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De Córdoba a Bariloche

Os anos 1990 estão com tudo: nas roupas, nas músicas, na política econômica. No Brasil, uma inflação galopante anuncia um possível retorno dos pacotes econômicos ao gosto do Fundo Monetário Internacional que foram mania nos anos 1980 e início dos 1990. Na nossa hermana Argentina, de 2015 a 2019, Mauricio Macri matou a saudade de quem sentia falta de Carlos Menem, e também a economia, com sua política de austeridade neoliberal. Não é coincidência que os dois filmes argentinos em exibição no 10º Olhar de Cinema tenham nesta década de ouro (só que não) sua estética e, em um deles, parte de sua narrativa.

Som de fliperama. Quase todo feito com imagens de filmes caseiros de VHS, Estilhaços, de Natalia Garayalde, inicia em um tom facilmente reconhecível no cinema contemporâneo: imagens domésticas, narração serena e um relato de memória familiar. A câmera inquieta revela uma família de classe média que vive no interior da Argentina, região de Córdoba. A trilha sonora, as camisetas largas, os cortes crespos, nos localizam facilmente na última década do século XX. Uma luz de primavera ilumina a mãe lendo o jornal, as crianças fazendo experimentos com o vídeo. O pai sabe que aquele momento inefável da vida não vai permanecer ou se repetir, filma tudo, filma muito, como se a câmera pudesse guardar algum som, alguma luz, alguma ternura material daqueles dias. Passados 15 minutos, um espectador mais cínico pensa que já viu aquele filme e imagina o que poderá se seguir: um ensaio sobre a infância e o tempo que não volta ou algo que o valha.

Estilhaços (2020), Natalia Garayalde

Mas sem aviso prévio, após a subida de um balão em uma noite festiva, estamos dentro de um carro quase desgovernado presenciando uma cidade indo pelos ares. Em uma sequência literalmente explosiva, vamos rodando pelas ruas de Rio Tercero pelo ponto de vista do carona, em meio à detonação de uma fábrica militar a três quilômetros da cidade, em 1995. “Tranquilo, no pasa nada”, ouvimos uma voz absolutamente atordoada falar. A explosão redimensiona aquele registro da ordem individual e a mesma câmera que filmava as memórias de uma família agora passa a guardar as denúncias e os testemunhos de uma tragédia coletiva. Das memórias da infância às provas de um crime de estado, do ensaio poético ao registro documental, tudo cabe dentro da câmera e da narrativa. Nem arte, nem técnica, um mistério.

Garayalde lança mão de imagens de arquivo, familiares, de vizinhos, da imprensa, para contar o seu olhar sobre os desdobramentos daquele acontecimento. Sem se aprofundar nas questões políticas que envolveram o atentado, a diretora vai e volta nas dimensões pessoais e coletivas da tragédia: as famílias lidando com os destroços, o poder público se esquivando da responsabilidade, a casa de infância rodeada de projéteis prestes a explodir, Carlos Menem em coletiva para a televisão afirmando falha humana, a formatura na escola, imagens de explosivos com a procedência adulterada, a fala de uma vizinha sobre crime premeditado, uma denúncia sobre a guerra dos Balcãs.

O ponto de vista subjetivo que narra um episódio histórico e/ou político é uma marca do documentário contemporâneo. Deixar claro de qual corpo e a partir de quais experiências partem aquele olhar parece legitimar e proteger as narrativas de discursos totalizantes. O risco que se corre é que o filme não diga nada, ou diga muito pouco sobre o fato que apresenta, algumas vezes, de forma indireta. Apesar de mais interessado nas consequências daquele episódio para a comunidade de Rio Tercero, e em especial para a sua família, a montagem e a narração de Garayalde dão conta de expor a responsabilidade política do atentado e Estilhaços é contundente na denúncia: as explosões foram programadas para encobrir o tráfico de armas para a Croácia durante a guerra dos Balcãs e Carlos Menem foi absolvido desse crime humanitário.

Aqui Estilhaços, ao se debruçar sobre um ocorrido da década de 1990, abraça o presente. Responsabilizando um governo abertamente liberal pelo descaso em relação à vida daquela comunidade, Garayalde abre seu filme a perguntas sobre interesses econômicos, os territórios e os corpos que o habitam. O tráfico internacional de armas arrasou uma cidade inteira (e se fosse apenas uma vida,já seria muito). A que interesses pertence aquele território? Carlos Menem expôs cidadãos argentinos ao fósforo branco, muitos morreram de câncer alguns anos depois, inclusive a irmã e o pai da diretora, a quem ela dedica todo o final do filme. A quem pertencem estes corpos? “As armas nunca são do povo, papai.”

Esqui (2021), Manque La Banca

Para pensar sobre a quem pertence outro território argentino, um tanto mais ao sul do continente, Esqui, de Manque La Banca, estabelece uma narrativa bem distinta: um jogo surpreendente que alterna atmosfera de horror, entrevistas, imagens publicitárias, narração y otras cositas más. Esqui propõe um tratamento bem menos pessoal do que o filme de Garayalde, fazendo uma coletânea sobre os pontos de vista que contam as histórias daquele território – um conceito de Wiseman expandido. Ainda assim, o corpo que carrega o olhar do filme é revelado não por imagens de arquivo como em Estilhaços, mas pela inserção da equipe de filmagem em uma das diversas narrativas sobre Bariloche. Os anos 1990 são evocados de formas mais sutis em Esqui, que fica restrito à estética de videoclipe das descidas alucinantemente coloridas da cordilheira de Bariloche e ao visual queer latino-americano do grupo que realiza um ensaio fotográfico erótico no pé da montanha – que é a própria equipe de filmagem, os corpos que carregam os olhos do filme.

Esqui vai do topo à base da montanha, literalmente. Não é exagero identificar a pirâmide social e racial neste desenho. Se na plataforma de esqui os turistas brancos estrangeiros cintilam à luz do sol refletida na neve com suas cores fosforescentes e seus óculos Rayban, na região do sopé, que ampara aquele Olimpo, os traços se indigienizam e a luminosidade é bem mais econômica. Mas essa discrepância não passa batida e logo percebemos que há algo de errado ali. Por meio de enquadramentos levemente em contra-plongée, zooms ligeiros e trilha de suspense, aqueles turistas podem parecer aliens do mal ou seres das profundezas. A montanha é amaldiçoada.

Esqui (2021), Manque La Banca

As narrativas a respeito de Bariloche vão se alternando de forma nem um pouco óbvia. Manque La Banca escolhe o gênero que lhe parece apropriado para tratar de cada história, de cada olhar. Por exemplo, a entrevista com Otto Meiling, alemão lendário conhecido pelo pioneirismo na exploração das montanhas para o esqui, na qual ele diz que ninguém pode contar ao certo a história de Bariloche, filmada em película de grão estourado, alto contraste, construindo uma imagem pictórica. Já a lenda mapuche sobre monstros de neve é encenada ludicamente por uma criança, em registro mais naturalista, e faz a ligação com os moradores da região baixa, quase todos funcionários da indústria do turismo da região. As imagens dos turistas descendo a cordilheira, por sua vez, abundam em cores neon, refletem o sol e se aproximam da plasticidade da publicidade. A textura das imagens expõe os diferentes mundos que habitam a montanha.

O filme vai descendo a serra e nos levando pela mão de história em história, surpreendendo a cada curva. A descida é puro deleite, mas algo está ao fundo daquelas imagens. Há sempre um mistério circundante relacionado à mata, ao rio, às pedras da montanha. De dentro das águas de uma corredeira, em meio aos sons do turbilhão, uma mensagem revela a narrativa nem tão oculta que permeia o filme. A história de Bariloche é uma só: um estado assassino que matou e retirou tanto Mapuches quanto Tehuelches de seus territórios, para entregar as terras a estrangeiros e convertê-los em mão de obra barata para a exploração turística da montanha.

Mas nós conhecemos bem essa história, que é a mesma de todo continente e de tantos outros territórios explorados dos quintais do mundo capitalista. Que essa cantilena diabólica seja repetida incansavelmente sobretudo a partir dos anos 1990, após a queda do muro, e consequentemente da última possibilidade de autodeterminação dos povos, não surpreende. Surpreende menos ainda que a reclamação territorial tenha se intensificado nesta década, juntamente com o acirramento das políticas extrativistas e exploratórias no sul do mundo. Em Esqui, um dos personagens fala da importância de um projeto social que leva as crianças da região para esquiar no topo da montanha: “Ir esquiar e saber que a montanha é nossa. […] Muda la mirada. Te limpia a la vista. Te limpia el alma


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