Amor Profundo (The Deep Blue Sea), de Terence Davies (Reino Unido/EUA, 2011)

julho 14, 2013 em Em Cartaz, Victor Guimarães

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Anatomia de um milagre
por Victor Guimarães

Na Inglaterra dos anos 1950, uma mulher vive uma exasperada crise amorosa. Sufocada pelo casamento com um juiz – bastante mais velho que ela – e atraída magneticamente por um jovem ex-piloto da RAF – que não corresponde inteiramente a seus sentimentos –, sua frágil estrutura emocional se dissolve, e as tentativas de suicídio ocorrem uma após a outra. Com premissa das mais corriqueiras, uma intriga como essa poderia, facilmente, resultar em algum daqueles insuportáveis dramas de época que, ano após ano, concorrem ao Oscar de Melhor Figurino (quando não reúnem atrativos espetaculares suficientes para disputar o prêmio principal). À primeira vista, se considerássemos apenas seu alicerce dramático – ou, mais ainda, os sentidos sugeridos por seu inacreditável título em português –, The Deep Blue Sea poderia nos fazer desconfiar que estivéssemos diante de algum desses inúmeros romances à moda vitoriana, tomados por uma estilística insossa e por uma previsibilidade quase absoluta. E, no entanto, o filme de Terence Davies é nada menos do que uma obra-prima, deliberadamente anacrônica e fabulosamente contemporânea. Em tempo em que até o gesto moderno nos dá claros sinais de cansaço, um filme decide retomar conscientemente traços significativos do cinema clássico e redescobrir, em golpes precisos de encenação, uma velha (nova) forma de amar as imagens.

Mas com quantos gestos de cinema se faz um milagre? No caso de Davies, são três ou quatro movimentos certeiros, que perpassam todo o filme e destilam, pouco a pouco, a rara conjunção de elementos de que The Deep Blue Sea é feito. Em primeiro lugar, há uma retomada inventiva de certa “tradição da mise en scène”, sobre a qual se debruçaram críticos como Eric Rohmer, David Bordwell ou Raymond Bellour. Em pleno século XXI, Davies decide readaptar uma peça de Terence Rattigan, estreada em 1952, e apostar em uma ficção essencialmente centrada na relação produtiva entre os personagens e o espaço cênico. No entanto, quando esse traço definidor do melhor cinema clássico – presente tanto em Preminger e Lang quanto em Renoir ou Mizoguchi – adentra a forma de The Deep Blue Sea, há uma conjunção precisa entre o gesto inevitavelmente maneirista e a devoção à trama filmada: ao mesmo tempo em que aqueles personagens pedem uma abordagem voltada para suas relações no interior da cena, há também uma alegria, um gosto em fazer do lugar do espectador o espaço de uma aliança renovada com esse cinema do passado.

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Ao abraçar a inatualidade, ao buscar em um cinema tido como morto a inspiração para uma nova prova de vida, o gesto de Terence Davies faz lembrar as reflexões de Giorgio Agamben, leitor de Nietzsche, sobre a natureza do contemporâneo. Ao retomar as considerações nietzschianas em torno da história, Agamben localiza a contemporaneidade de um gesto não na aderência ao tempo presente, mas justamente em uma dissociação deliberada em relação a ele. Pertencer verdadeiramente a um tempo é não coincidir perfeitamente com suas premissas; é manifestar uma necessária inadequação às suas pretensões. Nesse sentido, todo gesto realmente contemporâneo é animado por uma discronia, que permite tecer uma relação singular – marcada pela distância – com a atualidade. Se, no autobiográfico Of Time and the City (2008), um rabugento Davies não hesitava em rememorar a época em que ele e os Beatles haviam compartilhado uma mesma Liverpool com um profundo golpe de ironia – dissociando-se da exaltação óbvia do iê-iê-iê –, em The Deep Blue Sea esse anacronismo consciente e deliberado retorna com uma força ainda maior. Ao transformar seu filme em um território habitado por antigos fantasmas, Davies redescobre as potências de um gesto esquecido e, ao fazê-lo, coloca fortemente em perspectiva todo um modo de produzir imagens no presente.

A atenção apaixonada à mise en scène já se concentra no prólogo de dez minutos que abre o filme e condensa, no primeiro dos muitos flashbacks que a montagem convocará, a paixão fulminante entre a protagonista, Hester (Rachel Weisz em uma performance que justifica uma carreira), e o ex-piloto, Freddie (Tom Hiddleston). O começo da história de amor que, num filme convencional, seria traduzido pelos dos diálogos de apresentação dos personagens, é transferido quase inteiramente para a encenação: em lentos e precisos travellings laterais animados por uma música contundente, os olhares se cruzam, os corpos tremem e se encontram e não é preciso dizer quase nada. O movimento giratório do enquadramento que apanha os corpos desnudos na cama (em uma composição de rara beleza) anuncia a vertigem que penetrará o filme: a partir daí, a protagonista e todos que a rodeiam serão tragados para um turbilhão de afetos duros, espinhosos, desde sempre assombrados pela latência da morte.

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Como no melhor Hawks, cada encontro entre os personagens no espaço da cena contém um mundo: quando Hester visita a sogra – uma desagradável sobrevivente do século XIX – em companhia do marido, o conflito entre os códigos morais vitorianos e a incipiente liberação do pós-guerra aparece condensado em duas ou três trocas de farpas; quando Freddie rejeita a amada na porta do bar, após ler sua carta de suicídio, a moeda atirada contra seu corpo (“guarde para o medidor de gás, caso eu chegue tarde para o jantar”) tem o peso de um tiro. Como no melhor Minelli, as relações entre as luzes, os objetos e os corpos adquirem a textura de um sonho (como não lembrar da abertura de Brigadoon ou da sequência do apagar das lâmpadas em Meet me in St. Louis?): o interior dos quartos ou as ruas de Londres são sempre povoados por uma luz densa, que envolve os corpos e compõe, junto com eles, uma expressiva coreografia.

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Mas se há, em The Deep Blue Sea, uma inegável referência à tradição da encenação clássica, há também uma composição visual muito própria, assentada em três pilares: a restrição do foco no interior do enquadramento (que faz com que várias porções do quadro permaneçam desfocadas), a multiplicação das fontes de luz (janelas, abajures, velas, isqueiros incidem constantemente sobre os corpos e os objetos) e o jogo com as sombras (que equilibra, a cada plano, zonas de claridade e escuridão). O que resulta desses vetores estilísticos é um onipresente blur, que produz um espaço pictórico onde os personagens e as coisas adquirem contornos frequentemente imprecisos, como se sempre ameaçados pela dissolução iminente. O uso constante dos espelhos e as cores baças da fotografia fazem coro a essa exuberante visualidade, que traduz a crise da protagonista e nos instala em um espaço-tempo bruxuleante, em que a memória e a desesperança do presente não cessam de se comunicar.

O mergulho de Davies na espessura dessa angústia (“Put a label on that if you can”, diz a protagonista para o marido que tenta encontrar explicações para a situação da esposa) é regido por uma narrativa que alterna – de forma não linear – entre a rememoração e a crônica. Em uma das mais belas passagens entre um tempo e outro, o desespero de Hester após mais um telefonema do amante a leva até uma estação de metrô. Materializando as memórias da personagem em uma solução de mise en scène admirável, a câmera passeia pela linha do trem e, mantendo a continuidade do plano, descobre uma pequena multidão de ingleses pertencente a uma outra época: animado pela canção entoada a capella em meio ao ruído surdo dos bombardeios, o longo travelling acompanha os rostos que se aninham entre os cartazes de guerra, até encontrar a protagonista nos braços do marido William. Ao mesmo tempo em que essa memória de guerra faz pensar na forte impronta historiográfica do cinema de Davies – desde seu díptico inicial (formado por Vozes Distantes, de 1988, e O Fim de um Longo Dia, de 1992) até o recente Of Time and the City  –, o corte violento que encerra a sequência (e nos apresenta o rosto de Hester de frente, trespassado pelas luzes velozes do metrô) sintetiza o gesto de uma montagem que, quando reata com o cinema clássico, não deixa de lado as potências disruptivas do moderno.

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Mas não é só dessa tristeza funda que é feito o filme. Em alguns raros momentos – que, por serem escassos, têm a força reduplicada –, a exuberância da encenação de Davies serve também a uma vívida afirmação da alegria, que chega, quase sempre, no colo das canções. A presença da música (que marca todo o cinema do realizador) rende um dos fragmentos mais esplendorosos de The Deep Blue Sea: no interior de um pub, os freqüentadores entoam “You Belong to Me”, sucesso de Jo Stafford do ano em que a peça fora originalmente lançada, enquanto Freddie tenta ensinar a letra a Hester. Na sutileza desse pequeno encontro feliz – entre tantos outros dominados pela melancolia –, o comentário dramático sobre o sentimento de posse da protagonista evanesce diante da beleza irresistível de um instante de contato entre dois seres que se amam.

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