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Mostra Foco #3: Lançar-se em derivas, mastigar palavras

 

O trajeto é acidentado, e nem passado nem futuro são chão firme de pisar. Três filmes que nos levam a uma viagem de um tempo a outro, em que o exercício do anacronismo é feito como ferramenta de autoconhecimento, ou pelo menos de perspectiva. Nos passos incertos do percurso entre tempos, as vozes das personagens e da narração nos lançam de volta palavras: o desejo de elaborar a experiência dos personagens em deslocamento, desterritorializados e fora do seu tempo, testando o registro da fala entre o diálogo, o poético, e também o informativo. Experiências corpóreas que atravessam o mangue, o mar e a floresta, enquanto sobrepõem marcas dissonantes nas roupas, nos gestos, na performance do corpo na paisagem.

Caminhar por uma trilha coloca o corpo em estado de atenção, em que a escuta e o olhar medem o risco do passo seguinte, em que o silêncio predomina também como estratégia de sobrevivência. Como então a palavra dá contornos ao que o corpo em trânsito não comunica e como organiza sentidos àquilo que as personagens levam no corpo? E ao contrário, o que a palavra esconde e apoia na performance?

Em Abjetas 288, “Aracaju Gardens” aparece na televisão como uma miragem em que há riqueza e abundância, enquanto duas jovens perambulam pela cidade. O movimento vai e volta, o fluxo do tempo filmado é remixado na montagem ritmada pela trilha eletrônica. As duas se encontram no ponto de ônibus, e uma conta para outra sobre sua noitada, enquanto a vemos entre as pernas da amiga que mija no enquadramento. As suas roupas com adereços e os desenhos no rosto destoam do entorno da paisagem sergipana de construções baixas e antigas, das zonas de mangue. A sobreposição de tempos pode ser menos uma viagem do futuro ao passado e mais a convivência, no presente, de temporalidades desniveladas. Sequências de fotografias atravessam a andança entre construções abandonadas desabitadas por humanos. Sobreposições de quadros e repetições de planos fragmentam o sentido de avanço da montagem errante. Quatro aparições: um ser do mangue sobre perna de pau, duas senhoras com véus de sucata empurrando um carrinho, um policial miliciano que às aborda com violência, um terceiro jovem que compartilha seu fumo. Os “Gardens” são a ilha neoliberal na paisagem escassa, em que os super ricos podem se blindar dos anacronismos de uma capital nordestina. As cyberpunks descobrem que tudo não passa de um truque da farsante em fundo verde, no meio de uma paisagem desértica e pedregosa.

Um futuro rasurado através do corrompimento da imagem digital em uma terra desabitada. A gargalhada avacalha o brilho fajuto do luxo midiático, uma implosão que tem algo de Sganzerla. Uma narração conclui: “Será que nossos pais também se sentiam assim? Eu não sei se a falta de fé é geracional ou daqui. Mas eu me pego vendo a cor do mangue desbotada nas paredes da cidade e acho que mesmo sem direção, um deslocamento já é um recomeço, sabe?”. A “falta de fé” verbaliza o deserto em cena, e a mentira da falsa proprietária faz colagem de falas típicas de um porta-voz liberal brasileiro. A deriva se coloca mais como fome de experiência do que de chegar em algum lugar. Talvez isso já esteja nos corpos que dançam de um quadro a outro, junto à montagem que vai e volta no tempo e, até ali, se diverte mais com o translado do que com suas conclusões.

No segundo curta, voltamos ao ponto de ônibus, e há um paradoxo temporal: quanto mais demora o ônibus, mais perto ele está do ponto em que se espera. Uma falha no tempo leva o protagonista (Mateus Henrique Ferreira do Nascimento) de Preces Precipitadas de um Lugar Sagrado que Não Existe Mais para um portal no tempo que o lança ao mar do futuro. Ou do passado, para aquelas que vieram de um futuro ainda mais futuro e o recebem nesse interstício chamado “zona de sacrifício”. Elas tem a tarefa de “retornar ao passado com a missão de refazer a história”: são jovens negros e queer que alegorizam um povo arrancado de sua terra e de seu tempo, com a função de reparação histórica no intervalo entre passado e futuro. As viajantes no tempo acolhem o novo enviado e tentam se localizar na diferença entre os seus tempos de origem, para entender o que se deu com a “guerra”: “O bom disso tudo é que a gente vai pegar de volta o monopólio do futuro”.

Faz parte de sua missão matar os brancos de uma casa grande de figuras estatuescas e empostadas. O registro alegórico do filme no futuro justapõe roupas coloniais prateadas a vestidos brancos, usando da estilização como elemento de estranhamento mas também de permanências entre os tempos. Essa estilização se assume no registro da fala com a dupla função de explicar o jogo entre temporalidades (“você entendeu que a gente veio do futuro?”) e trazer leituras sobre a missão de reparação através de conteúdos poéticos na forma de diários e diálogos. “Temos material suficiente, mas em mim falta fôlego. A miscigenação das realidades me enlouqueceu. (…) Às vezes não sei se quero voltar. O passado é uma ficção que não me seduz. O frio na espinha, o som dos alarmes em movimento anunciando a chegada de um banho de sangue”.

“Retomar o monopólio do futuro” toma forma mais através de verbalizações e explicações entre personagens do que gestos que furem o paradoxo temporal que é agir no passado para reparar o porvir. O esfaqueamento das figuras da Casa Grande acontece no escuro, enquanto ouvimos os golpes sendo proferidos: um gesto que não redunda nem em imagem, nem em palavra.

A água volta a ser o ponto zero da jornada, um lugar originário de onde desponta a história de chegada do povo negro no Novo Mundo, terceiro e último filme da sessão. “Para quem quer ver está tudo aqui: o antes e o agora. O reinício, e com certeza, o fim”: uma mulher negra interpretada por Mohana Uchôa emerge na “chamada terra sem mal”, sai do mar e adentra a terra. A alegoria é mais uma vez a figura motor: o corpo dessa mulher narra a história de chegada do povo negro escravizado no Brasil, como uma espécie de mito de origem do litígio que funda essa terra. Ela mata o peixe para comer, se banha, dorme em uma canoa, à espreita das ameaças do território desconhecido.

Sobre essa travessia alegórica e sensorial dessa mulher pela floresta, a voz de Zezé Motta tece comentários e análises históricas, em uma heterogênea sobreposição de lógicas entre o caminho das imagens e da narração, que parece fazer leitura crítica sobre o próprio material. “Armados de balas e de bíblias, os homens de bem estão por aí. Quem o capitão mandou matar hoje?” comenta duplamente a empreitada colonial no momento de chegada do homem branco e o paralelo com o atual projeto de governo e seus representantes, e ressoa um discurso de esquerda partidária mais ou menos difundido e assentado. Nessa leitura que se dobra sobre si mesma, a narração de Novo Mundo não abre veredas sobre o percurso visual, mas circunscreve a experiência a um comentário crítico histórico que afunila as possibilidades de interpretação e de experiência do espectador no percurso, condicionando a alegoria a sua própria chave de leitura e relegando a imagem à ilustração ou o texto à legenda. A andança de uma mulher negra em alerta entre matas tropicais conjuga elementos para narrar essa travessia, em que a totalização pela metonímia tem força para acontecer entre ela e a vegetação, entre o entorno e o estado de atenção.

O corpo se lança à viagem e a palavra tenta elaborar sobre as vivências. Os três curtas da sessão acontecem em um tempo que não é do cotidiano, mas do tempo figurado que conjuga sobreposições entre passado, presente e futuro. A alegoria como recurso de totalização e de estereotipia, tão usada pelos cinemas brasileiros dos anos sessenta, reaparece no repertório desses curtas, em figuras que representam “posições no mundo” que atravessam os séculos, e a metonímia faz esforços em representar o todo através das partes. A paisagem situa os personagens entre a vegetação, a secura, o mar, construções desabitadas, em que sua beleza é também carregada pelo peso dos séculos. Entre as sessões da Foco deste ano, é a que mais experimenta através de um diacronismo, que olha para diferentes tempos para dar forma ao presente em termos amplos, para pensar o Brasil de ontem e hoje. Ao mesmo tempo, no ensejo de elaborar sobre um sentimento comum na escala de um país, os filmes tomam para si o peso de diagnosticar o momento, ou de verbalizar seu sentimento, e apoiam na palavra essa função, enquanto que o jogo entre performance e montagem o faz de maneira menos organizada e inteligível, mas também menos cerebral e lógica. Na ventura de corpos contra hegemônicos em verve de experimentação, há uma vontade grande de dizer as coisas e, talvez, de domar a experimentação de suas errâncias.


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