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Mostra Foco #2: Projetar sonhos, cair em truques

Nessa sessão, personagens são uma coisa, mas também outra; individualidades que trazem outros tempos para dentro do tempo da narração, em que o sonho atravessa o realismo em um cruzamento tênue, onde a mão da montagem exerce a narratividade como evidência da construção de mundos. O segundo conjunto de curta metragens da mostra Foco tem Ratoeira (Carlos Adelino, 2020), De Costas pro Rio (Felipe Aufiero, 2020), Eu te Amo Bressan (Gabriel Borges, 2020) e 4 Bilhões de Infinitos (Marco Antonio Pereira, 2020).

No cotejo com o primeiro grupo de filmes, esse segundo conjunto modula a tônica de fim de mundo e uma postura irônica ou desacreditada com os materiais. Através do manejo dos pactos narrativos de identificação e crença dentro dos filmes, a manipulação na montagem é menos movida por gestos de desencantamento com as experiências de mundo, e mais voltada para jogos de encantamento internos ao funcionamento dos filmes, onde o truque reaproxima a montagem da mágica.

Do lixo eletrônico é que brota a invenção de Ratoeira, prestando sua homenagem aos gravadores e tocadores que já se foram. Dentro de uma oficina de rua atolada de aparelhos, placas, peças e acessórios, Ratoeria é o engenhoso retrato de Macgyver, interpretado por Neném Maravilha, um técnico em eletrônica e músico que ouve um som enquanto trabalha (o som do próprio Neném), “mais preocupado em recuperar as fotos das crianças” de um HD corrompido.

Nesse pequeno espaço massivamente empilhado por aparelhos, a presença de Macgyver desloca a apreensão quase familiar da oficina de consertos para uma dualidade que se espalha pelo paralelismo entre imagem e som: o músico negro de canções de sonoridade acústica e percussiva (“eu sou o chão, sou a semente, sou a raiz / negro / eu sou a raiz, eu sou feliz”) e o também o técnico de eletrônicos no ambiente de obsolescência tecnológica, de videogramas, plásticos e objetos esquecidos e abandonados. A convivência desses elementos díspares cria uma espécie de anacronismo e de heterogeneidade entre orgânico-inorgânico, em que se acendem como um fio desencapado em solução aquosa.

Do amontoado eletrônico da UTI de cacarecos, tocam canções, swings e um datashow com fotos e vídeos de Macgyver entre amigos e músicas, em uma dança de interferências sonoras, telas, botões e gavetas de fita que ganham movimento através de trucagens e intervenções de montagem. Acendendo os aparelhos prestes a pifar, as luzes piscam e emitem suas cápsulas do tempo, criando uma mecânica entre trucagem e montagem que insere no filme o arquivo como interferência, como sinal residual humano que pulsa do lixo eletrônico. Como um documentário sem entrevista ou contexto, Ratoeira faz seu retrato ficcional a partir de memórias, não de Macgyver, mas do slot de memória de aparelhos e objetos.

Se recontar memórias é um desafio de registro e de continuidade, em De Costas Pro Rio, interromper o seu fio ameaça a história de um povo. No segundo curta, o narrador e protagonista, um jovem branco da cidade (Victor Kaleb), conta que um “ser da floresta lhes disse que Manaus será destruída por uma grande cobra adormecida, a não ser que as histórias do passado sejam escutadas”. De Costas Pro Rio foi como Manaus se expandiu pelo território, e o protagonista volta à cidade para tentar escutar e contar essas histórias ignoradas. Na rua, ele busca histórias da cidade na boca dos passantes, fazendo entrevistas que esboçam uma autoimagem de Manaus, como uma cidade que precisa contar para as outras que não tem bichos e floresta na calçada. No palácio do governo, ele conversa com Eduardo Ribeiro (Júnior Brandão), governador do Amazonas em 1890, primeiro governador negro da cidade, responsável por obras de urbanização na cidade e pela finalização do Teatro Amazonas. Mas ninguém está interessado: seu primo azulejou o quintal da casa e quer lhe conseguir um job, sua mãe salta de um assunto a outro como se a conversa do filho lhe batessem na testa e voltasse. Ninguém crê na profecia que trouxe da floresta, mas o fim de Manaus se concretiza, através do desenho de som, com o protagonista acuado pelas calçadas.

São dois mundos de crenças que não se cruzam, e o filme é movido por esse personagem que ninguém leva a sério e é estranho à norma cotidiana da capital. Apesar do final em que a profecia mítica dá a volta sobre o “realismo” da cidade, esse choque entre sistemas de crença não fura a construção de linguagem até o fim. A cena do fantasma do governador é uma das mais instigantes, mas a atuação hesita no registro e não se encontra com outros movimentos que poderiam impregnar o naturalismo de outras formas de narratividade. A destruição de Manaus acontece no som mais como uma solução de efeito do que como ruptura na forma de narrar, e apesar da profecia consumada e a cidade destruída (no extracampo), se sustentam a linearidade e o naturalismo. As entrevistas, que parecem em um primeiro momento abrir o filme a outras narrativas e temporalidades, não superam um certo senso comum sobre a cidade. A imagem do cantor indígena sobreposta ao Teatro Amazonas sobra ao fim como pista falsa do tipo de invenção visual a que o filme parecia se lançar.

Ainda às voltas da crença, Eu te Amo Bressan traz para a pauta os formatos de tela variados (scope mais larga, 4:3 mais quadrada etc.) para pensar as “molduras cinema” que estabelecem um certo regime de recepção próprio, radicalizando seu uso como efeito narrativo de descontinuidade que dá rasteira no pacto com o espectador. No início do filme, um mágico (Pedro Ramires) – de cartola e tudo – nos convida para uma porta no meio da calçada que dá para “um mundo de fantasia” (uma paisagem rural em chroma key). Mas o casal de jovens brancos (Leticia Decker e Pedro Garcia) diz não, que tem medo, para o mundo do ilusionista negro. Dispara-se então a história de um casal que está terminando, nerds but cutes estilo 500 dias com ela (Mark Webb, 2009), com gramados no parque de verdes saturados, cabelos azuis e rostinhos de coming of age.

O salto é que a história tem um duplo, um casal de dois homens negros (Pedro Ramires e Maicon Douglas) vivendo a mesma narrativa de separação; a janela scope cinemão pula para uma janela quadrada em preto e branco comprimido e de foco incerto, e a partir de então varia-se entre várias proporções de quadro. A mesma história é compartilhada por esses dois registros de paródia de maneira entrecortada e abrupta, jogando com o tipo de identificação que o espectador comunga conforme a decalagem da nitidez da imagem, a “excelência” da fotografia, os corpos em tela, o registro de atuação, o formato da janela. O casal branco que declina o mundo de fantasias do mágico negro; os efeitos de imagem corrompida, como um “hackeamento” dessa narrativa autodeclarada universal.

Ainda que Eu te amo, Bressan empurre uma certa tese professoral na sua demonstração, como quem pergunta sobre a universalidade dessas narrativas de adolescência branca (que traz embutida a resposta negativa), o movimento de torção pela paródia e pelo pastiche joga tudo sem medo do ridículo, manipulando os gêneros e os pactos narrativos com a disposição em experimentar seus efeitos – e então aprender a puxar o tapete.

Alguns pregam peças, outros projetam sonhos, e entre o truque e o sonho há, mais uma vez, uma dose de crença. O último filme da sessão, 4 Bilhões de infinitos, narra a relação de um irmão e uma irmã (Adalberto Gomes e Ana Júlia Gomes), que cuidam um do outro em uma casa sem eletricidade, enquanto a mãe sai para trabalhar. A uma certa altura, o menino furta “o cinema” da escola, um projetor de sala de aula, e o esconde num descampado para não ser descoberto. A falta de luz e o medo de serem pegos colocam um impasse, e o menino conta de artimanhas que tentou, como gerar energia através de cataventos ou capturar raios, e nesse momento a montagem joga com pequenas animações que dão movimento à imaginação do menino.

Os 4 bilhões de infinitos é o valor que chegam quando competem para quem terá mais carros, e, como título, aponta para essa energia imaginativa das crianças sobre o futuro, que materializam na última cena quando montam o cinema com um lençol branco pendurado em uma árvore, em que podem projetar infinitos mundos imaginados. No conjunto da sessão, é o que trabalha dentro de noções de ficção de forma mais estável, e parece ter um desejo comunicativo sobre os potenciais imaginativos e educacionais do cinema. Termina com esperança a sessão, crente na imagem e suas capacidades educativas. Até demais: nessa fábula de interior sem luz, a metáfora de uma modernidade por vir vem embutida da promessa de que “no futuro vamos ter tudo que a gente quer”, onde o cinema não por acaso coincide com carros, mas no qual a noção de progresso como sentido único duvidosamente coincidirá com emancipação dessas crianças. E, apoiado na identificação que se dá na relação de cumplicidade de irmão-irmã, “trazer a luz” se infla em sentidos edificantes.

Os filmes sabem que imagens são imagens, nem mais nem menos, mas fazem das suas possibilidades de manejo e capacidades de relação e narrativa uma dinâmica viva na fricção entre seus temas e seus procedimentos. Movimento em que o mundo não está à espera, pronto para ser filmado, e a criação de mundo acontece com as mãos na massa na lida com os materiais filmados. Em comum, os curtas da sessão operam meta-comentários em que noções, símbolos e convenções de modernidade aparecem como um problema do meio: nos ruídos entre memória e comunicação, a mediação do cinema faz da contação de histórias uma experiência relacional, em que assistir o desenrolar do truque é botar os pactos narrativos à teste.


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