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Maneirismo e catástrofe

Em uma nave montada de sucata, o viajante espacial solitário WA4, incumbido da missão de assassinar Juscelino Kubitschek no momento de inauguração da nova capital do país, descobre-se perdido no tempo. A nave despenca em Ceilândia, em 2016, durante o processo de golpe parlamentar que derrubaria a presidente Dilma Rousseff. O viajante de Era uma vez Brasília (Adirley Queirós, 2017) chegou atrasado, tarde demais para cumprir sua missão. Ele termina por se juntar ao movimento de resistência, que luta também uma guerra tardia, sob o signo de uma derrota que já aconteceu. Em cenas de confronto contra inimigos invisíveis, meia dúzia de resistentes encenam gestos de combate e de perseguição sem propósito aparente, vestidos como personagens de uma ficção científica barata dos anos 1950 e 1960, como se presos em uma guerra que, na verdade, estivesse o tempo todo girando em falso. O personagem do viajante perdido no tempo de Era uma vez Brasília pode vir a se revelar como uma imagem paradigmática do cinema brasileiro contemporâneo, realizado numa década de crescente crise política no país: a experiência da desorientação e reorientação no tempo tornou-se para o guerreiro WA4 uma questão decisiva, que definiu o próprio horizonte de sua luta.

O cinema brasileiro da última década se ocupou em dar forma ao processo de transformação do horizonte de expectativas do país iniciado de maneira emblemática em junho de 2013. O chamado Novíssimo Cinema Brasileiro havia se desenvolvido em meados dos anos 2000 em um país marcado por um pacto social que garantia um sentido estável de direção do tempo. Os jovens cineastas do Novíssimo manifestavam um certo “inconformismo acanhado” diante do nosso modelo de desenvolvimento, expresso pela empatia por personagens fora do compasso do neoliberalismo e por formas de organização coletiva que escusavam o horizonte de profissionalização e consolidação industrial do cinema nacional – questão formulada pela dissertação recente de Raul Arthuso. O cinema brasileiro de meados da década surge do interior do Novíssimo como um processo de recrudescimento do confronto, que se manifestou pela postura combativa assumida por filmes como A cidade é uma só (2011), Branco Sai, Preto Fica (2014), ambos de Adirley Queirós, Brasil S/A (Marcelo Pedroso, 2014) e A Seita (André Antônio, 2015), que trouxeram para o coração do debate a desconfiança da experiência do tempo histórico que marcou as primeiras décadas do novo século. O radialista de Branco Sai, Preto Fica prepara um atentado contra o futuro, direcionado para a cidade de Brasília, movido por um desejo de reparação histórica. O protagonista de A Seita dirige-se para a sua cidade natal abandonada, depois de anos morando nas colônias espaciais, procurando viver o passado das ruínas de sua cidade periférica como um dandy decadentista do fin de siècle, descrente do compasso do tempo.

a seita img 1 maneirismoA seita

Tal cinema rompeu com a postura reputadamente acanhada do Novíssimo, desenvolvendo-se em direção à afirmação de um cinema abertamente maneirista. A tendência maneirista tem se manifestado em filmes, na verdade, muito distintos, como Doce Amianto (Guto Parente e Uirá dos Reis, 2013), Batguano (Tavinho Teixeira, 2014), Branco Sai, Preto Fica (2014), Brasil S/A (2014)  A Seita (2015), As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017), Era uma vez Brasília (2017), Arábia (Affonso Uchôa e João Dumans, 2017), Inferninho (Guto Parente e Pedro Diógenes, 2018), Calypso (Lucas Parente e Rodrigo Lima, 2018), Sol Alegria (Tavinho Teixeira, 2018), Os Sonâmbulos (Tiago Mata Machado, 2018), Bacurau (Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho, 2019), Divino Amor (Gabriel Mascaro, 2019), Último trago (Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, 2019), tornando-se amplamente disseminada nos últimos anos da década. A adoção de uma postura maneirista no trato com as formas em um contexto de crescente acirramento dos ânimos sociais poderia parecer uma transformação histórica disparatada, na medida em que tudo parece opor o recrudescimento do confronto e o amaneiramento do estilo. O novo cinema maneirista brasileiro, no entanto, revela-se uma expressão profunda da descrença em relação ao tempo enquanto uma flecha dotada de direção, que se manifesta pela própria atitude maneirista diante das formas, que perdem sua pretensão de representar o verdadeiro na mesma medida em que se desvinculam de sua relação com o tempo cronológico: a história das formas torna-se um repertório anacrônico de artifícios, um reservatório de imagens eternamente disponível, que o artista maneirista se apropria sem precisar prestar contas ao tempo.

A ficção científica revelou-se um repertório privilegiado para grande parte dos novos filmes maneiristas, que recuperam de certo modo a tradição da ficção especulativa terceiro-mundista, de filmes como Hitler do Terceiro-Mundo (José Agrippino de Paula, 1968), Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967), Brasil anos 2000 (Walter Lima Jr., 1969) e Jardim das Espumas (Luiz Rosemberg Filho, 1970), em um novo contexto de crise. O desenvolvimento do gênero da ficção científica na Europa do século XIX manteve com o discurso da ciência uma relação meramente contingente e inessencial: o surgimento do gênero exprimia, antes de tudo, a experiência moderna do tempo histórico, em que o horizonte de expectativas sociais se distanciava progressivamente do espaço da experiência realizada – retomando aqui a formulação de Reinhart Koselleck. O que torna possível a imaginação de outros mundos no interior da própria experiência do tempo foi a constituição de um regime de historicidade formado pela disparidade progressiva entre expectativa e experiência, diferença que o conceito de progresso permitiu estabilizar na forma de um tempo dotado de direção: o novo tempo do mundo tornou-se também expressão da consciência colonial de que o globo terrestre era habitado por populações em diferentes estágios de desenvolvimento, em que a diferença espacial poderia ser convertida em hierarquia temporal. Gênero moderno e euro-americano por excelência, a ficção científica no Brasil tem sido em grande medida um gênero “fora de lugar”, pelo qual temos elaborado nossa consciência de que aqui o tempo não passa da mesma maneira. “Como é lá esse bagulho?”, pergunta um personagem para o viajante WA4, a respeito do seu planeta. “É tipo isso aqui, ó”, responde, apontando para a paisagem à frente, uma quebrada de Ceilândia.

EUVB img 2 maneirismoEra uma vez Brasília

O golpe parlamentar de 2016 e o crescimento da nova direita no país transformou profundamente, contudo, o horizonte de nossa imaginação de futuro. O viajante perdido no tempo WA4, por muito pouco, não aterrizou com sua nave por engano dois anos depois, quando teria despencado no país que acabara de eleger presidente Jair Messias Bolsonaro, um soldado que também tinha como nosso personagem um compromisso firmado com o passado. O presidente eleito emergiria de um movimento de reação marcado por um profundo desejo de revisionismo histórico, que romperia com o aparente consenso construído pela redemocratização e pela constituição de 1988, responsável por definir o horizonte de expectativas sociais da Nova República: o objetivo declarado do seu governo seria fazer “o Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás”, como afirmou durante a campanha, deixando claro seu compromisso em reverter o sentido do tempo. O novo cinema maneirista brasileiro talvez terá sido um cinema que, empenhado de início a dissentir do sentido do direcionamento do tempo estabelecido na década anterior, se viu enredado em um ameaçador horizonte de incerteza crescente, no qual ele não tinha a menor chance de comandar, em que nem as garantias do pacto da redemocratização estavam mais seguras. Como afirma um personagem de Os Sonâmbulos, estávamos nos revelando um país “com um enorme passado pela frente”.

O novo cinema maneirista nos tem oferecido uma imagem do que é viver tempos de reação. O maneirismo tem se apresentado como uma estratégia privilegiada para se confrontar com a experiência presente do tempo histórico, porque a atitude maneirista concebe o mundo sob signo do falso. O artista maneirista prefere revelar na obra as marcas de seus mil e um artifícios, como um demiurgo maligno que não disfarça que o mundo é um artefato imperfeito, nascido dos seus piores caprichos: os novos filmes maneiristas parecem às vezes exprimir o sentimento geracional de nos descobrir presos na imaginação de um outro, condenados a procurar uma forma de nos orientar em seu delírio, sem se perder completamente em sua loucura. O mundo que apresentam é um mundo de vultos no espelho: os guerreiros Era uma vez Brasília travam uma guerra desoladora, montados em naves caindo aos pedaços; os habitantes do universo claustrofóbico de Inferninho vestem todos fantasias vagabundas, sentam no bar como sombras deprimentes dos personagens que um dia parecem ter representado, como se presos em um eterno fim de festa. Como afirma um personagem de Sol Alegria, diante de uma imagem de Jesus Cristo falseada, “a vida é paródia pura. Cada coisa que olhamos é paródia de uma outra. (…) Quantas vezes vamos retornar ao início?”.

A figura do viajante do tempo que chega atrasado, tarde demais para cumprir sua missão, revela-se o emblema de um certo momento histórico do Novíssimo Cinema Brasileiro, em que tornou-se preciso conciliar a consciência da derrota, sem perder de vista de que ela não é de agora; perdemos, mas não é como se estivéssemos ganhando. O viajante atrasado precisa realizar o cômputo da catástrofe sem perder de vista que sua missão era de outro tempo, como se tivesse que fazer o luto de um futuro que, gostava de acreditar, teria desejado ter desertado desde início. O personagem do duplo de República (2020) cumpre, por exemplo, um papel semelhante ao do viajante atrasado: ele anuncia para a protagonista que “teu Brasil acabou, o meu nunca existiu”. A protagonista, que havia acabado de atuar em uma cena na qual o Brasil revelava-se apenas um sonho ruim do qual iríamos acordar a qualquer momento, precisa agora conciliar duas demandas do seu duplo profundamente articuladas: a consciência de que não há um tempo comum para qual o fim poderia representar para todos uma catástrofe; a figura de um atraso infinito, de uma derrota anterior ao próprio tempo, que estaríamos, desde sempre, instalados. O país pode ser o nosso projeto desacreditado, mas, para o nosso duplo, ele tem sido seu eterno cativeiro. O filme sugere, no olhar lançado entre os duplos, um horizonte de conciliação possível, como se ele nos convidasse a imaginar uma forma de estarmos juntos no tempo que, abandonando a ilusão da sincronicidade, reconhecêssemos o atraso infinito como o único horizonte possível para travar a guerra em curso.

sol alegria img 3 maneirismoSol Alegria

A guerra é um motivo decisivo em muitos dos novos filmes maneiristas. Encontramos ela em Branco Sai, Preto fica, A Seita, Sol Alegria, Os Sonâmbulos, Bacurau, Era uma vez Brasília e tantos outros. A guerra que visam são muitas, pois sabemos que os poucos anos que separam um filme de outro foram, nessa década, profundamente significativos. A guerra sempre parece nos filmes, contudo, travadas em um horizonte fora do tempo cronológico, composta por batalhas anacrônicas, nas quais múltiplos tempos, desorientados, colidem sem sossego. Em Os Sonâmbulos, jovens conspiram no Brasil depois do golpe parlamentar de 2016, em cenas teatrais e empostadas, arrastadas para fora do tempo histórico por uma insidiosa atmosfera anacrônica; grupos revolucionários, polícias secretas, terroristas devotos repetem palavras de ordem, fragmentos de livros conhecidos e versos antigos, como personagens de um romance que seguem cumprindo seus velhos papéis: fantasmas da luta armada que retiveram apenas suas poses e frases feitas, disputando uma guerra sombria e enevoada, em direção ao sacrifício. Em Sol Alegria, uma família de terroristas excêntricos assassina o poderoso político pastor Tirésias, em um futuro apocalíptico. A família foge e se esconde na sede da falange Sol Alegria, gestada por uma comunidade de freiras plantadoras de maconha: a memória da luta armada deixa-se interpenetrar pelas imagens do desbunde, da contracultura, da transgressão libertina, do circo, em uma guerra movida por uma alegria mortífera, que não disfarça sua profunda agonia.

O cinema brasileiro tem entrado em um momento de transformação radical no governo Bolsonaro, que ameaça as suas próprias condições materiais de existência. O cinema maneirista da última década representou um momento de grande experimentação artística, assegurado pela maturidade de um sistema independente de produção, exibição e distribuição que se encontra hoje em crise, cujo destino atual se encontra absolutamente incerto; ela terá sido, ao mesmo tempo, um cinema do confronto e da paralisia, um esforço de nova reorientação e um signo de desorientação em anos de profunda crise política no país. Os moradores de Bacurau, armados de pistolas e espingardas de diferentes épocas, resgatadas do museu da cidade e reempregadas direto no combate, são, talvez, uma imagem menos desoladora para o nosso sentimento de que chegamos tarde demais, ao mesmo tempo que uma imagem bastante literal da consciência formada pelos filmes dessa década: a consciência de que a guerra pode apenas ser travada quando conduzida para fora do tempo cronológico. O filme homenageia nossos mortos no cortejo fúnebre no fim do filme, que cita vítimas políticas do passado próximo e distante do país, porque quer acreditar que eles nos observam, que podemos contar com eles: as guerras do passado, que não tivemos chance de vencer, não estão encerradas; elas, na verdade, continuariam por meio de nós, como uma promessa endereçada ao vazio do tempo.


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