Um silêncio da imagem – Parte 1

“O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.” Guimarães Rosa, em “Grande sertão: Veredas” Retomamos o curta Alma no olho para pensar o gesto cíclico materializado na ocupação da própria tela pelo corpo negro que ocupa o enquadramento ao fim e ao começo do filme. Neste filme de 1973, é o preto da tez de Zózimo Bulbul e a posição contraluz do seu corpo, que, vibrando na eloquência do jazz, rompe o limite da imagem vertendo-se em quadro negro. A… CONTINUA

(Im)possibilidades de amizades interraciais num mundo colonialista

  Parece tarefa desmedida e desleal propor uma análise crítica sobre um filme como Kevin (Joana Oliveira, 2020), que estreou na Mostra Aurora da 24ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes e aborda, entre outras coisas, a relação de amizade, afeto, amor e máxima cumplicidade entre duas mulheres adultas, a professora de alemão Kevin Adweko, mulher negra africana de Uganda, e a cineasta e professora universitária Joana Oliveira, justamente diretora do filme, uma mulher branca brasileira que vai à África visitar a amiga conhecida… CONTINUA

Mergulhar nas brechas da opacidade

A cartela que inicia o filme termina com a seguinte frase: “A tarefa do político é precisamente permitir a essa voz de ressoar no espaço público”. As palavras são de La Convocation, de Federico Nicolao, Federico Ferrari e Tomás Maia. Findo o texto, ouvimos uma voz do que parece uma funcionária de aeroporto dando um comunicado; uma canção em inglês sobre tristeza; uma mulher praguejando a palavra “cachorro”. Sons urbanos e humanos se agitam no interior do filme enquanto tento tatear alguma cartografia que me… CONTINUA

Minha vontade mesmo é tacar fogo em tudo

Ocupar terras, largar o emprego e permanecer vivo são algumas das escapatórias possíveis apresentadas no primeiro certame de filmes da Mostra Foco Minas. Os curtas exteriorizam fissuras de um modelo social em crise e provocam, a partir de suas formas e narrativas, tensões nessa estrutura que esmaga existências pessoais e coletivas. As imagens elaboradas pelas obras batem de frente com este mundo que se desmorona e leva consigo aqueles que o sustentam. Videomemoria (Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito, 2020) abre a sessão narrando… CONTINUA

Ser pedra é fácil, difícil é ser vidraça

#eagoraoque é um filme-estudo – experimental e análitico ao mesmo tempo – sobre a figura do intelectual, ali representado pelo professor e filósofo Vladimir Safatle, que interpreta a si mesmo em cenas que oscilam entre o documentário direto e os momentos ficcionais mais claramente roteirizados. Atrás das câmeras, por sua vez, está Jean-Claude Bernardet, codiretor do filme ao lado de Rubens Rewald. Bernardet é crítico de cinema e autor, entre muitos outros, do seminal Cineastas e Imagens do Povo, obra em que problematizou as totalizações… CONTINUA

Mostra Foco #3: Lançar-se em derivas, mastigar palavras

  O trajeto é acidentado, e nem passado nem futuro são chão firme de pisar. Três filmes que nos levam a uma viagem de um tempo a outro, em que o exercício do anacronismo é feito como ferramenta de autoconhecimento, ou pelo menos de perspectiva. Nos passos incertos do percurso entre tempos, as vozes das personagens e da narração nos lançam de volta palavras: o desejo de elaborar a experiência dos personagens em deslocamento, desterritorializados e fora do seu tempo, testando o registro da fala… CONTINUA

Liquefazer a pedra, experimentar o fóssil

Anúncios feitos no escuro, nascenças que se dão no deslocamento, o canto inaugurando estradas, elementos que se fizeram pulsantes nos cinco outros filmes da Mostra Olhos Livres, despontam com roupagem muito própria em Irmã (2020). O filme de Luciana Mazeto, Vinícius Lopes começa dentro do olho, para logo em seguida fazer a pele virar tela. Ana (Maria Galant) e Júlia (Anaïs Wagner) estão de costas, e o contorno das duas se torna suporte para uma imagem projetada, prenúncio de uma viagem que está para começar.… CONTINUA

A dura língua do todo

Subterrânea (2020) parte de um estilhaço. Uma única fotografia emerge silenciosa: oito homens e duas bandeiras hasteadas posam ao redor de uma pedra. A ideia de fragmento – corporificada primeiro pela própria foto que paira desamparada – se estende para o motivo da pose, quando percebemos que a pedra se trata de um meteorito encontrado no interior da Bahia. “Um pedaço de outro mundo”, resto de alguma coisa desmembrada que fez viagem até aqui. Uma voz off nos revela que a foto flagra o momento… CONTINUA

Convívio extraviado

Amador (2020) compartilha de um dos esforços mais belos do cinema documentário: como fazer do filme a companhia de uma vida. O tempo da relação aparece no tempo das filmagens, uma amiga filma um amigo. Por meio de planos que se demoram em conversas íntimas e uma câmera que acompanha e refaz movimentações humanas, somos apresentadas a Jônatas Amador, artista plural que se criou em casas e praças e ruas de Belo Horizonte. O material bruto do filme ficará sempre inacabado, enquanto a montagem precisa… CONTINUA

Ritornelo

Com um exercício de construção de imagens cuja tarefa é encontrar beleza na dissonância rítmica, Ostinato (Paula Gaitán, 2021), filme de abertura da 24ª Mostra de Tiradentes, sobre o músico Arrigo Barnabé, transcreve a fluidez do processo criativo para as fronteiras movediças que existem entre a criação no cinema e na música. Uma melodia, memorável ainda que difícil de ser reproduzida pelo ouvinte, conduz os primeiros minutos do filme, quando o piano de Arrigo é colocado no ponto de maior evidência da mise-en-scène. A montagem… CONTINUA