Se Herman Mankiewicz estivesse vivo, eu o convidaria para tomar um goró. Mesmo que não beba, eu o ouviria, apreciando o ritmo dramático do seu pileque, a captar um pouco dos gracejos da Hollywood antiga. Em Mank (2020), novo filme de David Fincher, o roteirista Mankiewicz é retratado por diversos prismas, mas fica a sensação de um amigo de copo. O protagonista transmite ao menos duas frequentes tendências dos prazeres do álcool: o delírio e a franqueza.
O filme de Fincher se fia precisamente nessa difícil balança. Realça um ponto de vista, em fiapos, fragmentos de um personagem à beira da queda. O Mankiewicz quarentão que escreveu o roteiro Cidadão Kane (1940) é visto com desconfiança e desprezo por produtores, diretores, empresários, e até mesmo por seu irmão caçula, Joe, da mesma cepa judia, polonesa. O contraste com Joe, aliás, cineasta ambicioso, é muito mais importante para a trama do que as rusgas – com pitadas ficcionais e históricas – que Herman teve com Orson Welles.
Mank retrata duas Hollywoods muito diferentes entre si, mas que conviveram nas tantas passagens entre o cinema mudo e o sonoro, antes e depois do código Hays, antes e durante a sindicalização dos roteiristas, na criação do Screenwriters Guild. Nos seus flashbacks e forwards, a narrativa tem o acidente de Herman Mankiewicz como seu recorte e bisturi privilegiados. Bifurcada, emerge uma Hollywood de duas cabeças, que acolhe e tripudia, que incentiva e guilhotina os seus melhores talentos. Nos anos trinta, quando migrou da costa leste para Los Angeles, Mankiewicz era um jornalista com desejo de ser um dramaturgo em Broadway. Erudito, piadista, exímio contador de casos, ele ajudou a constituir alguns departamentos de estória, da MGM e da Paramount, mas não conseguiu voltar à sua vocação para a dramaturgia e os palcos.
A maioria dos roteiristas próximos a Mank, homens e judeus que vieram da cena de Nova York, tinha dois pontos em comum: o desprezo por Hollywood e uma fraqueza para abandonar a meca dos estúdios. Como ratos presos na ratoeira, sucumbiam facilmente ao ótimo salário que obtinham para escrever um número semanal definido de páginas. Os roteiristas, aliás, eram muitos, jorravam. Numa célebre entrevista à The Paris Review, Billy Wilder conta como a Paramount do final da década de trinta tinha cerca de cem roteiristas contratados. Repito, cem escritores num único estúdio, e esse número ainda hoje espanta. Eles precisavam escrever pelo menos onze páginas toda quinta-feira. Por que quinta? Por que onze páginas? Ninguém sabia, mas obedecia-se.
Raramente esses roteiristas se identificavam com a escrita para as telas. Eles tinham um intuito diferente, por exemplo, das roteiristas mulheres, como Frances Marion, que viam no cinema uma genuína forma de expressão. Elas moldaram um forte diálogo com o público feminino do seu tempo. Com o advento do sonoro, esse protagonismo das roteiristas mulheres foi revisto, e paulatinamente substituído. O roteiro chamado blueprint obteve uma centralidade no modelo de produção, os salários aumentaram e vieram mais dramaturgos da costa leste, que tendiam a desprezar o cinema. Preferiam jogar e fazer apostas, como bem mostra o filme no evidente ambiente machista que retrata, a cercar o grupo de roteirista ao lado de Mank.
Por isso, e dadas as forças de constrangimento do gênio do sistema, aqueles roteiristas homens tendiam, eventualmente, a abrir mão da autoria. Escreviam coletivamente e toda a gramática de direitos autorais, calcada no modelo de copyright norte-americano, pertencia aos estúdios. Philipe Dune, um roteirista desse período, sintetizou de forma lapidar essas contradições: em Hollywood, ele dizia, o roteiro é uma peça central do sistema produtivo, já o roteirista está à sua margem. Dentro e fora, à margem, mas central, os estratagemas de Mankiewicz traduziram esses dilemas com veia cínica, uma ironia depurada e uma constante empolgação com pequenos prazeres amorais.
Mankiewicz participava das festas com Louis B. Mayer, William Randolph Hearst e Ivan Thalberg. Distante da opulência daqueles magnatas, Mankiewicz é convidado justamente por tecer comentários mordentes. Numa veia contraditória, é esse mesmo ímpeto franco e delirante que o leva às beiras, às constantes demissões, ao endividamento, ao jogo, à passagem de gênio no interior do sistema, a um loser que é empurrado para as suas bordas. A proeza da narrativa de Fincher está em elucidar como parte dessa estranha localização – tão íntima como apartada do gênio do sistema – migrou para a argamassa ficcional de Cidadão Kane. No arco dramático de Fincher, Mankiewicz parece optar, durante a escritura de Kane, por um modo mais franco, e trágico, do que o cinismo e a diversão ligeira que marcaram as suas contribuições nos roteiros dos anos trinta.
À beira da falência, em declínio, Mankiewicz agarrou uma oportunidade para uma expressão individual. Se não tinha nada a perder, sentia-se imune ao traduzir dramaticamente as vísceras de Hollywood. Parte da perseguição que o roteiro sofreu, quando os boatos sobre sua estória corriam pela rádio corredor, evidenciam as traições e apostas de Mankiewicz. Com ênfase no retrato de um alcóolatra inveterado, Mank fez dessa trajetória pessoal um fio a guiar o espectador entre a Hollywood da arrogância conservadora e a do experimentalismo narrativo possível. Mais do que substituir uma estória por outra, o delírio e a franqueza do Mankiewicz de Mank nos convidam a adicionar uma outra fábula diante das tantas narrativas míticas que embalam Hollywood – mais uma estória entre suas mil e uma. Por meio de Mankiewicz, Hollywood torna-se tão fantasiosa quanto absurdamente real.
Parte da crítica brasileira que comentou Mank recaiu em miopias que pedem uma ponderação. Carlos Alberto Mattos sentiu falta de um personagem dramático mais compreensível e cativante, e viu em Mank uma estória com tantas referências que precisaria de um auxílio do Google para acompanhá-la. Concordo que há muitos matizes históricos e o filme emula a verborragia dos roteiros de Herman Mankiewicz. No entanto, esse é um personagem fragmentado, contraditório, próximo de um anti-herói. De personagens em abismo, como pinçaram Mank, não se exige um tipo de empatia clássica e convencional. Com eles temos poucas opções, delirar e sair trôpego pela noite, numa tentativa vã de salvar um colega que está à beira do suicídio. Mank é feito de falhas. Por isso é tão coerente ao falhar. Aí está a sua singularidade.
Thiago Mendonça trouxe de volta o ensaio de Pauline Kael, e salienta sobretudo a genialidade de Orson Welles, que teria sido desconsiderada pelo filme de David Fincher. O ponto de vista de Kael vem sendo bastante contestado nos últimos anos, e não creio que seja um guia confiável para entender o caso de Kane, o roteiro de Mankiewicz, nem o filme de Fincher. Com um argumento reducionista, Kael exagera no protagonismo de Mankiewicz e na sua obtusa negativa do talento de Welles. Mesmo assim, possui o mérito de fazer um contraponto do papel do roteiro num momento em que o gênio do sistema estava no seu ápice.
Nas duas críticas vislumbro um nó similar: uma aversão em compreender e aceitar um roteirista de Hollywood como um protagonista – seja da narrativa ou da história. É uma reticência bastante curiosa. Ninguém contesta, afinal, parcerias em canções populares – e importa pouco quem é o letrista, ou quem escreveu a melodia. Tampouco os dramaturgos costumam ter sua autoria colocada em xeque diante de uma encenação de um diretor. Por que roteiristas padecem de tanta resistência de serem compreendidos como sujeitos históricos?
Muitos críticos ainda se esteiam numa desgastada concepção autoral para compreender o trabalho colaborativo de Hollywood. Nos anos trinta e quarenta, período histórico retratado por Mank, a junção de direção como uma aposta autoral não existia como hoje a concebemos. Boa parte dessa formulação teórica ocorreu década depois, e eivada pela perspectiva francesa dos jovens turcos que escrevia numa revista de páginas amarelas. As críticas aqui citadas preferem ignorar que Mank aborda justamente essa peleja pelo reconhecimento dos créditos, vinda de um sindicato de roteiristas, o Screenwriters Guild. Brotavam novos anseios para antigas regras em Hollywood. Que isso embaralhe as concepções autorais de hoje (e de ontem) é uma parte salutar da aposta do filme. Que passe batido por críticos influentes é sintoma de um descaso bem mais arraigado. Um sintoma que merece, ao menos, uma pausa, e uma humilde reflexão.
No filme, a contraposição entre Mankiewicz e Welles é sim forçada e caricata. Ela surge embalada no delírio de um roteirista decadente diante um diretor ambicioso, egóico, e que tinha uma precoce fama de menino prodígio. Vejo, contudo, mais aproximações históricas entre o roteirista e o célebre diretor. Além das carinhosas cartas que trocaram, há alguns roteiros não filmados que revelam parte da afinidade eletiva que aproximou essa potente parceria entre Mankiewicz e Orson Welles. Em 1933, depois de viajar pela Europa e testemunhar a ascensão do nazi-fascismo, Herman Mankiewicz escreveu o roteiro The Mad Dogs of Europe. Nele, havia um protagonista, chamado Mitler, e que teria uma amizade com uma família judia, os Mendelssohn, cujo pai é um conhecido professor universitário. Ambicioso, Mitler publica Mein Kampf, ganha admiradores, torna-se um líder político, e renega o casamento entre judeus e arianos. Acontece que Ilsa, a filha de Mendelssohn, apaixona-se por Fritz, ariano puro, e filho do dono jornal da pequena cidade alemã. Daí a trama se desprende, e descamba para campos de concentração, traições, intrigas, mortes e até uma fuga com passaportes apressados rumo aos Estados Unidos.
Embora esse enredo soe um tanto caricato para os dias atuais, ela foi uma inovação política no pontiagudo contexto dos meados dos anos trinta, quando nazismo e fascismo ainda tinham adeptos em Hollywood, nos Estados Unidos e no mundo. Talvez por isso nenhum estúdio se dispôs a produzir a estória original de Mankiewicz. Nem mesmo a associação judia norte-americana bancou a empreitada. Como The Mad Dogs of Europe obteve leituras públicas e foi fruto de um amplo debate, Goebbels decretou que o nome do roteirista fosse retirado de qualquer filme a ser exibido na Alemanha. É preciso, nessa seara, reconhecer que há sim um anseio de um protagonismo político na trajetória de Mankiewicz, e o filme de Fincher, ainda que com tons leves de anti-heróis, possui a franqueza de abarcar essa face.
Escrito um pouco antes do processo criativo de Cidadão Kane, o roteiro de O Coração nas Trevas, também não filmado, demonstra muitas das inquietações cinematográficas de Orson Welles. No seu livro Homem de uma banda só, Adalberto Müller possui um detalhado capítulo sobre esse roteiro, e nos oferece das melhores análises recentes sobre os filmes incompletos de Orson Welles. Os pontos de vista fragmentados, um anseio de denunciar um fascismo oculto pulsante nos Estados Unidos, além das cisões esquizofrênicas entre Marlow e Kurtz antecipam muito dos vetores da loucura pós-colonial, que Coppola levou às telas décadas depois.
Ao trazer esses dois roteiros não filmados para esta crítica, quero salientar um viés bastante evidente. Mankiewicz e Welles possuíam mais convergências do que desentendimentos. Por um lado, o argumento de Fincher exagerou nessa dosagem. Embora irritante, a caracterização de Welles como antagonista é tão secundária que, na minha opinião, não macula a principal pegada do filme: enxergar Hollywood a partir de um ponto de vista arguto de um roteirista tão central quanto marginal. Por outro lado, boa parte da crítica e da recepção sobre o filme ainda se ampara no ultrapassado argumento de Pauline Kael, que possui o mérito de trazer Mankiewicz para um exagerado proscênio e peca ao ofuscar a inquietude criativa de Welles. Além de ser bastante criticado, aquele ensaio monta uma armadilha equívoca, e inescapável: ou se reconhece o gênio do diretor, em detrimento do roteirista; ou se aposta no gênio do roteirista, em detrimento do diretor. É uma oposição estanque, que apenas reforça um desnecessário afã canônico e idólatra.
Quando Mank, o bêbado de Los Angeles, encontra-se com Orson, o talentoso multiartista do teatro e do rádio de Nova York, brota uma parceria bastante inédita. Não por acaso, o filme de Fincher acerta ao concentrar-se no período que Mankiewicz passou no Rancho Verde. Nas biografias dos dois, reconhece-se que houve ali um poderoso e mítico interlúdio. Sem intervenção da RKO, com condições para fazer o que quisesse, Welles gozava de uma rara e total liberdade para aquele contexto. Uma liberdade que Mankiewicz nunca viu nos seus anos em Los Angeles. Era insólito, naqueles dias, não ter um produtor a supervisionar (a intervir, a estragar, ou mesmo incrementar) o processo criativo de um roteiro. É nesse espaço de ampla liberdade inventiva que emerge o roteiro de Cidadão Kane. Que ele seja um retrato pessoal de Randoplh William Hearst é um crédito dado a Mankiewicz. Que ele tenha traços autobiográficos de Welles é fruto de um processo colaborativo, culminando na criação de um dos personagens mais enigmáticos e envolventes da história do cinema.
Entre o escritor bêbado e o prodígio diretor, havia o gênio do sistema, como André Bazin tão bem apelidou Hollywood – um gênio que, como um coro, sugere um uníssono, que dissolve individualidades. Que esse gênio, em Mank, seja retratado pelo ponto de vista de um roteirista como Mankiewicz revela-se uma aposta inusitada. Propicia um retrato fabuloso, onírico, decadente e grandiloquente, que articula fracassos e ambições, fábricas escamoteadas de notícias falsas, jogos cínicos, veias amorais. Esse perspectiva antecipa os anos de caça às bruxas, do Macarthismo, quando precisamente os roteiristas foram usados como bucha de canhão pelo cínico pragmatismo dos produtores de Hollywood.
É no mínimo curioso ver Mank sendo produzido e lançado pela Netflix, que se arvora a revisitar Hollywood enquanto avança com passos de ganância similares à época dos estúdios. Essa empresa instala padronizações estéticas e caminha rumo a um monopólio mundial do imaginário cinematográfico. Resta hoje desvendar quem seriam os Mayers, Thalbergs, Selznicks e Hearsts dessa nova meca de contar estórias. Ver Mank na Netflix soa como um cínico riso, tão característico das piadas de Mankiewicz, ou dos roteiristas como Ben Hecht, que foram seus parceiros de época.
No jantar na casa de Hearst, Mank chega bêbado e fala de Don Quixote, numa narrativa confusa, curvilínea, sem nexo. Ele vomita e se limpa com um guardanapo, enquanto ainda conta dos moinhos de vento, de Sancho Pança, de Dulcinéia, dos delírios, da franqueza e das ilusões que moveriam a parte vibrante do gênio do sistema. Quando o pragmatismo derrota as inquietações criativas, brota o amargor de tantas frustrações. Nessa sequência, Mank parece encarar uma cobra de duas cabeças – um monstro Hollywoodiano, que gesticula com as cabeças de Mayer e Hearst, de Mank e Welles, Quixote e Sancho, a do espectador e a dos críticos.
Uma criatura bizarra. Ela remete a um paradoxo que F. Scott Fitzgerald traduziu com rara habilidade. Depois de ser triturado pelo mesmo gênio de sistema e morrer tão bêbado como Mankiewicz, Fitzgerald dizia que se pode aceitar Hollywood, ou deixá-la de lado, como se faz com aquilo que não se compreende. O paradoxo de Hollywood é o mesmo do filme de Fincher. Ora se nega seu fascínio, sua magia, com faíscas de desprezos fáceis; ora somos seduzidos e sucumbimos, dispensando qualquer interpretação.
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