Paterson, de Jim Jarmusch (EUA, 2016); Julieta, de Pedro Almodóvar (Espanha, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

* Cobertura do Festival de Cannes 2016

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Tudo ou nada
por Eduardo Valente (colaboração especial)

Sempre me parece fascinante quando alguém, a sério, diz algo que começa com “cinema é…”. Definir a natureza do cinema como algo unívoco me parece especialmente tolo em se tratando de uma arte capaz de deglutir tanta coisa dentro de si mesma, por tantos caminhos distantes. Em Cannes, dois cineastas donos de obras já com mais de 30 anos de duração nos lembram quão oposta pode ser a natureza do cinema, mesmo que tendo em comum já um recorte bem específico dele – o do cinema narrativo de ficção.

No novo filme de Jim Jarmusch, Paterson é o nome de uma pessoa, de uma cidade e de um livro de poemas. Essa tripla dimensão é um primeiro sinal de um jogo bastante sofisticado que o cineasta propõe de metonímias constantes, onde as coisas ocupam lugares de outras de forma bastante livre. Assim, uma semana (que é o tempo de vida dos personagens que o filme acompanha) pode ser uma vida; uma cidade pode ser um universo; uma pessoa pode ser toda a humanidade. Embora tudo isso soe absolutamente ambicioso, o caminho pelo qual Paterson busca se aproximar desse sentimento é o do banal, o do cotidiano, onde praticamente não se consegue distinguir de fato uma “trama” dentro de sua narrativa – embora, lenta e seguramente ela vá se construindo passo a passo, com cada cena aparentemente deslocada, cada diálogo fechado em si mesmo, servindo como os tijolos de uma parede que vai inegavelmente revelando sua forma aos poucos.

Jarmusch segue um cineasta capaz de filmar os encontros entre pessoas com enorme talento, e olhos e ouvidos. Quando se torna uma espécie de Coffee and Cigarettes (só que com um protagonista constante) é que Paterson encontra seus grandes momentos: se divertindo com seus atores peculiares (Adam Driver é tão perfeito para Jarmusch como já foram Bill Murray ou Forest Whitaker ou John Lurie em outros momentos), com a escritura precisa e incomum de diálogos, com coadjuvantes cheios de vida mesmo em poucos minutos na tela. No entanto, o grande paradoxo e, ao mesmo tempo, o calcanhar de Aquiles de Paterson é parecer buscar a afirmação de uma poesia do cotidiano (poesia com duplo sentido, porque a escrita poética é um dos elementos principais da narrativa) através de uma afirmação muitas vezes pouco sutil (seja por coisas como a trilha sonora, seja pelo uso mesmo dos poemas na tela) de que é a partir da matéria de todo aquele “nada” que a grandeza da vida humana na Terra se torna enorme. É como se Seinfeld deixasse de praticar tão somente sua crença na dinâmica de um “programa sobre o nada”, e precisasse professar e nos dar piscadelas constantes para elevar a importância do seu material. O nada não precisa de nada disso para se elevar, e os momentos pequenos de “Paterson” reafirmam isso muito melhor do que seus “grandes gestos”.

Curiosamente, o sentimento frente ao novo filme de Almodóvar vai um pouco pelo caminho oposto. Se Almodóvar nunca foi um cineasta da sutileza (e isso está longe de ser uma crítica), Julieta pode ser considerado um de seus filmes mais “cinema-cinema”. Desde o plano de abertura, em que o que parece ser uma cortina vermelha de teatro se revela um vestido, vemos que Almodóvar está no seu modo mais exuberante, desde a paleta de cores fortes (o vermelho dominando, sempre ele), ao tom na direção dos atores, no uso da música, na sua forma de narrar absolutamente romanesca. Claro, nada disso será uma novidade no cinema do diretor espanhol, mas, mesmo dentro de seu estilo, Julieta exacerba os tons ainda um ponto a mais, o que se pode notar especialmente no uso que faz da narração em off. Se Jarmusch quer afirmar o “nada” nas narrativas, Almodóvar grita sua crença no “tudo”. Fabular sempre, reinventar a vida pelo exagero na tela, o melodrama como norte.

No entanto, essa história de maternidade e de morte (morte do corpo, morte do espírito), apesar de todos os esforços e talentos em sua feitura (há cenas realmente impressionantes, assim como trabalhos de atrizes delirantes – a participação de Rossy De Palma sendo um caso especial), algo em Julieta parece não atingir o ponto exato do seu cozimento. Não se trata de um Tudo Sobre Minha Mãe (1999), um Carne Trêmula (1997), um Volver (2006), um Fale Com Ela (2002) – filmes em que o romanesco e o exacerbado parecem criar um universo à parte onde habitamos, nos perdemos, vivemos. Em Julieta admiramos mais do que sentimos, pois há algo de um pouco duro na narrativa de sua protagonista. Pode-se buscar até explicações teóricas factíveis que justifiquem o sentimento (afinal, a personagem é mesmo endurecida pela vida e sua perspectiva de narração tem o peso de uma tentativa de “acerto de contas” com seu passado, pela via da purgação de quem narra). Mas isso tudo não servirá para elevar o sentimento de ver o filme de dentro, que aqueles filmes citados acima conseguiam atingir, pelo menos na visão limitada desse que aqui escreve. Seja pelo tudo ou pelo nada, a matéria do cinema é delicada, e nada fácil que sua construção em forma de objeto artístico se complete plenamente.

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