aqueles personagens dentro de uma experiência coletiva, deslocando radicalmente o ponto focal da plateia (neste caso, nós) para aquele outro tableau.
É a segunda construção desta natureza em um filme que mal começara: já em sua sequência de abertura, a câmera de Davies marcava sua protagonista com um outro gesto de individualização, realizado por um simples golpe de mise en scène, destacando uma garota em relação às demais colegas de reformatório com a simples movimentação dos atores. A diretora (Sara Vertongen) que a questionara sobre sua fé grifa a individualidade apontada pela câmera: “Você está sozinha em sua rebeldia”.
A literalidade aqui é questão de princípio: essa garota é Emily Dickinson (nesta primeira parte, interpretada por Emma Bell), grande poeta norte-americana que teve publicados em vida apenas sete poemas, apesar de ter escrito algumas centenas deles. Diferente de Paterson, consumido em desejo de autoproteção, Dickinson teve desejo de obra castrado em vida pelo conservadorismo de seu tempo. Esse conservadorismo aparece ali, nas margens daquela ópera, com Emily no centro do camarote, ao lado da irmã e do pai, que rosna sua insatisfação, dizendo que nenhuma mulher deveria se mostrar em público como aquela cantora. As duas jovens riem, e o espectador rapidamente percebe que as palavras do pai serão tomadas como um desafio – cumprido, mesmo que não em vida, com um nome marcado em uma história tragicamente masculina.
Se deixada como tal, essa coragem, nobre como é, ganharia sentido dramático normativo, na jornada do herói fadado a sobreviver incólume às intempéries de seu tempo. Emily Dickinson, porém, é uma poeta, e a poesia não se vive em linha reta. Mais adiante, quando os anos já transformaram Emma Bell em Cynthia Nixon – atriz em grande momento – A Quiet Passion mostrará o reverso da moeda: o pai de Emily falece e, a partir dali, aquela jovem que desafiava os limites impostos pelos costumes da sua comunidade se trancará em seu quarto, enxotando qualquer expectativa externa que ouse cobiçar seu espaço. Ficará ali, sendo inegociavelmente quem ela é, até o dia de sua morte, a despeito dos esforços, às vezes um tanto cômicos, de sua irmã em tirá-la daquele enclausuramento auto-imposto. Mas, sobretudo, seguirá escrevendo, tendo suas vírgulas mudadas nas raras ocasiões em que foi publicada.
Em todos os momentos citados, a fidelidade ao ponto de vista de Emily aponta sua própria motivação: a individualização exemplar da personagem que, com graça, convicção e compromisso, se nega a cumprir uma certa expectativa social que lhe é imposta. A escolha do diretor por biografar Emily Dickinson – mais especificamente, esta Emily Dickinson, que incorpora a veneração casta do diretor, muito embora os detalhes de reconstituição de sua biografia apontem possibilidades mais nebulosas e em nada menos interessantes – redimensiona o dissenso como uma forma de protagonismo.
É uma conclusão um tanto surpreendente, pois se Terence Davies sempre foi um cineasta de figuras desgarradas – dos personagens desviantes de sua trilogia de curtas-metragens (1976-1983) à mulher apaixonada interpretada por Rachel Weisz no belo Amor Profundo (2011) ou a fazendeira de Agyness Deyn em Sunset Song (2015) –, esse instinto de independência não deixava de ser carregado como uma cruz. Em A Quiet Passion, o desgarramento amadurece como uma contrariedade propositiva, como uma afirmação política que não permite, vislumbra ou deseja reconciliação. Uma vez propiciado o disparador desviante, o filme se concentra em captar as modulações desse gesto, os efeitos sociais (mesmo que a comunidade boa parte do tempo se reduza a uma casa) decorrentes da presença incontrolável de um espírito livre. Enquanto Paterson via sua criatividade desafiada pelo seu lugar no mundo, Emily aparta-se do mundo como forma de manter a autonomia do seu lugar.
O fascínio do diretor por essa figura histórica que se coloca voluntariamente contra a corrente, em confronto com as estruturas de seu próprio tempo, e que encontra uma certa paz, ou mesmo vocação, na incorporação cotidiana do dissenso, é surpreendente em tom, mas nada descabido. Ao longo dos anos, Terence Davies foi se firmando como um cineasta propositivamente anacrônico, cujo olhar parece habitar um mundo à parte que, mesmo de maneira bastante conservadora (basta lembrar da narração em voz over de Of Time and the City, seu documentário de 2008 sobre Liverpool, sua cidade Natal, que rejeita até os Beatles como sinônimo de uma modernidade devassada), não deixa de encontrar uma dimensão “paratemporal” a fim de que seus personagens, ideias e sentimentos possam se manifestar.
Na obra do diretor, o mundo não existe para trás, ao menos não tanto quanto existe ao lado: o passado – único tempo possível para seus filmes, mesmo quando se trata de um filme sobre Liverpool nos dias de hoje – é um passado que nunca existiu de fato; sua reconstituição está sempre alguns graus acima do real, mais próxima da recriação de um cinema de época do que de uma época de fato: o ritmo estonteante da inteligência dos diálogos; uma elegância imponente mesmo nos cenários mais austeros; a fala sempre próxima da música; a fluidez das dimensões, muito encarnada nos movimentos de câmera; os retratos, os enterros e os traumas. Se um filme como Vozes Distantes (1988) parece hoje uma espécie de elo perdido pro cinema contemporâneo, isso é menos sinal de diluição de sua singularidade do que testamento de que, por caminhos tortuosos, parte do cinema contemporâneo chegou a um lugar vislumbrado por Davies já naquela época, na distinção de sua solidão. Daí a solidariedade na rebeldia: em A Quiet Passion, o diretor encontra, em Emily Dickinson, um espírito irmão.
No cinema, porém, essa fraternidade só pode ser manifesta como encenação e, nesse sentido, Emily Dickinson carrega, em sua exemplaridade, um problema fundamental: o ofício do escritor talvez seja das realidades mais difíceis de se filmar – e as cachoeiras de Paterson estão lá, martelando essa dificuldade em caixa alta, cujo peso ameaça a sobrevivência do próprio filme. É, afinal, um trabalho de poucas ações, de representação limitada – as batidas na máquina de escrever de O Iluminado (1980) ou Desejo e Reparação (2007) – e de uma interioridade talvez ainda mais difícil de se dar corpo – a banalização do texto sobre a tela em Mais Estranho que a Ficção (2006); a projeção do universo mental em quadrinhos de Anti-Herói Americano (2003); os zilhões de filmes e documentários televisivos que recorrem a imagens “poéticas” como folhas ao vento, caligrafias gigantescas e livros espalhados pelo chão…
Em A Quiet Passion, Davies se desvencilha dessa afasia de expressão deslocando a “escrita” da ação para a incorporação: a pessoa que escreveu I Taste a Liquor Never Brewed e I’m Nobody! Who are you? carregava consigo, em cada segundo da sua existência, o talento e inteligência que resultou nesses e noutros poemas. Ver o autor do texto é antes de mais nada ver um personagem vivo, capaz de escrever o que o autor de fato escreveu. É esse o movimento do filme: uma espécie de psicologia reversa que preenche os intervalos entre os versos com a rotina de alguém que dorme, acorda, come, conversa, respira… e escreve.
Essa constatação é traduzida em mise-en-scène: os tableaux servem como palco, de fato, para uma inteligência e humor incessantemente performáticos, agitados por uma velocidade de provocação e de respostas que contrasta com a serenidade imóvel dos corpos contidos em época. Estamos distantes da contenção explosiva de Brilho de uma Paixão (2009) e, curiosamente (pois pouco se parecem), mais perto da fidelidade impossível de I’m Not There (2007): o interesse está menos na vida da poeta do que em viver como um poeta, apreender sua vibração. Para A Quiet Passion, escrever é uma forma de vida, um ethos que se manifesta em cada microesfera da relação do sujeito com o mundo… uma singularidade que não se afirma; uma singularidade que é, grifada no centro do quadro.
“Oh, querida, você não demonstra; você revela”, didatiza a amiga insolente (Catherine Bailey) sobre Dickinson, abrindo uma clivagem radical em relação a Paterson: se a mise-en-scène de Jarmusch partia da definição mais fundamental de poesia, Terence Davies poetiza sobre o que faz o cinema – revelar, não demonstrar. A poeta, aqui, não contempla o mundo em busca de inspiração; ela luta com ele, perseguindo uma harmonia que jamais se completa, mas que encontra razão em sua própria inquietação. A poesia se traduz em uma forma de vida: acordar às três da manhã para escrever, imersa na impressão de um mundo que é só dela, de uma individualização física da experiência de vida, que passa pela obliteração do entorno – os ruídos, a luz, todo um “fora” que é tão físico quanto metafórico… uma concentração aguda do eu.
Em artigo recente no New York Times sobre o silêncio (já quebrado) de Bob Dylan pelo prêmio Nobel de Literatura, Adam Kirsch encontrava, na dificuldade de compreensão do próprio gesto, uma afirmação sartreana de liberdade. “(…) ser ‘o que não se é’ é abdicar de uma liberdade; fazer isso passa por se transformar em um objeto, uma função, algo que se destina aos outros. Permanecer livre, e agir em boa fé, é não abdicar de ser as criaturas indefinidas que somos, com toda a ansiedade que isso gera”. A Emily Dickinson de Terence Davies é justamente esta criatura indefinida, governada por uma liberdade que reage ao status quo, justamente para não se deixar determinar por ele… aquilo que conhecemos como “autenticidade”. Enquanto Paterson aponta uma dificuldade do poeta em travar contato com um mundo que já se fez simulacro, A Quiet Passion aposta no recolhimento, na inspiração infinita da paisagem interior do próprio artista: sua grande vocação é, como diria Kim Gordon, acreditar em si mesmo.
Porém, se escrever é uma forma de vida, essa imprevisibilidade de alguma forma precisa contaminar o filme. Embora o biopic seja uma capa pesada de se carregar, que por vezes traz um peso de obrigações contratuais (demonstração, e não revelação: as bandeiras marcando o começo e o fim da guerra), e o autorismo possa se impor como fardo ainda mais sufocante, Davies encontra na morte do pai uma forma de virar o filme do avesso – em reversão rítmica contra-intuitiva que encontra um paralelo mais histriônico em outro biopic: Vincere (2009), de Marco Bellocchio. A comédia ensolarada dá lugar a uma atmosfera de horror que espalha a escuridão da madrugada para todos os cômodos da casa, pois esta é uma história que prova que “o rigor não é substituto da felicidade” (como ela diz), e o peso do tempo cai mesmo sobre aqueles que ousaram desafiá-lo.
O cinema não existe para camuflar esse peso, como as cachoeiras de Videokê, a barraca de cupcakes e a autoproteção do desejo de jamais ser lido (oferecer-se ao outro seria correr risco grande demais). Muito pelo contrário, como diz Thomas Elsaesser, a experiência cinematográfica tal como foi concebida é uma lembrança ao espectador de sua própria mortalidade: um filme que corre do início ao fim, sem o controle de quem o assiste, que precisa se conformar com a impossibilidade de reter tudo o que deseja.
Mas embora este seja o efeito sobre o indivíduo, filmar é também conjurar espíritos de um eterno passado como exemplos para o presente coletivo. Reivindicar o protagonismo do dissenso é declarar a insatisfação com um cinema que se limita a ser testemunha de seu próprio tempo… é acreditar que o presente sempre pode mais. É uma crença que não vem sem amargor: “é fácil ser estoico quando ninguém quer o que você tem a oferecer”, desabafa Emily Dickinson em dado momento, com todos os cadernos abertos, aguardando por leitores igualmente oprimidos pelas constrições de seu tempo. Mas se o cinema é uma ferramenta capaz de atravessar as barreiras do tempo, cabe à câmera do diretor sublinhar a reticência inevitável: o querer pouco sabe sobre o que ele realmente precisa.
Leia também:
- Multi-filme, por Cleber Eduardo
- O brilho do lago, por Fábio Andrade
- Anatomia de um milagre, por Juliano Gomes
- Passado imperdoável, por Fábio Andrade
- Viver a mise en scène, por Raul Arthuso
- Tudo ou nada, por Eduardo Valente
- A transcendência do prosaico, por Fábio Andrade
- Imagens como política, por Filipe Furtado
- Tudo é efeito, por Cleber Eduardo